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segunda-feira, 15 de julho de 2013

O Ópio dos Intelectuais

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo

Uma paródia do Manifesto Comunista parece ser a melhor forma de caracterizar o presente momento em que vivemos: o fantasma do comunismo ronda o Brasil. Pelas escolas e universidades, jornais e revistas, a herança marxista infesta as redações como uma praga divina.

Nunca um governo pobre de espírito, inepto para as ações administrativas, irrisório para qualquer consideração humanística, parece ter sido tão bem qualificado em todos os lares e bares, e subitamente essa confiança entrar em crise. Nunca um movimento político conseguiu tantas adesões na classe universitária, no professorado do ensino médio e nos meios sindicais.

Agregando novas interpretações à surrada doutrina marxista, aplicando uma demão verde ao conteúdo vermelho, esse movimento político levou o país a professar insanamente o sucesso de uma ideologia que já havia sido provada equivocada, mas cujos viúvos apegados à sua fé não se davam por vencidos.

Persistindo na mesma argumentação do passado, não se deram o trabalho de uma reflexão mais aprofundada dos nossos males estruturais, e nem mesmo se permitiram uma oxigenação de novas ideias, pelos limites estreitos de seus evangelhos carcomidos.

Nos anos 50, Raymond Aron escreveu seu célebre livro ‘O Ópio dos Intelectuais’, como resposta à inteligência francesa que – radicada na universidade – fazia do proselitismo estalinista sua bandeira de luta. Enquanto a França se recuperava de suas feridas de guerra com dinheiro americano, os intelectuais franceses esbravejavam contra os EUA e em defesa da revolução proletária.

Sessenta anos depois, o Brasil passa pelo mesmo pesadelo. E a abordagem de Aron não perde sua atualidade. A força do marxismo está em seus mitos subtraídos furtivamente do legado cristão e utilizados como fundamentos para entender o passado, o presente e o futuro através de uma escolástica própria (doutrina que mistura fé com razão).

Aplicando o método marxista ao Brasil, podemos entender por que nossos intelectuais se intoxicam tão facilmente com suas profecias. O marxismo brasileiro possui qualidades que só uma nação avessa ao iluminismo poderia desfrutar: transformar mitos descartados pela história em motivo para criar celebridades nacionais.

Para Aron, os mitos do marxismo são os seguintes:


O Mito da Esquerda

O Mito da Esquerda é entendido por ele como a ideologia que combina: a propriedade estatal dos meios de produção, a hostilidade com a concentração econômica e a suspeita nos mecanismos de mercado.

A impessoalidade do mercado é sentida como algo aterrador, como uma ameaça à liberdade de escolha, como uma sujeição às grandes empresas capazes de subjugar os consumidores com a força do marketing.

Quase sempre são empresas transnacionais que, sendo impiedosamente criticadas, adquirem uma conotação esquizofrênica na mente estatista, ao lhes atribuir o papel de conspiração para subjugar as mentes, envenenar os corpos e destruir a liberdade individual pela escravização dos consumidores aos seus produtos.

Diversos exemplos de acidentes industriais, relatórios de danos ambientais e sociais são utilizados para justificar e confundir a produção econômica com uma conspiração contra os consumidores.

O conteúdo mitológico-esquizofrênico desse pensamento supõe que o modo de produção do capitalismo avançado esteja interessado em suprimir os consumidores pela doença, pelo envenenamento progressivo ou por qualquer outra ação destrutiva, em vez de protegê-lo como bem indispensável aos lucros da empresa, e que a vigilância do governo não seja suficiente para coibir abusos. Segundo esse raciocínio, só a estatização pode resolver o problema dos danos sociais e ambientais, como a poluição.

Revelador de uma inversão fundamental, esse pensamento guarda um propósito que só poderá ser manifestado quando efetivamente esse tipo de consciência tomar o poder: o descaso total para com as pessoas subjugadas pelo governo marxista.

A facilidade com que se propagam boatos sobre a irresponsabilidade social das empresas está na mesma proporção da perda de escrúpulos para sustentar a verdade no resto da vida pública.

Aron usa o termo “Mito da Esquerda”, embora no caso brasileiro o estatismo pertença tanto à esquerda como à direita. Ele é, portanto, um mito mesmo, abrangente, e está relacionado com nossa latinidade, especialmente com a Contrarreforma.

Outro componente do Mito da Esquerda consiste na pregação da igualdade social. Sobre isso, não existe uma análise mais acurada sobre as diferenças humanas de capacitação, nem a impossibilidade prática da igualdade. Para uma sociedade de funcionários públicos, a igualdade estaria assentada no primado da proximidade da remuneração, evidenciando assim a possibilidade concreta da igualdade relativa, sem no entanto resolver o problema do talento humano relativamente ao mérito. Este mito é um dos mais importantes para a educação marxista e foi objeto de um artigo meu, anos atrás, intitulado A Ilusão da Igualdade Social.

O Mito da Esquerda combina também um desejo profundo de reforma social com a eliminação das elites dirigentes, entendendo que somente a tomada do poder de uma nova classe política, tanto pelo voto como pela ação revolucionária, será capaz de implementar tais reformas.


O mito da revolução

Trata-se de um mito lapidar e de origem religiosa. O tipo de revolução marxista previsto por Marx e seguidores do século XIX nunca ocorreu porque sua concepção própria era mítica: nem o desenvolvimento das forças produtivas, nem a chegada ao poder da classe operária abriram caminho para a derrubada do capitalismo pela classe trabalhadora, consciente de sua missão.

Tal como as revoluções de todo o passado humano, a chamada “revolução proletária” meramente levou à substituição de uma elite por outra. Ela não apresentou características especiais para ser considerada como o “fim da pré-história”, como anunciaram os marxistas.

A concepção mítica da revolução consiste em interpretar a história como o motor do progresso social, pela qual o regime capitalista entra em crise dando lugar a uma nova ordem liderada pelo proletariado que toma o poder e estabelece um sistema transitório, chamado ditadura do proletariado, para conduzir a sociedade à sua redenção, ou seja, a uma sociedade sem classes chamada comunismo.

A redenção é também um componente subtraído do cristianismo, e neste não tem relação com a vida social, porém com o homem em sua fé. O marxismo se especializou em contrabandear os elementos da fé cristã para a sua doutrina de redenção da humanidade, na qual o mito da revolução seria o grande marco histórico referencial da passagem para um novo tempo de paz, harmonia e felicidade. Não tivesse o marxismo descaradamente furtado os elementos fundadores do cristianismo, ele não seria uma doutrina tão cativante e capaz de sobreviver a toda a demonstração racional de sua falência social.

Para o marxismo, a história assume o papel de um profetismo: a revolução proletária será essencialmente diferente das revoluções do passado, pois ela permitirá a humanização da sociedade. Somente o profetismo poderia permitir a convicção de que uma liderança partidária estaria seguindo as leis da história e trabalhando para um fim, que será inevitável e redentor, e que lhes permitiria eliminar quaisquer escrúpulos de culpa para promover as execuções de seus inimigos.


O mito do proletariado

Na escatologia marxista, o proletariado assume o papel de salvador coletivo. Trata-se mais uma vez de uma cópia das origens judaico-cristãs da classe eleita pelo sofrimento para a redenção da humanidade. A missão do proletariado, o fim da pré-história sangrenta e de sofrimento do homem graças à revolução – a conquista da liberdade final – estão atrelados à ideia do Messias, de rompimento com o passado, e com a promessa do Reino de Deus.

Nessa escatologia não se entende por que o proletariado tem de ser uma classe revolucionária. Na América Latina, não havia proletários nas guerrilhas de El Salvador e Nicarágua nos anos 80, nas FARC, no Sendero Luminoso, e nem na guerrilha do Araguaia.

Os revolucionários são, na maioria, egressos da universidade que se intitulam a vanguarda do proletariado, como apropriação necessária a uma representação social que só eles se conferem. No movimento estudantil brasileiro, que é o principal fornecedor de quadros para os partidos de esquerda, quase ninguém tem procedência operária.

Assim, a teoria do partido como vanguarda do proletariado nasceu da necessidade de dar direção às massas, sempre propensas a conquistas modestas e, ao mesmo tempo, contrárias às visões apocalípticas.

Para Marx, o proletariado era o servo que iria se revoltar, destituir o patrão e assumir o comando dos meios de produção não para si mesmo, porém para todos. Seus líderes, mais do que dirigentes políticos, seriam os profetas de uma NOVA FÉ a serviço da redenção humana.

O discurso da “emancipação” do proletariado é outro mito gerado na presunção de que o poder socialista tratará as classes proletárias de forma mais humanizada do que o capitalismo. Mas se um operário continua na sua fábrica, como se pode dizer que foi emancipado? E se ganha um salário irrisório e muito inferior ao pago pelos países capitalistas avançados, como se pode dizer que foi “libertado do jugo capitalista”?

Pelo mito marxista, o proletariado é a classe destinada a fazer do velho mundo um novo mundo onde não mais haveria a perversão do dinheiro, onde o capital não tivesse monopolizado e pervertido tudo. A classe operária levaria consigo a juventude do mundo, e o Partido Comunista estaria organicamente vinculado a ela na luta de classes.

O novo mundo seria a continuação na terra da promessa cristã (enfatizada pelos marxistas), guiada pela imanente filosofia que através da explicação científica propõe-se a ser um ponto final em toda a história de sofrimento e crueldade que tem sido o passado humano.

Toda essa construção mítica está voltada para o objetivo da tomada do poder. Trata-se de uma pseudociência criada para anunciar o advento de um novo mundo. A tomada do poder se transforma na emancipação da classe operária pela simples declaração dos dirigentes revolucionários, e não por mudanças na realidade.

Logo, o marxismo não é ciência. É mais um conjunto de asserções em que o real passa a ser o nomeado. Mistura a tradição romântica com uma visão poética de encantamento sobre o futuro, no qual o proletariado é o depositário dos novos valores e sua luta representa a luta de toda a humanidade. Todavia, a negação desses valores significa uma “traição de classe”, sujeita a pesadas sanções reservadas aos hereges.


O mito da História

Já falei sobre este mito na parte do mito da revolução. Porém, cabe uma palavra mais porque é complementar aos demais. A história foi tornada ciência, no sentido de que suas leis ocultas se tornaram conhecidas. A lei oculta é a certeza de que a história se move em direção ao socialismo, que a configura como o regime que irá substituir o capitalismo e instaurar o reino da abundância.

Os marxistas reivindicam que esta lei se torne “a filosofia da história”. A obtenção desse objetivo será feita pelo partido, elevado à condição de vanguarda do proletariado. Essa vanguarda se caracteriza por sua infalibilidade. Não existe um só partido comunista que no período dourado do estalinismo não tenha reivindicado para sua direção o status de infalível. Esta atribuição divina é, não obstante, a condição para a crueldade contra os oponentes. Se um partido não erra, mas apenas considera errados seus dissidentes, seus traidores, seus revolucionários que abjuraram a fé no grande líder, ele precisa suprimir toda a oposição, por mais branda que seja para que sua doutrina ou seu plano de governo sejam impostos sem contestação, e sobretudo para que sua verdade se estabeleça.

O marxismo se apropria da esfera religiosa e sua força provém exatamente de ser uma pseudorreligião. Não pode ser destruído pela razão, pois seus crentes são completamente impermeáveis a ela.

Assim, quando os mensaleiros foram condenados, o partido reagiu como se os mensaleiros estivessem fazendo algo regular, normal, perfeitamente aceitável para quem crê nos fins últimos de seus propósitos.

Para eles, a corrupção não é mais entendida como a negação da lei ou como um delito social, mas como uma estratégia de superação do capitalismo e de seus males, e que uma vez consolidada a nova direção no Poder, vai eliminar a corrupção para sempre.

Este propósito não se sustenta a não ser pela calhordice de permitir que o clero da nova fé tenha direitos sobre a apropriação indébita em nome da causa. E essa causa só pode valer para o clero e ser tolerada para os crentes, mas nunca para os hereges.

Assim, quando houve a denúncia de corrupção envolvendo Demósthenes Torres e José Roberto Arruda, o clero da nova fé foi o primeiro a declarar inaceitável tal comportamento, por não condizente com a moral. Mas com relação às denúncias contra José Genoíno e João Paulo Cunha, condenados do mensalão que reassumiram suas cadeiras no Congresso, esta flagrante ilegalidade foi vista pelo clero da nova fé com naturalidade.

Trata-se de um sentimento que só pode estar escorado na fé e não na razão. Somente a fé com propósitos situados no fim último de um futuro paradisíaco é que pode justificar a dupla razão e a contradição.

E Aron conclui com sua insuperável perspicácia: “a lógica confirma o que as sucessivas doutrinas sugerem: filosofias da história não passam de teologias seculares”. Existe um vínculo entre a história e o fanatismo, na visão do fim da história como a sociedade da abundância que não pode ser aceita senão na sublimidade de seus propósitos. Mas é o fim sublime do homem, postulado na teoria marxista, que justifica a brutalidade dos meios. E isso não vale só para o marxismo, mas para todos os fundamentalismos contemporâneos.


O repertório crítico

A partir desses fundamentos, a crítica marxista produziu (e continua produzindo) um besteirol crítico de proporções avassaladoras. É impossível reduzir todo o amontoado de fraudes criado em proveito da ideia do advento de um novo tempo chamado sociedade sem classes. Vou citar apenas um: o uso da dialética para fins próprios.

O que antes era uma especulação filosófica, no marxismo se transformou em palavra mágica para combater o capitalismo e apresentá-lo como uma sociedade agonizante. Através do talismã chamado dialética, o marxismo anuncia a derrocada do capitalismo em qualquer momento histórico de crise econômica e social.

Foi assim no fim do domínio colonial europeu, confundindo capitalismo com imperialismo a ponto de afirmar que o sistema baseado na propriedade privada e no livre mercado era incapaz de funcionar se não tivesse territórios para explorar. E desde então o mesmo raciocínio percorre as décadas com a força de um dogma.

A falsa noção de que a história se move por forças deterministas é talvez o pior legado do marxismo, um veneno que contaminou até mesmo os liberais. É absolutamente falso dizer que uma ação tomada hoje, define os rumos da história amanhã. Para que isso fosse verdade, os agentes teriam de ter a onipotência que não existe entre os seres humanos.

Aron discute essa questão na filosofia da história para mostrar como a história evolui a partir de escolhas postas para o personagem que de nenhuma forma pode ser vista como determinista. Nem César, ao cruzar o Rubicão, nem Hitler, ao desencadear a operação Barbarrosa, tinham consciência dos fatos que se desenrolaram a partir de suas atitudes no sentido da evolução que tiveram.

Outras pessoas em seus lugares certamente teriam tomado atitudes diferentes, o que configura que a história não pode ser movida por forças deterministas. O ultimato que os ministros austríacos deram ao governo de Belgrado em 1914 poderia ser de outro tom – e se a primeira grande guerra fosse postergada uns poucos anos, a revolução russa teria sido abortada e a configuração do mundo estaria totalmente modificada.

Alguns meses atrás, publiquei um artigo do historiador inglês H. R. Trevor-Roper a propósito desse assunto, com um argumento diferente, porém bastante próximo: História e Imaginação.

Aron desenvolve o argumento a respeito das predições históricas, afirmando que eventos históricos são previstos na mesma extensão em que são explicáveis casualmente. As interpretações retrospectivas formuladas tanto em termos de afirmações factuais: “as coisas aconteceram assim”, ou “tal motivo estava na origem de tal curso de ação”, não permitem que saibamos o que vai acontecer amanhã.

Entretanto, existem fatores previsíveis. Para quem conhece o economicídio dos regimes populistas, os países bolivarianos estão fadados a entrar em crise e fenecer sob a revolta das massas, pois já sabemos que a escassez e o empobrecimento são o resultado geral desses regimes.

O descaso com a lei praticado pelo clero bolivariano, sua cupidez e falta de escrúpulos terminaram revertendo-se no desrespeito à lei pelos crentes dos escalões inferiores e ao fim colocando toda a sociedade em desordem.

A promessa de um futuro luminoso transformou-se num pesadelo sombrio. E o passado denegrido por eles começa a parecer bem melhor do que o presente exaltado.


Os intelectuais em busca de uma religião

Paralelos entre socialismo e religião são bastante antigos. Mas no Brasil, foram escassamente utilizados. A expansão do marxismo pelo mundo guarda similaridades com a expansão do cristianismo.

A este respeito, adverte Aron: “igualmente clássicos são os argumentos surgidos dessas comparações. Acaso uma doutrina sem Deus merece ser chamada religião? Os próprios crentes negam a conexão, mas insistem em que sua crença não obstante é compatível com a fé tradicional – não seriam por acaso os cristãos progressistas uma prova viva da compatibilidade entre o comunismo e o catolicismo?” (p. 265).

Pergunta feita em 1953-55, bem antes da Teologia da Libertação, a mais sofisticada e elaborada tentativa de vinculação do cristianismo com o marxismo, e que mantém representantes até hoje militando a causa do castrismo.

“O fato é que o comunismo sempre guardou sentimentos parecidos com os cruzados de todas as épocas. Ele fixa a hierarquia dos valores e estabelece as normas de boa conduta. Ele satisfaz, no indivíduo e na alma coletiva, algumas das funções que os sociologistas normalmente atribuem às religiões. Mas para a ausência do transcendente ou do sagrado, os comunistas não o negam categoricamente, porém argumentam que muitas sociedades através dos tempos ignoraram a noção de um ser divino sem ignorarem a forma de pensamento e sentimentos, de obrigações e devoções, que o observador de hoje considera como religião” (p. 265).

Para Aron, as ideologias de Direita e Esquerda, Fascismo e Comunismo, são inspiradas pela moderna filosofia da imanência: elas são ateístas, mesmo quando não negam a existência de Deus, ao ponto em que concebem o mundo humano sem referência ao transcendental...

Tal qual nas religiões do passado, as paixões determinavam qual a Igreja que deveria ter o monopólio da missão de interpretar as Sagradas Escrituras e distribuir os sacramentos eliminando todas as outras como seitas hereges, no presente, os partidos comunistas disputam entre si quem é o verdadeiro intérprete das escrituras marxistas e se posicionam para eliminar seus concorrentes com a mesma vênia dos cruzados.

O profetismo marxista está em conformidade com o padrão típico do profetismo judaico-cristão. Todo profetismo condena o que existe e esboça um quadro do que deveria ser ou do que virá; ele escolhe um indivíduo ou um grupo para traçar o caminho à terra de ninguém que separa o miserável presente do futuro radiante.

Para que o sistema comunista de interpretação nunca seja flagrado em carência, a delegação do proletariado ao Partido deve ser total e irrestrita. Isso por sua vez provoca a necessidade de ele negar fatos incontestáveis — a substituição dos conflitos reais e multifacetados da vida humana na luta dos seres humanos em um destino pré-ordenado. A partir daí, surgem o escolasticismo, as intermináveis especulações sobre infraestrutura e superestrutura, as distinções entre significados sutis e vulgares, a rejeição da objetividade e a necessidade de reescrever a história: não existe nada que eles não saibam, eles nunca estão errados, e a arte da dialética permite-lhes harmonizar qualquer aspecto da realidade de um país com uma doutrina que possa ser torcida em qualquer direção.

O militante é persuadido a acreditar que pertence a um pequeno número de eleitos, que está encarregado da salvação de todos. O crente, acostumado a seguir os torcimentos da linha política do partido, a repetir feito papagaio as interpretações sucessivas e contraditórias de vexames como o pacto Nazi-Soviético, por exemplo, ou a “Conspiração” dos Sábios de Sião, torna-se, em certo sentido, um novo homem.

De acordo com a concepção materialista, os homens treinados através de um certo método tornam-se dóceis à autoridade e completamente satisfeitos com sua porção. Os engenheiros das almas não têm dúvidas sobre a natureza plástica do material psíquico à sua disposição.

Costuma-se dizer que a fé comunista é distinguível da opinião político-econômica somente por sua intransigência, que uma nova fé é sempre intransigente, e que as Igrejas se tornam inclinadas à tolerância quando são corroídas pelo ceticismo.


Militantes e simpatizantes

Modernamente, os conceitos marxistas no pós muro de Berlim estão em constante mutação. Eles migraram do terreno da sociedade e da história, onde foram derrotados, para tentar ressurgir de suas antigas ideias rousseaunianas a respeito da natureza.

Fundaram um sistema de interpretação da ecologia e do meio ambiente, que vai do ecomisticismo ao ecofatalismo, como indiquei em artigo.

Por um processo de imantação, todas as ideias que se aglutinam em torno do catastrofismo são defendidas pelas viúvas do muro de Berlim. O pensamento de uma crise iminente do capitalismo, verdadeira paranoia marxista, continua vigente no marxismo do século XXI.

Porém, o fenômeno mais importante ainda é a impossibilidade de certo pensamento intelectual latino-americano compreender que a levedura marxista está radicada em uma sociedade de privilégios, no amplo leque de instrumentos que vai dos cartórios aos sindicatos de contribuição compulsória, da burocracia estatal às entidades de registros profissionais, do modelo de representação política às empresas estatais.

Todo um universo de deformidades sociais, que se originou no passado colonial e que se expandiu incessantemente no estatismo é um instrumento ao qual o marxismo adere e se enraíza, solapando qualquer abertura democrática. Não entender que esse instrumento precisa ser eliminado faz parte da impotência de um certo pensamento de direita, dependente de um passado pré-moderno.

Achar que o marxismo possa ser erradicado só pela evangelização para a virtude das ideias certas é um dos maiores blefes dessa corrente, e uma postura não condizente com a modernidade.

Para a modernidade, pouco importa se um motorista de táxi conversa sobre marxismo ou sobre futebol com seu passageiro. O que importa é o modo de como ele conduz e cobra a corrida. Para a corrente nostálgica de um passado aristocrático, o taxista deve ser um homem preparado e doutrinado para a virtude cívica. Tropeça num idealismo fundamentalista e, não podendo revelar seu pecado, na adoração espartana da sociedade construída em torno de um Estado virtuoso, sempre deixará o caminho livre para que na primeira descompressão, surjam as ervas daninhas do nada sobre o terreno sequioso pela primavera de liberdade.

O único declínio possível da fé que confunde a missão de Cristo com o socialismo é a superação da sociedade que confunde democracia com oligarquia (e está agora dividindo espaço com a nomenklatura).

Somente uma sociedade baseada na propriedade privada e com um estado mínimo poderá fenecer a fé, cujo evangelho sempre foi a adoração do Estado. Quem combate o comunismo e não combate o Estado é apenas um agente disfarçado de uma mesma tirania.

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terça-feira, 14 de agosto de 2012

História da Inteligência Brasileira

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo

O Brasil visto por sua inteligência.

Wilson Martins – História da Inteligência Brasileira, vol VII – Cultrix – 1979 – 1ª edição.

Wilson Martins (1921-2010) foi magistrado, professor, escritor, jornalista, historiador, crítico literário brasileiro e autor da monumental obra ‘História da Inteligência Brasileira’. Celebrizou-se com sua coletânea de estudos sobre o Brasil. Neste volume, cobre o período de 1933 a 1960, abordando com extraordinária lucidez o nascimento da grande crise dos anos 30, que com a quebra da bolsa de NY iria desencadear o aparecimento de vozes anunciadoras do fim do liberalismo político, de um lado, e do fim do capitalismo de outro. O fenômeno do integralismo, para o qual convergiram grandes pensadores e que chegou a ser a esperança de um novo modelo para o Brasil por pouco mais de uma década, teve uma rápida obsolescência, o mesmo não acontecendo com o marxismo, que perdura atrofiado como sempre foi até os dias atuais confundido com o estatismo, a grande força nuclear da brasilidade desde seu descobrimento.

Não é possível deixar de admirar o rigoroso e sensível trabalho de Wilson Martins com sua História da Inteligência Brasileira. Utilizando o método cronológico associado à pesquisa editorial, ele descreve catalograficamente os principais lançamentos editoriais de um ano como pano de fundo de seus comentários, contribuindo assim para entendermos o pensamento nacional próprio e aquele reverberado das instâncias internacionais.

Não se trata de um trabalho meramente histórico, nem tampouco de crítica literária e cultural, porém de um apanhado conjunto que vai da sociologia à história, e desta à literatura e à poesia e artes. Em cada análise anual, ao mencionar seu fichário das principais obras nacionais do período, nos legou na parte final do livro um apêndice com cerca de 200 páginas, um trabalho monumental e sem igual em qualquer outra publicação que já vi.

Apesar de sua perspicácia no tratamento das contradições infindáveis da nossa sociedade e da acuidade com que abordava os temas da época, Wilson Martins não se arrisca a ser um intérprete com opinião pessoal, como costuma ser um analista social: ele se contém no papel do ‘schoolar’ que cria a rede de conectividades com o próprio material de estudo. Talvez por isso sua obra tenha alguns poucos pontos fracos, como por exemplo, não cita o livro de Afrânio do Amaral, ‘Serpentes em Crise’, de 1939. Afrânio foi um cientista chefe de um instituto norte-americano, que abandona sua carreia nos EUA a pedido de autoridades brasileiras para chefiar o Instituto Butantã de São Paulo. Cientista renomado, Afrânio conta em seu livro os desatinos para implantar uma estrutura estatal séria em um país arcaico e corrupto. Suas peripécias para limpar o Butantã da corrupção política das nomeações, e sua defecção em consequência do golpe de 1937 em um processo que saiu vitorioso na justiça mas demitido na política, representam um paradigma para a crítica do modelo político brasileiro ainda não percebido por nossa intelectualidade. Trata-se de um livro que deveria ser utilizado como ‘case’ nos cursos de pós-graduação em Direito, se nossas escolas não estivessem moribundas pela tragédia da frivolidade intelectual.

Além deste livro exemplar para o entendimento do Estado Novo, outro ponto fraco é que Wilson Martins também demonstra que não entendeu a importância da obra de Monteiro Lobato como crítica social. Ele foi capaz de uma preciosa análise do caráter de Lobato, de suas vicissitudes e incoerências, de sua personalidade ímpar, mas não percebendo a questão do poder fora de sua redoma acadêmica, terminou, talvez pela pressa, perdendo a noção do valor da crítica social de Lobato, espalhada em numerosos artigos, epigramas, cartas e contos.

Isso não diminui o valor do seu trabalho, dada a quantidade de informações que nos transmite ao longo de 442 páginas. Mas foi suficientemente acurado ao perceber o fenômeno perverso do nacionalismo ao se referir a ele da seguinte maneira: (p. 418)


O nacionalismo e, em particular, o nacionalismo primário, sentimental e intolerante (intolerante porque sentimental e primário; sentimental porque primário e primário porque sentimental) transformou-se, já agora, numa espécie de grave neurose brasileira; mais ou menos latente em toda a nossa história, ele aparece por irrupções bruscas, como as epidemias, e causa tantos males quanto elas. O Brasil sofre da mania de perseguição colonialista - é ela a responsável pelo nosso alheamento da realidade. Resultante de velho complexo de inferioridade - compensado e sublimado delirantemente pela criação de estereótipos os mais inconsistentes - ela alcança, neste momento da vida nacional, formas verdadeiramente patológicas, erigida que está em política, em programa da vida coletiva. É que uma grande parte do povo brasileiro deseja doentiamente preservar alguns valores vazios de conteúdo, agarra-se, justamente, por paradoxo, à constelação mental que caracterizava a sociedade luso-brasileira e deseja imobilizar o Brasil no instantâneo de um dos seus momentos históricos. Esse "velho País colonial", para conservar a terminologia de Jacques Lambert, opõe-se, com a força indestrutível da inércia, servida pela agressividade emocional, ao "País novo" e progressista, que compreendeu a permanência do Brasil sob as suas diversas fisionomias sucessivas e que responde às solicitações do momento em que vive. Se, até agora, entretanto, o "velho País colonial" representava a maioria absoluta, do ponto de vista demográfico, estamos chegando a um ponto em que as duas forças antagônicas tendem a equivaler-se e a partir do qual as correntes do progresso, da identificação com o seu tempo e com a "essência" brasileira começarão a prevalecer. A onda nacionalista que atualmente nos submerge bem pode ser a febre desse minuto culminante do conflito: explorada e mantida por interesses políticos que, precisamente, e por escárnio, nada têm de nacionais, nem de brasileiros, sua permanência e duração, seu alcance efetivo e a influência real que puder exercer decidirão, por muitos anos, do nosso destino coletivo. (1959)

Wilson Martins refere-se ao livro ‘Os Dois Brasis’ de Jacques Lambert, um professor francês que lecionou muitos anos no Brasil e nos deixou esta obra muito estimada nos círculos acadêmicos. Para Lambert, o Brasil arcaico é o país do analfabetismo, da pobreza endêmica, dos excluídos e da improvisação que coexiste com uma sociedade que se moderniza e que já forma profissionais em todas as áreas de especialidades.

A visão de Lambert, à qual Martins se associa, já não serve para os dias atuais, porque ao nos depararmos com o panorama nacional do início do século XXI, o Brasil arcaico não mais se distingue por diferenças de renda ou classe social, de educação ou acesso a bens de consumo. Nosso arcaísmo não está mais unicamente no retirante, na economia da enxada, tampouco na favela e no interior, mas na Universidade, ou em parte dela, no conjunto de ideias refratárias ao desenvolvimento econômico por não se render à realidade asiática que há 20 anos nos manda a mesma mensagem: a solução para os problemas sociais está dentro do capitalismo, e neste na economia do conhecimento ou high-tec, e não no Estado. Como somos uma sociedade coagulada em um semicapitalismo em que a oligarquia estatal dá o tom da vida nacional, tal como no Império, continuamos assoberbados por crises que seguem a um período de esgotamento de capitais por perda de oportunidades de desenvolvimento.

Perdemos essa oportunidade com a superação da crise de 29, que inicia em 1934, e com a possibilidade de nos enriquecermos com a demanda violenta absorvida pelos países em conflito na segunda grande guerra. Incapazes academicamente de avaliar o que poderíamos conseguir caso o Brasil tivesse enveredado por outros rumos -- como, por exemplo, com o governo de Julio Prestes em 1930 e sua sucessão democrática, com os candidatos naturais como Armando Sales de Oliveira ou José Américo, senão outros pretendentes até 1945, ficamos na aceitação medíocre de resultados pífios, mas suficientes para entronizar as piores lideranças que o país já teve como fundadoras de nossa modernidade, como é o caso de Vargas. As pessoas que endeusam Vargas não são capazes de imaginar o que ele deixou de fazer, ou o que teriam feito seus substitutos, não fosse o levante de 30.

Da mesma forma, fosse José Serra eleito para dois mandatos sucessivos desde 2002 poderíamos especular a situação da infraestrutura nacional em 2010, e como poderíamos estar preparados para enfrentar os tempos atuais com os ganhos de produtividade e de políticas públicas honestas e coerentes, a mesma danação que a Copa de 2014 vai nos levar a repetir a construção de Brasília dos anos 50: grandes investimentos sem retorno econômico. E rapados os cofres públicos, resta a inflação e com ela a agitação social e a decadência.

O cálculo não é muito complicado: basta avaliar as obras paradas, o dinheiro público roubado e a extensão possível dessas obras prontas comparadas com a “herança maldita” deixada pelo governante petista, e temos um intervalo a defasagem entre o que poderíamos ter sido e o que deixamos de ser. Extrapolando para um período grande, como um século, temos uma diferença no PIB que indica o que foi desperdiçado com o sistema político, cerca de 4 trilhões de dólares, como tenho apontado em outros artigos.

Nossa tendência ao atraso tem sido reiteradamente advertida a cada década por um escritor importante, a começar por Lobato nos anos 20. O fato de o brasileiro ser refratário à leitura, foi observado por Wilson Martins ao avaliar o pobre resultado das edições brasileiras justamente em um ano que o Brasil ainda vivia a euforia do pós-guerra e se preparava para mais uma eleição presidencial. (p. 283)

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Um país de quarenta milhões de habitantes que termina o ano [de 1949] apresentando três livros de interesse, um ensaio e dois romances, não justifica, evidentemente, grandes entusiasmos. Ao denunciar ainda uma vez essa crise espantosa – crise de inteligência, para dizer com nitidez o meu pensamento – tenho o intuito de alertar os homens de responsabilidade para esse problema que não é exclusivamente literário, que é geral, e do qual depende o destino da nacionalidade [...] Quer o queiramos ou não, somos nós os responsáveis pelo futuro do país. Amanhã, nossos filhos e netos serão a inapelável resposta do que tivermos feito ou deixado de fazer. Quando todos esses nomes de "grandes" e "pequenos" da política estiverem esquecidos, existirá, já não digo uma nacionalidade, mas um povo, cuja expressão interior e internacional será a que lhe tivermos dado nos dias que correm (...) Somos um povo que não lê – e de posse dos documentos indesmentíveis dessa afirmação, desejaríamos que todos meditassem sobre o que isso significa. Um povo que não lê é um povo que existe, mas não vive: é povo que poderia desaparecer amanhã da face da terra sem que nada de essencial se perdesse. Um povo que não lê é um povo que não conta internacionalmente: nossos escritores podem ser ignorados sem prejuízo por um homem culto de qualquer nação, nossos estadistas não têm autoridade internacional, nosso país não comparece ao lado dos outros senão como região colonial destinada a fornecer matérias-primas. Um povo que não lê é um povo que não pode governar-se a si mesmo: eis como a democracia chega a depender do hábito de leitura. A nossa democracia é formal, não é orgânica: os candidatos "do povo” ainda saem dos bolsos caprichosos dos "grandes" e dos "pequenos". Ela é formal e não é orgânica precisamente porque esse povo que não lê pode ser dirigido por estadistas que também não leem – ou que não leram, quando ainda era tempo. A maior parte deles não saberia escrever os próprios discursos e a prova consiste nos seus risíveis improvisos ou nas suas declarações desprevenidas.

[...]

Sem dúvida que a leitura não é tudo. Coisas mais urgentes existem para ser feitas – nenhuma, porém, de mais fundas consequências. Nem só do salário vive o trabalhador, mas do exercício das faculdades de raciocínio e de crítica que o caracterizam realmente como homem. É essa transformação do indivíduo em pessoa o que se obtém por meio da leitura, e os estadistas que o ignoram ou que pretendem esquecê-Io estão justamente fornecendo o contingente mais precioso para os regimes totalitários, que só podem existir onde os indivíduos ainda não alcançaram a dignidade de pessoas. A medida que aumentamos os salários e esquecemos a instrução embrutecemos progressivamente o homem, provocando-lhe a hipertrofia das funções vegetativas e a atrofia das funções intelectuais. Não se trata de transformar todos os homens em sábios, nem mesmo em poetas, mas de fornecer a cada um os conhecimentos de base que o capacitem a saber como e em quem votar, por exemplo, a conhecer os seus direitos cívicos e morais, a ter uma consciência exata dos seus deveres como membro da comunidade. Não são, pois, resultados de ordem especulativa o que temos em vista, mas resultados de ordem prática. Nenhum problema se apresenta, dessa forma, com maior importância vital: os grandes países que julgamos exclusivamente comerciais ou industriais são os países onde mais se lê. Onde todos leem e não apenas uma pequena minoria de mandarins que ficam sem saber o que fazer afinal com os conhecimentos que possuem. Se me perguntassem, pois, terminado o ano, qual o problema político mais importante do Brasil, eu diria que é o da leitura. Todos os outros dependem desse e a democracia na realidade não existirá enquanto o povo for governado, como acontece atualmente, em lugar de se governar. Ora, hoje o povo brasileiro está nitidamente dividido em dois grupos: o dos indiferentes, que votarão em qualquer um, indicado pelos donos do país, e o dos místicos, que esperam a palavra de ordem de um banzo em que ainda acreditam. Nenhuma negação mais flagrante do regime democrático do que esses grupos rebanhos, amorfos e sem expressão, sem vontade e sem consciência, nem dos seus direitos nem dos seus deveres. As legiões de decência e as censuras literárias não serão senão ridículas enquanto o próprio indivíduo não estiver convencido de que o homem não é apenas um animal. Elas não atingem senão as consequências, quando são as causas que devemos combater. Não é o banhista sem camisa ou a historieta do gibi que permite a existência de banhistas sem camisa e das histórias em quadrinhos. Suprimir estes últimos pela violência, atribuindo-lhes uma existência gratuita que estão longe de possuir, não adiantará um passo na solução do problema fundamental.

Eis-nos, agora, segundo parece, longe da literatura. Nunca estivemos, ao contrário, tão perto dela. Pois a crise literária é uma das alarmantes conseqüências desse estado de espírito em que nos afundamos cada vez mais. Ela nos dá um índice seguro da situação em que nos encontramos. Começamos por nos desinteressar dos livros e terminamos por nos desinteressar do destino nacional. Começa-se por achar inúteis os poetas e termina-se por achar o voto inútil. Deixamos de acreditar nos romances para depois deixar de acreditar nos homens. Julgamos a cultura um luxo para melhor justificar a nossa ignorância e o pouco esforço que ela nos custa. Tudo isso se entrosa, como vemos, e começando com um povo que não lê, terminaremos por um aglomerado de homens sem consciência e sem dignidade. Eis o balanço pessimista do ano literário: que ele nos abra, enfim, os olhos, se ainda pretendermos salvar um país que mereceria um destino melhor.

Em 1950, Getúlio se elege e volta ao poder... O que se pode dizer?

Evidentemente, que o forte de Wilson Martins é sua crítica literária. Ele aborda todas as personalidades literárias do período, ou pelo menos aquelas que na cultura brasileira são conhecidas como celebridades. Ele não omite as críticas que se faziam ao oportunismo dos escritores que tinham aderido ao realismo socialista, e que veneravam a figura humana mais despótica do século XX: Stalin. Sobre Jorge Amado, suas observações não deixam de causar surpresa. (p. 352-354)

À espera da recuperação sensacional que seriam Gabriela (1958) e Velhos Marinheiros (1960), Jorge Amado era, àquela altura, um mero sobrevivente de si mesmo e da escola literária que paradigmaticamente representara. Superestimado na década de 30, parecia chegado o momento de reduzi-lo às suas proporções reais, não tanto por ele mesmo quanto por causa dos pupilos temporões que começavam a germinar. Porque, enfim, Jorge Amado era sempre Jorge Amado, isto é, tinha o mérito intransferível de haver sido o criador dessa corrente literária e o seu vulto mais importante (...). Imaginemos, agora, o que poderão ser os seus discípulos ideológicos e estilísticos, sem o sabor da novidade, fanados como flores da última semana, simples repetidores dos seus "efeitos", da sua técnica, das suas ideias; romancistas que demonstram a mais absoluta indiferença pelo caminho percorrido literariamente desde 1930; políticos que permaneceram nos domínios da interpretação lírica da realidade, o que desde logo comprova que lhes são estranhos, que não sentem genuinamente os problemas em que procuram inspiração.

Como o romancista de Cacau, Maria Alice Barroso, José Ortiz Monteiro e Ibiapaba Martins construíam romances maniqueístas, separando os personagens em dois grupos inconciliáveis, antagônicos e contrastantes: de um lado, os bons, ou seja, os que se incluem na "chave" mística do "trabalhador", do "operário"; de outro lado, os maus, isto é, todos os outros, mas, em particular, o "proprietário" e a "polícia", as duas entidades arimânicas desse singular universo. / Os primeiros são honestos, generosos, desinteressados, amigos da instrução e do progresso, patriotas, bons pais de família, sóbrios, artesãos dedicados, técnicos conscienciosos, empregados eficientes (embora revoltados), imaginativos e incansáveis, focos de poderoso magnetismo pessoal, cheios de inata vocação de comando e, ao mesmo tempo, do espírito de disciplina mais irrepreensível, corajosos, sentimentais, poetas instintivos, sede de paixões violentas (oh! no bom sentido!), modelos de solidariedade grupal, argumentadores invencíveis, repletos, em suma, de uma nobreza que em torno deles resplandece como um halo. O "trabalhador" é o herói característico desses romances de cavalaria: sem medo e sem mácula, ele tem tantas relações com a realidade quanto o próprio Amadis de Gaula.

Já o "proprietário" é um ser asqueroso e nojento, chafurdado em' todos os vícios, grosseiro, bárbaro, corrupto, implacável na cobrança dos seus juros, lascivo na presença das viúvas jovens e perseguidor feroz das idosas, barrigudo, fumando enormes charutos, arrotando sem pudor, repleto de amantes e provavelmente de doenças inconfessáveis, membro da sociedade secreta chamada "capitalismo", onde, como todos sabem, é invulnerável à solidariedade existente entre os membros; indivíduo que favorece todos os deboches, inclusive dos seus próprios filhos; covarde, desonesto, egoísta, ignorante, vendido ao dólar americano, lúbrico, marido brutal e pai perverso, irritante e antipático, rotineiro, frio como uma enguia, incapaz de sinceridade, sem melhores argumentos que a força bruta, verdadeira encarnação contemporânea dos demônios chifrudos com que a Idade Média se assustava a si mesma.

A "polícia", enfim, é composta dos maiores sádicos da história. Todos os "tiras" são modelos em que o "divino Marquês" legendário muito teria que aprender; brutais e violentos, analfabetos e lombrosianos, vendidos ao "proprietário" que mensalmente lhes distribui todo um caderno de cheques, só costumam beber sangue de criança e não têm apetite senão depois de algumas horas de espetáculo na câmara de torturas. É fácil, de resto, reconhecê-los: seus olhares torvos, as manchas gordurosas do paletó, os sapatos cambaios e as unhas aquilinas, em dedos repletos de anéis (que também lhes foram dados de presente pelo "proprietário"), não permitem nenhuma hesitação. Passam o dia procurando "trabalhadores" para seviciar e costumam se meter no meio dos grevistas como agentes provocadores. Mas, como são imediatamente reconhecidos, não há nenhum perigo. Há, porém, uma espécie de "polícia" um pouco diferente: é o "delegado". Este é limpinho, perfumado e serviçal; atende aos mais ligeiros assovios do "proprietário" e dispõe imediatamente os seus homens (os primeiros) em linha de combate; também recebe cheques do "proprietário", mas semanalmente e em quantias maiores; mora, em geral, numa cidade do interior e comete as maiores torpezas a fim de conseguir a promoção para a capital; sente, às vezes, alguns sintomas de revolta social e uma ligeira veleidade de aderir ao "trabalhador", mas a sua mentalidade capitalista não lhe permite tão grande progresso; bom rapaz, no fundo, porque evita assistir às sessões de tortura levadas a efeito por sua ordem pelos "tiras" acima descritos.

Inútil dizer que, tanto o "proprietário" quanto a "polícia" estão ligados por misteriosos pactos com o "tabelião", encarregado de dar forma jurídica às espoliações por eles cometidas. Em geral, o "proprietário" deseja se apropriar das terras pertencentes a um "posseiro" (que é a forma terrestre mais frequentemente assumida pelos entes celestiais também conhecidos pelo nome de "trabalhadores" e de "camponeses"); para isso, começa a tornar-lhe a vida insuportável, o que o "posseiro" tolera com evangélica resignação. Diante disso, o "proprietário" chama a "polícia" e o "tabelião". A primeira, para intimidar o "posseiro"; o segundo, para lavrar imediatamente a escritura, se a intimidação não surtir efeito. Não se sabe bem que espécie de escritura pode outorgar um posseiro; mas não faz mal: um romance não é o tratado do Fraga. Se a intimidação malograr, o "tabelião", depois de admirar as pernas das moças e de tomar um café com bolo de polvilho, vai embora num jeep emprestado pela "polícia". Enquanto isso, o "delegado" toma as suas providências. Seu destacamento de seis soldados é disposto estrategicamente; mas a bravura dos "posseiros" os obriga a bater em retirada, deixando um "macaco" morto no campo da luta.

Nesse ponto, intervém o "governador", espécie de entidade suprema nesse mundo sodômico e gomorreano. O "governador" tem todos os defeitos do "proprietário" e da "polícia", reunidos numa só pessoa. Primeiro, ele se aborrece com as notícias desagradáveis que lhe chegam justamente na hora do café da manhã, depois de uma noite bem dormida junto aos cabelos perfumados da esposa (ou da amante, conforme o caso). Depois, apanha furiosamente o telefone e mobiliza a polícia militar. Os batalhões começam a embarcar precipitadamente para o local da desordem. Muitos soldados desejariam fazer causa comum com o "posseiro", mas têm medo das consequências; de resto, já estão corrompidos pela convivência com os seus oficiais. Depois de uma semana de cerco, os posseiros são derrotados mas não se entregam; todos foram mortos em plena batalha, no meio dos gestos mais sublimes de heroísmo. Um deles, entretanto, deve se salvar, para ser preso e continuar, primeiro na cadeia e mais tarde entre os gentios, a sua doutrinação. O "delegado" é promovido; o "proprietário" toma uma bebedeira de whiskey importado no câmbio negro; os filhos do "proprietário" vão para a farra; a mulher do "proprietário" também; o "governador" será candidato à presidência da República.

Enquanto isso, a terra que produzia frutos maravilhosos nas mãos do "posseiro", torna-se estéril e abandonada, porque o "proprietário" não a deseja para cultivá-la, para tirar proveito dela, mas apenas para constituir um "latifúndio". O "latifúndio" é o fim supremo do "proprietário", da "polícia" e do "governo". Todos se esforçam para constituí-lo, para transformar o Brasil num imenso latifúndio. Nenhum deles pensa em plantar café ou algodão; nenhum quer criar gado; ninguém deseja produzir nada. Todos querem formar um "latifúndio", isto é, comprar ou roubar uma extensão infinita de terra, cercá-la de arame farpado e entregá-la às espinheiras e à tiririca. Não se sabe muito bem do que vivem os "proprietários", já que não plantam nem trabalham; mas não faz mal: um romance não é um tratado de economia política. Atingir o "latifúndio" é, para o "proprietário", a sua vitória maior; dir-se-ia uma criança que obtivesse afinal o seu trenzinho elétrico. Chega-se, então, à conclusão de que o "proprietário" só quer o "latifúndio" para impedir que o "posseiro" plante o seu pedaço de chão e medite, nas noites estreladas, a poesia do Sr. Jorge Amado. Ao lado desse romance do "camponês", interpretado com grande realismo social pela Sra. Maria Alice Barroso e pelo Sr. José Ortiz Monteiro, há o romance do "trabalhador". Neste, o posseiro é substituído pelo "grevista". A história e os personagens são exatamente os mesmos, só que se situam nas cidades e nas fábricas, em lugar de ser numa fazenda do interior. O Sr. José Ortiz Monteiro e o Sr. Ibiapaba Martins combinam, aliás, nos seus livros, as duas espécies: são obras que, como diz o Sr. Jorge Amado no prefácio do primeiro, vão "ajudar a luta dos camponeses brasileiros para libertarem-se da miserável situação em que vivem". Reconhece-se nessa frase o estilo do mestre. Com efeito, os "camponeses" do Sr. José Ortiz Monteiro, vencidos pelo "proprietário" buldogueano, transferem-se para a cidade e se aliam ao "trabalhador" das fábricas. Essa presença moral é de um efeito prodigioso e corresponde a uma espécie de sagração. A revolta estala imediatamente. Mulheres mais ou menos cornelianas (de Cornélia, não de Corneille) tomam parte na luta e incentivam os maridos. O capitalismo norte-americano é derrotado num piscar de olhos, apesar da "polícia" que, vendida como sempre, atira com metralhadoras e gases venenosos contra o "trabalhador". Aqui, a vitória é mais sensível, porque o "proprietário", acovardado no seu escritório, fechado atrás de uma tríplice cortina de aço, consente em aumentar os salários. Mas, é claro que se trata apenas de uma etapa e que a luta continua. A vitória final está próxima, o que permite ao "camponês" e ao "trabalhador" sentarem-se na soleira da porta, sob a noite estrelada, meditando mais uma vez na poesia do Sr. Jorge Amado.

Com esse tom crítico podemos entender como Wilson tinha uma percepção acurada do universo literário brasileiro. Entretanto, às vezes nos causa surpresa com alguma opinião aziaga, como ao se referir ao personagem Vão Gogo de Millôr Fernandes (p. 380): “se considerarmos o humorismo, como devemos, uma das artes menores”. Ora bolas, desde Rabelais, Sterne, Cervantes, o humorismo faz parte da alma literária. É novamente o espírito de ‘scholar’ a lhe atrapalhar. E talvez por isso ele tenha entendido Lima Barreto mais pelo lado caricatural do que pelo sardônico. Fora isso, ele não comete erros ao sair de seu ambiente natural, exceto na citação de ‘Um Rio Imita o Reno’ de Viana Moog em que confunde o Vale do Rio dos Sinos com o Vale do Itajaí.

Mas esses deslizes estão muito longe de diminuir a importância de sua obra. Ele envereda por todos os temas culturais, exceto a música, a quem faz um pequeno comentário sobre o surgimento da Bossa-Nova e sua importância no panorama nacional. O samba, a alma popular mais profunda cujo patrimônio é a maior distinção da brasilidade com o resto do mundo, pois que nunca imitado, não é retratado em seu livro.

Quanto ao cinema, não deixa de ser surpreendente a observação de Alberto Cavalcanti, o cineasta brasileiro que fez cinema na Inglaterra, fundou a Vera Cruz no Brasil, desentendeu-se, saiu, criou outra companhia cinematográfica, faliu, passou-a para a TV Record e voltou para a Europa de onde nunca mais saiu. Segundo Martins (p. 321), o diagnóstico de Cavalcanti sobre o cinema nacional transcende o próprio cinema, pois consegue enxergar o próprio drama nacional em poucas linhas. Segundo o cineasta, os principais problemas do nosso cinema são:

1) fator étnico (improvisação, pressa, falta de gosto pelo acabamento);

2) fator ético (falta de equilíbrio, falta de confiança em nós mesmos, imoralidade e grosseria nos filmes);

3) fator industrial (falta de equipamentos e/ou desperdício);

4) fator econômico (falta de capitais, que desejam rápida retribuição);

5) fator profissional ou técnico (deficiência, arrogância, convencimento);

6) distribuição (deficiente);

7) exibição (entradas baratas demais);

8) crítica (incompetente, preconceituosa)

Trata-se, na verdade, de um diagnóstico do Brasil, cinematográfico ou não, que vale para a nossa história do cinema muito depois da Vera Cruz.

O que se pode dizer do hercúleo trabalho de Wilson Martins é que com a banalização dos cursos de ciências humanas, com a supremacia do marxismo vulgar no conhecimento, ele tornou-se um autor de bibliotecas, reservado a uns poucos estudiosos de nossa nacionalidade. Da mesma forma que os autores por ele abordados, sua obra ainda está à espera de um crítico capaz de avaliar em profundidade o maior trabalho já feito sobre nossa vida intelectual: sem tantos correlatos.

FIM


domingo, 19 de setembro de 2010

As Origens do Totalitarismo

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo

Disraeli
O Caso Dreyfus
A aliança entre a chusma e a elite
Os movimentos Pan
Como tudo começou
A construção do totalitarismo brasileiro

As origens do totalitarismo de Hannah ARENDT (Meridian Books, 1958, 510 p.)

Considerado pela crítica internacional um clássico sobre o fenômeno totalitário do século XX, especialmente as duas versões mais destacadas, o nazismo e o estalinismo, o livro de ARENDT apresenta um estudo sistêmico ontológico e funcional da história humana recente, e com reflexos no século XXI.

Ela fala muito pouco sobre o fascismo autocrático latino, um gênero mais brando de totalitarismo cujo objetivo se expressa na dominação do Estado e no controle do indivíduo, enquanto o totalitarismo nazista e estalinista é entendido não só como a dominação do Estado sobre os cidadãos, como a despersonalização do próprio indivíduo.

ARENDT argumenta que o totalitarismo se situa de um lado na evolução do antissemitismo em racismo, e do outro lado, na evolução do marxismo em despotismo. O propósito de unir os dois alicerces (nazismo e estalinismo), em um só edifício intelectual, torna o livro ‘As Origens do Totalitarismo’ no mais importante estudo comparativo dos dois principais males do século XX, ainda não totalmente superados, apesar da queda de ambos em tempos diferentes.

Para o início do século XXI, quando Coréia do Norte e Cuba mantêm o legado de Stalin, e a própria China oscila entre a modernização econômica e a política conservadora do passado, o assunto é sempre palpitante porque a nova versão do fascismo latinoamericano, tão amplamente divulgada pelo bolivarianismo, recolhe um mingau de procedimentos do passado e mistura com as velhas políticas populistas para construir um modelo de Estado apoiado nas antigas oligarquias e na eliminação da oposição nas urnas e na sociedade, ressuscitando uma lição incapaz de superar o mais tosco desenvolvimento liberal.

As raízes históricas do antissemitismo estão na formação dos estados-nação da idade média, que são as primeiras manifestações de etnia e nacionalismo, aos poucos transformadas em antagonismo político com o cosmopolitismo judaico. Um longo processo acumulativo de preconceitos e de dogmatismo religioso forçou os judeus a se voltar para as monarquias e as cortes, e alcançar alto status e proteção social como forma de defesa contra os ressentimentos. Ao mesmo tempo em que iam sendo assimilados culturalmente, tinham necessidade de conservar uma cultura que previsse a proteção e o trânsito como garantia de sobrevivência. Isso por si só já exigia educação intelectual superior, cosmopolitismo implícito e profissionalismo universalizante.

“A perseguição de pessoas sem poder ou de grupos que perderam o poder pode não ser um espetáculo muito edificante, mas não surge apenas da pobreza humana. O que faz os homens obedecer ou tolerar o poder efetivo e, por outro lado, odiar as pessoas que têm riqueza sem poder, é o instinto racional de que o poder tem certa função e um uso geral” (ARENDT. p. 5).

ARENDT analisa a afluência judaica nas casas bancárias, especialmente os Fugger na Alemanha e os Rothschild na França, e depois em toda a Europa, e seu declínio com o que ela chama de a Era do Imperialismo, iniciada em meados de 1850 com a supremacia inglesa nos mares.

A Era do Imperialismo teria sido para ARENDT o fim da supremacia judaica no segmento bancário e no controle de capitais. A Era Industrial, que se inicia no século XIX, coloca em evidência econômica uma nova classe de capitalistas destacada do mundo anterior e extremamente ambiciosa.

Essa passagem de poder teria criado enormes forças antissemitas, e ARENDT (p.25) não deixa de especular longamente até chegar a uma conclusão duvidosa não só pelo seu método marxista residual, como também pelas suas conclusões:

“Justamente quando os Judeus ignoravam completamente a crescente tensão entre o estado e a sociedade, eles eram ao mesmo tempo os últimos a dar-se conta que as circunstâncias haviam forçado-os para o centro do conflito. Eles portanto nunca souberam como avaliar o antissemitismo, ou nunca reconheceram o momento quando a discriminação social mudou para a argumentação política. Por mais de cem anos o antissemitismo invadiu lentamente todos os estratos sociais em quase todos os países europeus até emergir subitamente como um assunto do qual uma opinião quase que unânime pudesse ser obtida.

A lei pela qual este processo se desenvolveu era até bem simples: cada classe da sociedade que entrava em conflito com o estado como tal, tornava-se antissemita porque somente o grupo social que parecia representar o estado eram os Judeus. E a única classe que provou estar quase imune da propaganda antissemita foram os trabalhadores que, absorvidos na luta de classes e equipados com a explicação marxista da história, nunca entraram em conflito direto com o estado mas apenas com outra classe da sociedade, a burguesia, a qual os Judeus certamente não representavam, e da qual nunca foram parte significativa”.

Como se vê, uma conclusão bastante polêmica, pois embute argumentos marxistas que ela mesma repudia ao longo da obra. Em todo o caso, ARENDT analisa a genealogia dos Rothschild e sua influência nas cortes europeias, principalmente após a queda de Nopoleão, com foco nos banqueiros e sua independência dos movimentos políticos que formaram os estados-nação, e de sua preferência pela nobreza em oposição à burguesia emergente.

O declínio da supremacia judaica no sistema bancário europeu ocorre com a influência sempre crescente do big business sob o Estado. Se na época das monarquias os judeus eram criticados por deter a maioria dos empréstimos, na ascensão do capitalismo os créditos agrícolas passaram para os bancos estatais, tirando os judeus do negócio do pequeno financiamento. A isso se seguiu uma mudança que fez nascer a inteligência judaica, pois, sob o capitalismo, as novas gerações de judeus tiveram que se dedicar a outras ocupações, e, na virada do século XX, uma inteira comunidade de profissionais liberais, editores, jornalistas, músicos, escritores, artistas, etc., surgiu, sobretudo, na Alemanha e Áustria:

“Socialmente, os intelectuais judeus foram os primeiros que, como um grupo, necessitavam admissão em uma sociedade não-judaica. A discriminação social, um assunto menor para seus pais que não se importavam com o intercurso social com o gentio, se tornou um problema preeminente para eles” (op. cit., p. 52).

Entretanto, a questão do bode expiatório transcende a imediatez histórica. Trata-se de um elenco de lugares-comuns repetidos, ensinados, propagandeados com objetivos políticos menores, que num certo momento tem peso relevante nos conflitos existentes. Assim, os mais diferentes tipos de postulados antissemitas adquirem uma tonalidade condizente com o conflito em pauta. Se o problema é a perda de reserva de mercado por um grupo industrial, a acusação vai para as organizações internacionais pertencentes aos judeus. Se o problema é a arbitrariedade do governo, a acusação vai para as forças secretas judaicas que manipulam o poder, e assim sucessivamente, fazendo com que os judeus, que se afastavam do poder e mantinham uma cultura familiar e social restrita, eram por isso mesmo os mais visados como conspiradores ocultos, os “invariavelmente suspeitos de trabalharem para a destruição de todas as estruturas sociais” (op. cit., p. 28).

ARENDT deixa claro que se o antissemitismo se torna uma espécie de doutrina recorrente nos momentos de conflito, não existia o seu oposto, isto é, uma doutrina pró-semitismo. Quando um movimento social ignorava a questão era porque achava que era de pouca importância no contexto, e não porque não existisse. Em decorrência, o antissemitismo poderia renascer das cinzas, pois sempre seria uma ferramenta política capaz de ser reutilizada para propósitos específicos. Isto acontece com o pacifismo em oposição ao belicismo. Belicistas sempre têm um ponto de recorrência em seus argumentos pró-intervenção, enquanto pacifistas têm contra si a aparência de sempre cultivar a inércia e a imobilidade.

Porém, ARENDT não diferencia anticlericalismo de antissemitismo. E, como a luta contra a nobreza era também uma luta contra o clero, na medida em que este era o suporte moral da velha sociedade, era natural que o antissemitismo tivesse não poucas vezes o papel truncado de ser um alvo contra a religião como instituição, e não contra os judeus como grupo social. Daí que o horror ao clero era também um horror ao judaísmo como instituição religiosa, e não necessariamente aos judeus, como observamos nos dias atuais.


O problema de Disraeli

Este político, e ex-primeiro-ministro inglês, talvez tenha sido a principal causa da fraude chamada Protocolos dos Sábios de Sião, que apareceu depois da sua morte. Com efeito, Disraeli, um judeu sefartida procedente de uma família que migrou da Inquisição Espanhola para a Itália (enquanto o resto da comunidade foi para a Turquia), e depois para Amsterdan, finalmente se estabelecendo em Londres, escreveu alguns livros antes de entrar na cena política.

Apesar de ser um judeu assimilado (havia sido batizado na adolescência), em certo momento de sua vida imaginou um Império Judaico no qual os judeus teriam um papel essencial como uma classe separada do resto da sociedade. Isso era muito curioso, porque proposta semelhante só poderia ser encontrada no clero, mas Disraeli não era um rabino, mas um parlamentar que continuou a desenvolver suas idéias mesmo no exercício de suas atividades parlamentares.

“Em uma novela chamada Coningsby, ele abandonou o sonho de um Império Judaico e desenvolveu um plano fantástico em que o dinheiro Judeu dominava a ascensão e queda das cortes e impérios e governava a diplomacia. Nunca em sua vida ele desistiu desta segunda noção de uma influência secreta e misteriosa dos homens escolhidos e da raça escolhida, a qual ele substituiu seu sonho anterior de uma casta de dirigentes abertamente constituída e misteriosa. Ela tornou-se o pivot de sua filosofia política.

Em contraste com seus muito admirados banqueiros judeus que faziam empréstimos aos governos e ganhavam comissões, Disraeli olhava todo este assunto com a incompreensão de um outsider de que tais possibilidades de poder poderiam ser levadas no dia-a-dia por pessoas que não ambicionassem o poder. O que ele não entendia era que um banqueiro Judeu estivesse ainda menos interessado em política que seus colegas não-judeus; para Disraeli, em qualquer caso, era um fato consumado que a riqueza Judaica era apenas um meio para a política Judaica. Quanto mais ele estudava sobre o funcionamento da organização dos banqueiros Judeus nos assuntos dos negócios e como obtinham as informações e notícias internacionais, mais ele se convencia que se tratava de algo como uma sociedade secreta a qual, sem que ninguém tivesse conhecimento, tinha o destino do mundo em suas mãos” (ARENDT, p. 75-76).

Ora, essa era a munição que décadas depois a propaganda antissemita utilizaria para disseminar as ideias de uma sociedade secreta Judaica com o propósito de se apossar do mundo excluindo os nãos-judeus.

“É de extraordinário significado que Disraeli, por motivos exatamente opostos e num momento em que ninguém pensava seriamente em sociedades secretas, chegue a conclusões idênticas, pois mostrava claramente a que ponto tais invenções eram devidas a motivos sociais e ressentimentos, e o quanto mais plausivelmente elas explicavam eventos ou atividades políticas e econômicas do que a verdade mais trivial teria feito. Aos olhos de Disraeli, bem como aos olhos dos charlatães muito menos importantes e conhecidos que lhe sucederam, todo o jogo da política era exercido entre sociedades secretas. Não apenas os Judeus, mas qualquer outro grupo cuja influência não fosse politicamente organizada, ou que estivesse em oposição com todo sistema político e social, se tornaria para ele poderes por trás das cenas” (ARENDT, p. 76).

Para ARENDT, a ingenuidade de Disraeli chegou a tal ponto que ele conseguia conectar todas as forças secretas em torno dos Judeus. Em sua imaginação, o mundo se tornaria Judeu. Décadas depois, os nazistas iriam utilizar esses argumentos para vincular sua propaganda antissemita com uma aliança entre capitalistas e Judeus, e subjugar o povo alemão, então padecendo uma das piores crises econômicas do pré-guerra.

O mito das sociedades secretas, como regentes do mundo, tem algo de bizarro. Parece uma coisa semelhante às estórias de extraterrestres. Em ambos os casos, o fundamental é o segredo que envolve a organização ou os seres. No caso dos extraterrestres, não se admite que uma civilização de outro planeta apareça na terra para todo o mundo ver: por alguma razão misteriosa, esses seres só aparecem para pessoas sem nenhuma importância, e nunca para uma comunidade inteira.

Com as sociedades secretas, ocorre a mesma coisa. A despeito da esquizofrenia que possa originar o mito, o porta-voz sempre acha que os acontecimentos são resultantes de uma conspiração bem urdida e implacável, aos quais os governos se submetem impotentes, e obedecem a ordens tão poderosas que varreriam da face da terra quem porventura se opusesse a elas. Se, em época de paz e calmaria social, isso parece algo próprio de lunáticos, em época de crise, aparece com tintas de normalidade.


Caso típico de desdobramento histórico

Ao chegar ao final do século XIX, na Paris das luzes ocorre o escândalo do Canal do Panamá. Liderado por Lesseps, o construtor experiente do Canal de Suez, o empreendimento terminou dilapidando a poupança de 800 mil investidores franceses, que fundaram uma sociedade anônima para o empreendimento controlado pelo Congresso, que em estilo bem brasileiro passou a pagar propina para parlamentares autorizarem a tomada de capital, e até a renda da loteria.

Depois de uma terrível denúncia que envolvia nada menos de 104 parlamentares, acabou em falência naquilo que seria um mensalão francês com protagonistas, laranjas e todos os ingredientes familiares aos brasileiros. A serviço do consórcio e encarregados da distribuição das propinas, os laranjas eram dois imigrantes alemães: Jacques Reinach, que militava na direita francesa, e Cornelius Herz, que comandado por Reinach distribuía o mensalão para a esquerda. Por acaso eram judeus, e esta particularidade serviu para a montagem do caso Dreyfus, um ano depois da liquidação da Panama Company. A construção consumiu 1,3 bilhão de francos, e não conseguiu chegar ao fim depois de 21 mil operários mortos de febre amarela, malária, tifo e desabamentos de terra. Retomado dez anos depois pelos americanos, o canal só se tornou realidade em 1914, com mais 5 mil mortes (Veja na Wikipedia: Panama scandals).

Para ARENDT, no raiar do século XX, o ápice do antissemitismo ocorre com o caso Dreyfus. Denunciado em 1894, Alfred Dreyfus, um oficial judeu francês do Estado Maior, funcionário do Ministério da Defesa, foi acusado de fazer espionagem para a Alemanha. Independentemente do fato de Dreyfus ter sido um judeu bon-vivant e mulherengo, em uma Paris em plena e irresistível Belle Époque, o caso por si só teria sido escandaloso, não fosse o antissemitismo ter agido como um lança-chamas na já inflamada discussão que tomou conta, primeiro da França, e depois do mundo inteiro.

O caso dividiu a França: a direita ficou contra Dreyfus, e a esquerda a favor. As consequências foram as piores possíveis. De um lado, a exploração do antissemitismo, de outro, a suspeita generalizada no parlamento e na máquina estatal. Julgado a portas fechadas, acusado e culpado no processo de 1894, Dreyfus foi condenado à prisão perpétua na célebre Ilha do Diabo.

As provas da acusação resumiam-se a um suposto bordereau, uma carta escrita de próprio punho que seria endereçada ao adido militar alemão em Paris. Em julho de 1895, o coronel Picquard assume a chefia da Divisão de Informações do Estado Maior e, em maio de 1986, fala ao Chefe do Estado Maior, chamado Boisdeffre, que estava convencido da inocência de Dreyfus e da culpa de outro oficial, chamado Waslin-Esterhazy:

“Seis meses depois, Picquard foi removido do cargo e enviado para um posto perigoso na Tunísia. Ao mesmo tempo, Bernard Lazare, em apoio aos irmãos de Dreyfus, publica seu primeiro panfleto sobre o Caso: Une erreur judiciaire; La vérité sur l’affaire Dreyfus.

Em Junho de 1897, Picquard informa o vice-presidente do senado Sheurer-Kesten, dos fatos do julgamento e da inocência de Dreyfus.

Em novembro de 1897, Clemenceau inicia uma campanha pela revisão judicial do caso. Quatro semanas depois, Zola entra em cena dos pró-Dreyfus. J’Accuse foi publicado pelo jornal de Clemenceau em janeiro de 1898. Na mesma época Picquard foi preso. Zola, julgado por calúnia contra as forças armadas, foi condenado tanto pelo tribunal ordinário quanto pela Corte de Apelações.

Em agosto de 1898, Esternhazy foi demitido com desonra sob a acusação de peculato. Precipitadamente, falou a um jornalista britânico que tinha sido ele e não Dreyfus o autor do bordereau, e que ele havia forjado a grafia de Dreyfus, sob ordens do Coronel Sandherr, seu superior e antigo chefe da divisão de contraespionagem. Alguns dias depois, o Coronel Henry, outro membro do mesmo departamento, confessa as falsificações e diversas outras peças do dossier secreto contra Dreyfus, e se suicida. A partir de então, a Corte de Apelações ordena uma investigação sobre o caso Dreyfus” (ARENDT, p. 89).

A Corte anula a sentença depois de 5 anos, mas, inexplicavelmente, mantém uma pena de 10 anos por circunstâncias atenuantes. Uma semana depois, o Presidente da República liberta Dreyfus da Ilha do Diabo. Sabe-se que, em 1900, haveria a famosa Exposição Mundial de Paris, e que a França não queria um agravante em sua reputação de líder mundial.

A partir de então, o próprio Dreyfus entra com processos de revisão para obter sua inocência, reintegrar-se às Forças Armadas e pleitear uma reparação. Apesar de idas e vindas, Dreyfus nunca mais foi declarado juridicamente inocente, apenas anistiado. Morreu em 1935, mas seu caso dividiu os franceses e representou um dos mais conturbados momentos de sedição antissemita em toda a Europa.

O caso continuou opondo partidários e inimigos a tal ponto que, em 1931, em uma recriação teatral em Paris do Caso Dreyfus, houve tumulto e quebra-quebra na estreia da peça. Comandada pela Action Française, uma organização de direita fundada em 1898, exatamente por causa do Caso Dreyfus, se tornou porta-voz do nacionalismo monárquico orleanista, a peça terminou suspensa para não ferir a suscetibilidade da direita francesa. Até os dias atuais, sempre que a França se divide em duas correntes de opiniões, o caso Dreyfus é invocado.

Por trás de uma conspiração, havia uma enorme promiscuidade entre o ciúme e o ódio, a inveja e a calúnia. Dreyfus era odiado por ser a representação material do judeu rico, mulherengo, bon-vivant, gabola e vaidoso. E com 800 mil franceses ludibriados na falida Panama Company por dois laranjas judeus alemães, pode-se imaginar o que o caso movimentou em termos de sentimentos frustrados, picaretagem política e vigarice intelectual.


Aliança entre a chusma e a elite

Estranhamente, em toda a sua obra, ARENDT não usa a palavra populismo, mas se refere como uma aliança entre a turba ou chusma, e os setores das elites. Para ela, o povo não se confunde com a turba, que

“é antes de tudo um grupo no qual estão representados os resíduos de todas as classes. Por isso, é tão fácil confundir o povo com a turba, que também engloba todos os estratos da sociedade.

Enquanto o povo luta por verdadeira representação em todas as grandes revoluções, a turba sempre gritará por um ‘homem forte’, o ‘grande líder’. Porque a turba odeia a sociedade da qual foi excluída, bem como o parlamento onde não está representada. Os plebiscitos, portanto, com os quais os líderes da turba têm obtido excelentes resultados, são um velho conceito de políticos que confiam na turba. Um dos mais inteligentes líderes dos anti-Dreyfus, Déroulède, clamava por uma ‘república plebiscitária’ “ (ARENDT, p. 107).

Hoje em dia se fala em populismo, em eleitoralismo, em demagogia. Mas ARENDT não está interessada em terminologia – seu propósito é a análise sistêmica da unidade política em uma sociedade exaltada. Nos dias atuais, seria o equivalente às invasões de terras praticadas pelo MST, às invasões de prédios públicos por manifestantes, de edifícios por sem-teto – todos inocentados por representantes políticos espertamente preparados para tirar proveito eleitoral. E o objetivo é sempre direcionar certos ódios sociais para alvos concretos que funcionam como representação de tudo aquilo que se detesta. Diz ARENDT (p. 108): “Nos países latinos, no passado, o ódio era dirigido ora aos judeus, ora à maçonaria, ora aos jesuítas”. E também havia a acusação correspondente entre os setores: os maçons falavam de uma “Roma Secreta” com pretensões de mandar no mundo, enquanto os jesuítas preferiam acusar a “Judéia Secreta” de pretender o mesmo, especialmente depois do primeiro Congresso Sionista de 1897.

No final do século XIX, na França, o que havia de novo “era a organização da chusma e do culto do herói apreciado por seus líderes. A chusma tornou-se o agente ‘concreto’ daquele nacionalismo abraçado por Barrès, Maurras e Daudet, que juntos formaram aquilo que indubitavelmente era uma espécie de elite para os jovens intelectuais. Estes homens, que desprezavam o povo e que recentemente emergiram de um culto do esteticismo ruinoso e decadente, viam a chusma como uma expressão viva de uma ‘força’ viril e primitiva.

Eram eles e suas teorias que identificaram pela primeira vez a chusma com o povo e converteram seus líderes em heróis nacionais. A filosofia do seu pessimismo e sua admiração com o juízo final foi o primeiro sinal do colapso iminente da intelligentsia europeia” (ARENDT, p. 112). Na Itália, Mussolini declarava-se uma “metamorfose ambulante” ao se arrogar o papel de aristocrata e democrata, revolucionário e reacionário, proletário e antiproletário, pacifista e antipacifista. “Este inerente cinismo do culto da personalidade romântica tornou possíveis certas atitudes entre os intelectuais” (ARENDT, p.168).

Arendt

A ascensão do racismo foi baseada nas teorias de uma série de autores do século XIX, entre os quais Gobineau (Essai sur l’Inégalité des Races Humaines). Uma das características da época que precedeu o imperialismo era a obsessão com a queda das nações e não com sua ascensão. E note-se que o racismo tem como contrapartida o romantismo. Todos os racistas eram românticos em certa medida, pois não havia nada mais deslumbrante do que se autoproclamar sangue azul.

Trinta anos antes de Nietszche, Gobineau já enfrentava o problema da ‘décadence’. O interessante nesses autores é que parecem ciclotímicos em seus julgamentos da História, pois ao mesmo tempo em que se envolviam com a decadência, todos os racistas se diziam descendentes de deuses, ou de sangue puro, ou de raças imaculadas, ou coisa parecida.

Gobineau foi o primeiro a proclamar que “a queda da civilização é devida à degeneração da raça, e o decaimento da raça é devido à mistura de sangue” (op. cit., p. 172), o que lhe valeu um sem-número de seguidores até a metade do século XX.

Este ponto de vista não deixa de espantar até hoje. Nas palavras de Gobineau, um povo como o brasileiro seria então decadente por seu próprio sangue mestiço e não por suas instituições. Foi uma inversão no pensamento primitivo, onde para os romanos a mistura das raças tendia a construir espécies humanas mais resistentes e melhores, seguindo o pensamento grego, persa e mesopotâmio.

ARENDT conclui que para Gobineau, em toda a mistura racial, a raça inferior é sempre dominante. E o que é pior, a própria doutrina entrava em choque com o darwinismo e sua concepção da ‘sobrevivência do mais apto’.

O passo seguinte foi a teoria eugenista, que visava melhorar a espécie humana pelo conhecimento e manipulação da sua reprodução. Este lado otimista parece ter durado algumas décadas até fazer água com a segunda grande guerra nos experimentos nazistas. Os evolucionistas darwinistas já haviam confessado sua fé no futuro radioso do homem. A possibilidade de selecionar a herança genética iria criar o ‘gênio hereditário’, com uma nova aristocracia nascida da seleção natural de linhagens puras — algo muito diferente da bioengenharia e das pesquisas com células-tronco dos dias atuais. A eugenia aparece como uma confiança na ciência e na superação de moléstias, e termina no fiasco de servir de aparelhamento ideológico ao nazismo.


Os movimentos pan

Entretanto, para compreender o totalitarismo, uma das análises importantes de ARENDT está em seu estudo sobre os movimentos pan, em que disseca o surgimento de dois movimentos nacionalistas: o pan-germanismo e o pan-eslavismo. O pan-germanismo teria dado origem ao nazismo, e o pan-eslavismo teria originado o bolchevismo. No nazismo, o pan-germanismo representou o nacionalismo alemão, e no bolchevismo, o pan-eslavismo criou o espírito da ‘revolução em um só país’ estabelecido por Stalin.

Ambos eram movimentos antissemitas. Os movimentos pan tinham apelo popular intenso, eles procuravam representar a consciência do povo dentro dos marcos do estado-nação. O solo fértil era a exploração de movimentos tribalistas, de sentimentos chauvinistas, e apoio a frustrações locais e de inspiração política. Entretanto, como os judeus formavam uma comunidade cosmopolita, sem interesses paroquiais, não se deixaram sensibilizar pelos movimentos pan, e essa realidade contrastava com o método de classes de ARENDT que, não conseguindo incluí-los na análise protomarxista, então os considerou como um estrato social oscilando entre os parvenus e os párias, em um momento histórico que antecede sua assimilação na fase do imperialismo.

ARENDT explora o conflito entre o Estado e a Nação pontificando que, na revolução francesa, o nascimento do estado-nação combinou a declaração dos direitos do homem (um apelo internacional) com as demandas da soberania francesa (uma questão nacional). Com isso, a soberania ficava vinculada à lei nacional e não aos direitos do homem.

“Os mesmos direitos essenciais foram inicialmente reivindicados como uma herança inalienável de todos os seres humanos e uma herança específica das nações, a mesma Nação era assim declarada estar sujeita a leis, as quais supostamente provinham dos Direitos Humanos, e soberana, isto é, ligadas pela ausência de leis universais e reconhecendo que nada era superior a ela mesma. O resultado prático desta contradição era que a partir de então os direitos humanos eram protegidos e aplicados somente como direitos nacionais e que a natureza intrínseca do estado, cuja suprema tarefa foi proteger e garantir ao homem seus direitos, como cidadãos e nacionais, perdeu sua aparência legal, racional e pode ser interpretado pelos românticos como a representação nebulosa de uma ‘alma nacional’ a qual através do próprio fato de sua existência era suposta estar além ou acima da lei. A soberania nacional perdeu sua conotação de liberdade do povo e foi cercada por uma aura pseudomística de arbitrariedades ilegais“ (op. cit., p. 230-231).


“O nacionalismo sempre preservou esta lealdade íntima inicial ao governo e quase nunca perdeu sua função de preservar um balanço precário entre a nação e o estado por um lado, e entre os nacionais e uma sociedade atomizada por outro lado. Os cidadãos nativos de um estado-nação frequentemente olhavam contrariados para os cidadãos naturalizados, aqueles que receberam seus direitos por lei e não pelo berço, do estado e não da nação; porém não foram tão longe em propor a distinção pan-germânica entre ‘Staatsfremde’, estrangeiros para o estado, e ‘Volksfremde’, estrangeiros para a nação, a qual foi incorporada mais tarde na legislação nazista” (ARENDT, p. 231).

Nos movimentos pan, isso se relaciona à noção de origem divina dos povos, em oposição à fé judaico-cristã da origem divina do homem. “O racismo, que negava a origem comum do homem e repudiava o propósito comum de instituição da humanidade, introduziu o conceito da origem divina de um povo em contraste com todos os outros, encobrindo assim o produto temporário e mutável do esforço humano com uma nuvem pseudomística de finalidades e eternidades divinas” (ARENDT, p. 234). Diferenciando os seres humanos como se fossem espécies de animais, o “tribalismo dos movimentos pan com seu conceito de ‘origem divina’ de um povo devia grande parte do seu apelo ao seu desprezo pelo individualismo liberal, o ideal da espécie humana e a dignidade do homem” (ARENDT, p. 235).

Eis aí como se coloca em marcha o fascismo: a raça assume a identidade, e não as noções abstratas de liberdade, igualdade e fraternidade.

“O desprezo pela lei torna-se uma característica de todos os movimentos. Embora mais bem articulado no pan-eslavismo do que no pan-germanismo, ele refletia as condições reais de governo tanto na Rússia como na Áustria-Hungria [...] Legalmente, o governo pela burocracia é um governo por decretos, e isto significa que o poder, que no governo constitucional apenas aplica a lei, se torna a fonte direta de todas as legislações. Além disso, os decretos permanecem anônimos (enquanto as leis podem ser atribuídas a homens específicos ou assembleias) e, portanto, parecem fluir de uma potência dominante tal que não necessita de justificativas [...] O administrador considera a lei como sendo impotente porque ela por definição está separada de sua aplicação. O decreto, por outro lado, não existe como tal enquanto não for aplicado; ele não necessita justificação exceto aplicabilidade” (ARENDT, p. 243-244).

“O povo governado por decreto nunca sabe o que lhe governa por causa da impossibilidade de entender os decretos em si mesmos e a cuidadosa ignorância organizada das circunstâncias específicas e seus significados práticos no qual todos os administradores mantêm seus subordinados [...] Governar por decreto tem vantagens notáveis para a dominação de vastos territórios com populações heterogêneas e para uma política de opressão. Sua eficiência é superior simplesmente porque ignora todos os estágios intermediários entre a publicação e a aplicação, e também porque evita o raciocínio político do povo através da ocultação da informação [...] É mais proveitoso para o estabelecimento de uma administração centralizada porque ele sobrepuja automaticamente todos os assuntos de autonomia local” (ARENDT, p. 244).

Note que o totalitarismo está se fazendo visível através da cristalização do mito do legislador sábio — ideia tão recorrente em Montesquieu e em seus contemporâneos. A ideia do legislador sábio foi talvez a matriz do classicismo, uma forma de interpretar a história no passado, em que se supunha que as civilizações atingiam alto grau de desenvolvimento pela qualidade de suas leis e não pelas oportunidades, diligência e liberdade de seu povo. A sabedoria das leis, a genialidade do legislador, a sagacidade dos mestres foram utilizadas pelo totalitarismo no desprezo e combate à democracia parlamentar.

“O governo pela burocracia tem que se distinguir do mero crescimento e deformação dos serviços públicos que frequentemente acompanham o declínio do estado-nação — como se observa na França. Ali a administração sobreviveu a todas as mudanças no regime desde a Revolução, e entrincheirada qual um parasita no corpo político, desenvolveu seus próprios interesses de classe e tornou-se um organismo inútil cujo único propósito parecia ser a tramóia e a prevenção do desenvolvimento econômico e político normal” (ARENDT, p. 244).


Como tudo começou

O mergulho europeu no totalitarismo inicia com a primeira guerra mundial. Mais que a demolição de estados, a guerra dá origem a minorias sem estados, opressão de povos sobre outros, libertação de etnias e reorganização de estados nacionais.

“É praticamente impossível, até mesmo nos dias atuais, descrever o que de fato aconteceu na Europa no dia 4 de agosto de 1914. Os dias antes e os dias depois do início da Primeira Grande Guerra estão separados não como o final de um velho e o início de um novo período, mas como o dia anterior e o posterior a uma explosão. Ainda assim, essa figura de linguagem é inacurada como todas as outras, porque a quietude do pesar que se estabelece depois de uma catástrofe nunca mais passa.

A primeira explosão parece que disparou uma reação em cadeia que nunca nos envolveu antes e que ninguém parecia capaz de parar. A Primeira Grande Guerra explodiu a comunidade Europeia de nações, além de qualquer reparo, algo que nenhuma outra guerra jamais fez. A inflação destruiu toda uma classe de pequenos proprietários, além da esperança de recuperação ou nova formação, algo que nenhuma crise monetária jamais fez de forma tão radical anteriormente.

O desemprego, quando surge alcançando proporções fabulosas, não estava mais restrito aos trabalhadores, mas se apoderado de todas as nações a menos de insignificantes exceções. As guerras civis que se seguiram e se espalharam pelos vinte anos de paz inquieta foram não apenas sangrentas e mais crueis que suas predecessoras; elas foram seguidas por migração de grupos que, ao contrário de suas antecedentes nas guerras religiosas, não eram bem-vindas em lugar algum e não podiam ser assimiladas onde quer que fosse.

Uma vez abandonado o torrão natal, eles permaneciam sem teto, uma vez que deixavam seu estado, eles se tornavam apátridas; assim, que se sentiam desprovidos dos direitos humanos, se tornavam sem-direitos, a escumalha da terra. Nada do que tinha sido feito, não importa o quanto estúpido, não importa quantas pessoas sabiam e anteviram suas consequências, poderia ser desfeito ou prevenido. Cada evento tinha a finalidade de um último julgamento, o julgamento que não tinha sido dado por Deus nem pelo Diabo, mas que parecia como a expressão de uma irremediável e estúpida fatalidade” (ARENDT, p. 268).

A fachada do sistema político europeu foi sacudida deixando exposto o sofrimento de inumeráveis grupos humanos, que de repente não tinham mais direitos. A sanidade parecia ter evaporado e cessada a guerra, acalmado o conflito, as consequências políticas do ódio social destilado não se detinham mais. Era um quadro de desintegração social mais visível nos países derrotados do que nos vitoriosos. A queda do império austro-húngaro e da monarquia czarista deu lugar a uma Alemanha humilhada e a uma Rússia esfacelada. O rompimento do sistema de coerção legal que antecedeu a guerra coloca Tchecos contra Eslovacos, Croatas contra Sérvios, Ucranianos contra Poloneses. Por sua vez, as perseguições contra as minorias em seu próprio território se tornam um lugar comum. Minorias húngaras sendo perseguidas na Eslováquia, minoria alemã perseguida no território Tcheco, na Ucrânia e no Tirol italiano. A emergência das minorias no novo desenho político europeu obrigou os governos a negociarem os Tratados das Minorias.

“A desnacionalização tornou-se uma arma poderosa na política totalitária e a inabilidade constitucional dos estados-nação europeus em garantir os direitos humanos àqueles que tiveram os direitos à nacionalidade perdidos, tornaram possível para os governos persecutórios impor seus padrões de valores sobre seus oponentes. Aqueles que os perseguidores consideravam a escumalha da terra – Judeus, Trotskistas, etc. – eram de fato recebidos como escumalha em qualquer lugar que fossem; aqueles que a perseguição considerava indesejável tornavam-se de fato os indeserábles da Europa” (ARENDT, p. 269).

ARENDT afirma que cerca de 50% dos europeus eram populações frustradas do ponto de vista da representação no novo mapa europeu (na Polônia, apenas 60% eram poloneses). Outros autores estimaram que antes de 1914 havia 100 milhões de europeus cujas aspirações nacionais não eram satisfeitas. Veja o mapa dos idiomas falados dentro das regiões para ter uma ideia do problema de deslocamento das populações relativamente ao território (Ver a tabela: Linguistic Distribution). Todavia, os representantes das grandes nações achavam que as minorias seriam assimiladas ou liquidadas a despeito do trabalho que era feito pela Liga das Nações no sentido de implantar tratados de minorias (Minority Treaties: Wikipedia).

Uma análise superficial do problema dos refugiados da primeira grande guerra, e de seus desdobramentos, como a revolução bolchevique, ocuparia dezenas de páginas. Os problemas políticos eram tantos, as populações exiladas eram tais que em todos os lugares, da Grécia à Holanda, da Espanha à Rússia, as diferentes etnias disputavam espaços e poder político, reconhecimento e proteção, acordos e direitos garantidos pela Liga das Nações, de forma tal que o ambiente europeu parecia totalmente absorvido por suas populações deslocadas. Periodicamente, esses deslocamentos chegavam a uma situação de alívio com as migrações em massa para as Américas, mas quando pareciam o ponto de extinção de um incêndio debelado em algum lugar, recomeçava em outro. Em 1956, Arendt surpreende o leitor ao dizer que:

“Virtualmente, como todos os eventos do nosso século, a solução para o problema judaico meramente produziu uma nova categoria de refugiados, os Árabes, desse modo aumentando o número de apátridas e refugiados em mais 700 a 800 mil pessoas. E o que aconteceu na Palestina dentro de um pequeno território e em termos de centenas de milhares foi então repetido na Índia em uma escala ainda maior envolvendo muitos milhões de pessoas. Desde os Tratados de Paz de 1919 e 1920, os refugiados e os apátridas têm se juntado como uma maldição a todos os recentes estados formados na terra que foram criados na imagem de um estado-nação.

Para esses novos estados, esta maldição porta os vermes de uma doença mortal. Pois que um estado-nação não pode existir quando seus princípios de igualdade perante a lei tenham sido quebrados. Sem a igualdade legal, originalmente destinada a substituir as velhas leis da sociedade feudal, a Nação se dissolve em uma massa anárquica de indivíduos super e subprivilegiados. Leis desiguais invertem os direitos e privilégios, uma coisa contraditória com a verdadeira natureza dos estados-nação. Quanto mais claras suas incapacidades para tratar com os povos apátridas como pessoas legais, e maior a extensão das arbitrariedades instituídas por decretos policiais, maior a dificuldade para os estados resistirem à tentação de privar os cidadãos do status legal e governá-los com uma polícia onipotente” (ARENDT, p. 290).

“A primeira perda que os sem-direitos sofreram foi a perda de suas casas, e isso significa a perda de todo um tecido social no qual foram nascidos e estabeleceram como um lugar distinto para viver no mundo [...] o que torna isso sem precedência [com outros períodos históricos] não foi apenas a perda da casa, mas a impossibilidade de encontrar uma nova [...]. A segunda foi a perda de proteção governamental, e isto não implica apenas na perda de status legal em seu próprio país mas em todos os países ” (ARENDT, p. 293-294).

Esta era uma situação ainda pior do que os inimigos capturados que desfrutavam direitos à proteção legal, enquanto os apátridas eram vistos como um estorvo onde quer que fossem. Assim, quanto maior o número de refugiados, menor a atenção às perseguições de que eram vítimas, e maior a hostilidade contra os recém-chegados. Os acontecimentos derivados da agitação política dos anos 20 levam ao progressivo declínio dos direitos do homem. As instituições – não conseguindo dar resposta às demandas do povo – tornam-se objeto de desprezo pela chusma na atuação parlamentar, nos procedimentos legais, nos fundamentos do tênue estado de direito que vinham arduamente tentado se estabelecer na Europa do pós-guerra.

Enquanto na Alemanha de Hitler o racismo serve de fio condutor para a aceitação e exclusão social, aliado à definição clara e precisa do inimigo, como os judeus, os comunistas e demais povos eslavos, na Rússia de Stalin a perseguição à oposição era arbitrária, sem uma lógica de segurança nem mesmo entre aqueles que se cercavam do Estado, como os membros da polícia. Contrariando toda a expectativa da revolução soviética, de construir um poder para os soviets, a ideologia russa se transforma em um nonsense ao destruir toda a lógica de adesão pela recorrência de arbitrariedades, em que o poder se torna culto da personalidade de um único mandatário, exigindo o sacrifício de toda a liderança e destruindo a noção de política. Somente subsiste um corpo amorfo e indiferenciado de burocratas fugidios, desconfiados e dissimuladores.

Na Rússia de Stalin não existiram as diferentes interpretações do socialismo. Não podia um revolucionário ter uma ideia diferente sobre o oficialismo. Cada revolucionário da velha estirpe, derrubado sob a acusação estapafúrdia de conspirar contra o socialismo, se tornava inimigo público imediatamente, às vezes carregando consigo até seus amigos. A eliminação da velha guarda, como Zinoviev, Kamenev, Trotsky e Bukharin, fez com que as pessoas aprendessem a se isolar, evitando buscar refúgio em amizades seguras. E isso significava extirpar a política de uma população que havia levado a própria concepção de política à sua vibração máxima.

E o mais assombroso de tudo é que o poder espetacular criado por Hitler e Stalin de nada serviu depois de suas mortes. Nada sobrou do edifício político construído em torno de suas ideias. Na Alemanha, a derrota e confinamento do nazismo a pequenos grupelhos delinquentes espalhados pelo mundo reduziram o culto ao nazismo a um fenômeno psicopático. Na Rússia, após as denúncias de Nikita Kruschev sobre os crimes de Stalin, no XX Congresso do PCUS, a nova geração de secretários-gerais tratou de se afastar de Stalin como o diabo da cruz. Caído o edifício político soviético, descobrimos que ainda revive em pequenos grupos descendentes de privilegiados do regime, com pouca ou quase nenhuma expressão política, acobertados nas cinzas da incapacidade russa de livrar-se do entulho oligárquico-estatal.

E, no entanto, como observa ARENDT, não se pode subestimar a capacidade de Hitler de seduzir as massas e a de Stalin de organizar conspirações. Na verdade, os dois lados da moeda subsistem. De um lado, a personalidade quase tosca dos dois maiores tiranos. De outro, seus méritos de criar o fato político a seu favor e açambarcar uma fatia do poder no ascendente percurso de dominação total.

Deve-se observar que, em 1933, Thomas Mann deixou a Alemanha por achar Hitler destituído de qualidades intelectuais mínimas e incapaz para o exercício do poder. Esta declaração causa surpresa até hoje, pois se sabe que Hitler tinha grande carisma, e que seus discursos eram realmente suscitadores de fortes emoções. Da mesma forma, comparativamente a outras lideranças bolcheviques, Stalin tinha capacidade intelectual bem mais inferior. Em um debate, sequer podia ombrear a fluência de Trotsky no uso da palavra e no preparo intelectual.

Mas, no entanto, quase sempre se subestima a capacidade de conchavos e acordos para uma estratégia de fortalecimento pessoal na máquina do poder. Pequenos golpes contra aliados, assassinatos pontuais de companheiros mais preparados, denúncias, intrigas e fraudes nos bastidores vão corroendo o prestígio dos melhores e pavimentando o caminho para a astúcia e a obsessão dos medíocres pelo poder, que, assim, se vai transformando num conglomerado de indivíduos servis, a quem a mesquinhez é sempre substituída pela lisonja verbal e gratificações materiais. No processo de consolidação do poder, paulatinamente, o servilismo vai construindo o totalitarismo. Para Nietzsche, o Estado tem impressionante capacidade de atrair homens supérfluos. E quando tudo parece realizado, o monstro começa a devorar suas próprias criaturas.

Nos processos judiciais de Moscou, velhos militantes acusados de crimes que jamais imaginaram cometer eram persuadidos pela NKVD a confessar a culpa pelas acusações, sob o argumento de que o Partido não poderia estar errado, e de que a melhor maneira de ajudar a revolução era admitir a culpa: -“Se você está a favor do governo soviético, como você pretende estar, prove por suas próprias ações; o governo necessita de sua confissão”. E como o acusado se negasse a participar da farsa, era espancado até assinar a confissão imputada, que para os russos poderia ser ato de sabotagem ou espionagem para qualquer país no cardápio dos inimigos da hora.

É o que constatamos na versão tupiniquim das eleições presidenciais de 2010. Pego em flagrante delito, o PT procura culpar o próprio PSDB pelas violações na Receita Federal dos sigilos fiscais de membros da família Serra e executivos do partido. Isso não é um truque, mas a essência da mente totalitária, que na atividade política visa à destruição dos inimigos no lugar da persuasão de idéias inerente a mente democrática.

Uma das diferenças entre ideais democráticos e totalitários reside justamente aí: o ideal democrático (construído em torno das ideias de um partido político) tem que triunfar pela persuasão. Não há outra saída; já o ideal totalitário, mais voltado para a organização do que para a persuasão, tem que se travestir em democrático para conseguir sua máxima aceitação. Como precisa resolver o conflito entre o que aparenta ser e o que pretende ser (dominar absolutamente a vida política), somente a organização vai fornecer o instrumental necessário para a luta política: a difamação, a intimidação, a calúnia e a destruição sistemática da reputação moral do adversário. Daí porque o aparelhamento do Estado é condição de sobrevivência política de todo o partido totalitário.

Na Rússia de Stalin, havia uma obsessão quase paranóica pelos documentos, pela legalidade dos atos e procedimentos policiais. Independentemente do município ou distrito da União Soviética, os arquivos da NKVD (depois KGB) tinham que estar em perfeita ordem. Os cidadãos fichados tinham relacionadas suas amizades e os locais que frequentavam. Quando solicitadas pela hierarquia superior, essas fichas eram prontamente fornecidas e utilizadas como reveladoras da cumplicidade em crimes imputados aos relacionamentos denunciados pela rede de informantes. Isso permitia estender os expurgos a tantos “culpados” quanto fosse a encomenda de mão-de-obra para os campos de trabalhos forçados. E todos, sem exceção, confessavam as mesmas imputações: sabotagem, espionagem, traição. Era um conjunto de formulários que enquadravam o “culpado”, conforme o expediente do partido.

Um dado importante para entender o totalitarismo que ARENDT não chegou a especular, consiste no fato de que na União Soviética a polícia política desempenhava a função que nos países democráticos é repartida entre os poderes: a de prender, investigar, culpar e executar a sentença. Uma vez confirmada a “culpabilidade”, o acusado assinava a confissão de culpa forçado que era pelo impedimento do sono, cansaço, tortura e espancamento contínuo, a que era submetido segundo a personalidade do inquisidor e da pressa na obtenção da culpa.

A confissão era então enviada ao órgão superior da polícia, que atribuía a sentença. Em muitos casos, baseado no código penal existente, o próprio policial que obtinha a assinatura do acusado sob tortura aplicava a pena. Se o acusado tivesse colaborado e mostrado menos resistência, sua pena podia ser atenuada, mas quando se mostrava relutante suportando bravamente a tortura, teria uma pena muito maior quando enfim terminasse aceitando a acusação, a critério da própria polícia transformada em judiciário.

Deve-se ressaltar, entretanto, que os graúdos do partido comunista processados a mando de Stalin, que queria se ver livre da velha guarda e assumir sozinho os despojos da revolução bolchevique (Bukharin, Kamenev, Zinoviev, Mrachkovsky), passavam por um procurador de justiça especialmente treinado para imputar o sentimento de culpa e, ao fim, decidir pelo tiro na nuca nos porões de Liubianka.

Estranhamente milhares de acusados confessavam os mesmos delitos e, a julgar pelos dados obtidos das confissões, nenhum país em nenhum momento histórico teve tantos espiões atuando em seu território como a União Soviética, no período de 1932 a 1948.

A similaridade entre nazismo e comunismo era reconhecida por Hitler de um lado, e por Stalin de outro: Hitler afirmava que “em nosso movimento, os dois extremos se juntam: os comunistas à esquerda e oficiais e estudantes à direita. Estes dois sempre foram os elementos mais ativos [...] os comunistas eram os idealistas do socialismo...” (ARENDT, p. 309). Stalin confiava plenamente no Tratado Molotov-Ribbentrop, um pacto de não agressão feito com Hitler em 1939.

No pós-guerra, numerosos exemplos mostraram que, ao contrário de propagandas feitas pelo próprio Stalin, Hitler nunca pretendeu defender o Ocidente contra o bolchevismo, mas que sempre esteve disposto a se unir aos ‘vermelhos’ para destruir o Ocidente – mesmo depois de ter invadido a Rússia, e suas tropas misteriosamente terem estacionado em Smolensk, quando poderiam ter atingido Moscou e facilmente prender Stalin. A este respeito, ARENDT (p. 310) cita o ‘Discurso sobre Stalin’ de Kruvchev: “sabemos que Stalin tinha sido advertido repetidamente do ataque iminente de Hitler contra a União Soviética. Mesmo quando o adido militar soviético em Berlin informou-o do dia do ataque nazista, Stalin se recusou a acreditar que Hitler violaria o tratado” Molotov-Ribbentrop.

A repressão causada pelos expurgos e assassinatos de generais e quadros técnicos russos chegou a tal ponto que a Rússia estava completamente vulnerável, conforme testemunha Kravchenko em seu livro ‘Escolhi a Liberdade’ (1949). Em 1937, a população russa deveria ser de 171 milhões de habitantes, mas tinha apenas 145 milhões, ou seja, cerca de 30 milhões desapareceram na Sibéria.

Estas observações contestam as informações divulgadas pelos comunistas de que teriam sido os principais perseguidos por Hitler na Alemanha. Ora, do ponto de vista do poder, é óbvio que Hitler teria que destruir todos os movimentos, pois se não o fizesse não seria ditador absoluto. O mesmo valia para Stalin. A pressuposição de um regime totalitário é a de destruir todas as forças políticas, não só as contrárias, mas, inicialmente, as mais fortes e, depois, as mais fracas, até reduzir o tecido político a um servilismo indiferenciado.

Outra coisa era a política de Estado decorrente. Para os russos da época, foi um escândalo, uma vergonha nacional, Ribbentrop ter sido recebido com uma banda de música tocando o hino nazista quando desembarcou no aeroporto de Moscou. Mas como política de Estado, o Tratado Molotov-Ribbentrop assegurava uma atmosfera de pacificação entre os dois países e deixava Stalin numa posição grotescamente confortável para seguir destruindo a Rússia.

Arendt insiste em que os governos totalitários desfrutam de sucesso entre as massas durante certo tempo, até entrarem em crise. Assim, os regimes democráticos, construídos sobre um sistema partidário múltiplo, com maioria silenciosa e não partidarizada valendo como legitimadora das disputas políticas,

“logo cedem lugar a grupos organizados que invadem parlamentos demonstrando todo o seu desprezo pelo governo parlamentar e tentando convencer o povo que as maiorias parlamentares são espúrias e que não correspondem necessariamente à realidade do país, com isso sabotando o auto-respeito e a confiança dos governos que ainda acreditam mais na regra da maioria do que em suas constituições. Tem sido apontado frequentemente que os movimentos totalitários usam e abusam das liberdades democráticas a fim de aboli-las” (op. cit., p. 312).

“A indiferença aos assuntos públicos e a neutralidade em questões políticas não são causas suficientes para a ascensão de movimentos totalitários...” (op. cit., p. 313).

Sempre que as massas adquirem apetite pela organização política, cresce o perigo do totalitarismo. Arendt deixa claro que uma sociedade democrática se fundamenta na desarticulação dos indivíduos da política partidária e militante. Nessa sociedade, os indivíduos estão ocupados com sua sobrevivência, atentos às suas profissões, envolvidos com suas tarefas cotidianas, preocupados com seu emprego, família e parentes.

Quando uma crise age na desestruturação da normalidade existencial, os indivíduos começam a se antenar para entender o que está havendo de errado em sua comunidade ou país. O apetite político aumenta, pessoas que antes viam o mundo político com indiferença, agora são parte dele, querem uma satisfação para suas angústias e perdas. Organizações antes vistas pelo indivíduo até mesmo com antipatia, agora passam a ser um apoio e logo a adesão a elas se torna natural. ONGs e sindicatos, que já acolheram a ralé de todas as profissões, desajustados de todos os tipos, agora estão aumentando em envergadura e expressão eleitoral. Em pouco tempo, a propaganda oficial fará o serviço de converter indiferentes em militantes, recalcitrantes em simpatizantes.

Ensina ARENDT (p. 341): as massas só são ganhas pela propaganda. Na fase dos governos constitucionais, e com “liberdade de opinião, os movimentos totalitários em luta pelo poder podem usar o terror somente em uma extensão limitada, ao mesmo tempo em que lutam com os demais partidos para ganharem militantes e parecerem plausíveis para o público que ainda não está totalmente isolado de todas as demais fontes de informação”.

Propaganda e terror são dois lados da mesma moeda: não existe violência sem propaganda que a justifique, como conhecemos das ações do MST. Um corpo doutrinário, com explicações sociológicas, práticas, e até ontológicas, é constantemente inoculado na militância para cumprir ações terroristas com a isenção moral necessária a seu objetivo final. As táticas temporárias são baseadas na aceitação dos princípios de justiça revolucionária, dos deveres dos militantes para com a sociedade demonstrados pela lealdade à organização.

A propaganda totalitária se refere à história como uma sucessão de eventos que leva a um fim único e determinista. ARENDT não associa marxismo com religião, mas, na mesma época, o tema foi abordado por Arthur Koestler, e também por Karl Popper em seu monumental trabalho ‘A Sociedade Aberta e seus Inimigos’. O determinismo, ou historicismo (para Popper), ou simplesmente propaganda ideológica, eram afirmações de Stalin: “quanto mais acuradamente reconhecemos e observamos as leis da história e da luta de classes, mais nos moldamos ao materialismo dialético. E quanto mais discernimento temos do materialismo dialético, maior será o nosso sucesso” (cit. ARENDT, p. 346).

Para ARENDT, a noção de liderança correta e clarividência de direção era o ingrediente da propaganda comunista para moldar a militância às posições dos dirigentes. O jornalista e ex-militante da UNE no pós-guerra, Fernando Pedreira, em depoimento a estudantes encontrado na Internet sobre o projeto de Memória da UNE, conta como se surpreendeu e começou a trocar de opinião sobre o marxismo, quando algumas notícias publicadas nos jornais eram diferentes do que havia testemunhado pessoalmente. Confrontando membros do PCB nas redações dos jornais, recebeu a assombrosa observação de que a verdade era aquilo que o partido dizia, e não o que teria acontecido per se. A partir daí, começou a perder a fé no marxismo, conta ele em seu depoimento.

O fanatismo com que certos militantes se entregam à causa política se relaciona com a educação religiosa na infância, e seus ensinamentos sobre disciplina, ascese e sacrifício. Um déspota cruel invariavelmente apresenta histórico de perversidade, repressão familiar e frustrações, que o conduzem a tendências de racismo, intolerância e violência justificada. Líderes absolutos arrogam-se ao direito da infalibilidade. Para eles, a correta interpretação dos fatos tem força de profecia. A megalomania, ou a delinquência, levam a predições infalíveis consentidas por uma militância comovida pela causa e sensibilizada pela ‘sabedoria do seu líder’. É o momento em que o totalitarismo sequestra a fé religiosa e se transforma em crença política.

A linguagem da verdade científica profética corresponde às necessidades das massas. Os nazistas se jactavam de moldar a vida do povo alemão e a legislação de acordo com os vereditos da genética. Os estalinistas invocavam o materialismo dialético e os interesses do proletariado como uma mística sagrada. A mente marxista não existiria se não estivesse sequestrada pelo determinismo histórico. A certeza do futuro, a garantia de que a vitória do comunismo seria inexorável, fundamentava o julgamento sobre os acontecimentos. Quando contrariados pela derrota, esta era então explicada como a fase transitória de um momento histórico fadado a se repetir até a vitória final. E para explicar as perdas humanas, em consequência da derrota, atribuíam à inevitabilidade ou ao necessário sacrifício humano a que todos deveriam estar preparados até que a causa fosse enfim conquistada.

Este é um aspecto curioso da mente totalitária. A indiferença pela perda de companheiros, em manifestações e confrontos com a polícia, levou muitos simpatizantes a perceber a crueldade dos dirigentes comunistas que não reconheciam estarem errados, ou que deveriam ter agido de outro modo.

Além disso, o determinismo histórico eliminou toda a autocrítica relativa à busca da verdade, porque a verdade se torna irrelevante quando abrigada no vale-tudo dos fins que justificam os meios. Dessa forma, pode ser plenamente justificado falsificar os fatos tendo em vista a pureza dos fins. Isso terminou definindo o caráter dos movimentos totalitários e foi a principal causa das defecções dos seus seguidores minimamente ilustrados.

Em algum momento, a tensão entre a grandeza moral da teoria e a baixeza moral da prática vai requisitar os componentes do caráter de cada um para fazer o balanço das contradições. É o momento em que a satisfação pessoal e as conveniências econômicas vão entrar em choque com a moralidade individual. A obsessão pelo poder, pelo cargo ou pela simbologia do movimento pode provocar uma relativização tal que o indivíduo termina vendendo a alma ao diabo e se entregando à conveniência do mar de lama, ou então, baseado em seus valores éticos e integridade, rompe com o movimento.

No espectro possível das variações da mente humana, entre todas as diferenças individuais, podemos admitir que os extremos são os mais diferenciados e que nem todos sucumbem integralmente ao papel de algozes de sua própria respeitabilidade, permanecendo na sombra ou no limbo do compromisso, nunca abdicando abertamente, e tampouco rompendo claramente.

Mas, os piores mercenários, as cabeças de aluguel, os exércitos constabulários contra qualquer país se criam com os ingredientes do totalitarismo. Os mesmos que se apetrecham para manchar a reputação de inocentes e difamar pessoas honradas são os que não têm freios para — frente ao partido — se dedicar a louvações vexaminosas, à adulação rasteira e ao otimismo obrigatório. No poder, essas pessoas serão replicadoras do método de Stalin: “sempre tomar o cuidado em dizer o contrário do que fez e fazer o contrário do que disse” (ARENDT, p. 362). Talvez seja por isso que o falar de certa mente feminina, em evidência na campanha política de 2010, é quase só um tartamudear de bulgarolices.


Totalitarismo brasileiro em construção

Tudo começou na ditadura militar moribunda de 1964, onde um marxismo perseguido e multifacetado passa a trabalhar socialmente como proselitismo de uma causa que precisa de vínculos com organizações sociais. Encontra nos sindicatos obrigatórios uma dádiva dos céus para aprofundar raízes.

O peleguismo tradicional precisa ser substituído com o método de se dizer o contrário do que se vai fazer. Inicialmente, criticando a obrigatoriedade do imposto sindical – atitude importante para provocar simpatia na sociedade. A imprensa saúda o movimento como renovador da velha tradição fascista. O prestígio começa a fluir para líderes que não são mais do que apedeutas e marionetes. Em seguida, formados os sindicatos mais importantes, uma nova lei sindical vai dar organicidade às confederações, federações e entidades coligadas com, naturalmente, imposto sindical obrigatório, o contrário do que se dizia. Nos sindicatos, a fachada de modernidade se desmancha na prática do atraso. Agora o que se pretendia combater foi invertido.

Na intimidade da mente totalitária, ocorrem as inversões praticadas por Stalin: “sempre tomar o cuidado em dizer o contrário do que fez e fazer o contrário do que disse”. É a sociopatia juntando má-fé e compulsão para mentir, mas que rende extraordinários resultados eleitorais ao sistema. No poder, o partido precisa construir a todo custo uma maioria eleitoral para impedir a alternância. Essa maioria não virá de partidos políticos, mas de organizações sociais. O partido passa a controlar diretamente os sindicatos, impedindo por decreto a auditoria das contas sindicais pelos órgãos do Estado (TCU). Nos comícios, o partido convoca os sindicatos para uma demonstração de força, que assim demonstram sua subserviência ao poder. Comandando a turba, juntamente com as organizações sociais, estão os movimentos liderados por funcionários de entidades e empresas estatais.

Organizações sociais, do tipo MST e Via Campesina, já demonstraram o novo modelo de fascismo no campo: ao arbítrio de seus líderes, propriedades invadidas são acobertadas pelos vínculos partidários nas estatais, que fornecem a legalidade instrumental para declarar terras improdutivas, independentemente de sua real situação, e a liberdade para os saques. Um exército de mercenários sustentado por verbas da reforma agrária se mobiliza contra o trabalho agrícola de larga escala, retalhando a propriedade invadida em casas de campo para seus dirigentes, ou repassando a propriedade a terceiros, que, por sua vez, terminam gerando quase nenhuma produtividade. Verbas generosas salvam o movimento que aumenta seu contingente em todos os Estados da federação. Com pretexto para mobilizações, repetem que querem a reforma agrária, mas não querem coisa nenhuma.

Tudo isso é apenas fachadismo, um mito imaginário de justiça agrária para boi dormir. Esperamos pela alternância do Poder para algum dia virem à tona os cálculos do que se gastou com a reforma agrária desde a época FHC, e do quanto se produz nas propriedades desapropriadas. Aí então vamos calcular o quanto custou ao povo brasileiro o feijão da reforma agrária, e vamos desmascarar o mito dividindo a produção pelo dinheiro gasto historicamente. Vai ser uma comédia de erros ou mais uma conta para o desperdício espetacular dos recursos públicos do nosso sistema político.

Na genealogia do totalitarismo, uma crise econômica rompe a indiferença dos indivíduos para com a gestão governamental. Ao mesmo tempo, a delinquência política aumenta, os bodes expiatórios se sucedem, reconhecidos picaretas assumem o comando de instituições públicas. Um misto de besteirol com corrupção deslavada, de negociatas com agitação trabalhista, de cinismo com estupidez acomete a Nação.

Aparecem soluções salvacionistas. A levedura fascista borbulha com o esbravejar espumante de aventureiros, falidos, oportunistas, matusquelas, celerados ideológicos e o diabo-a-quatro. Às vezes, parece que a insanidade toma conta da Nação, e vai abrindo espaço para o rasgar sucessivo de leis, de procedimentos e atos legais. Uma onda de calúnia vai manchando reputações, denegrindo a inteligência, acuando a intelectualidade do país. A chusma aplaude entusiástica aquilo que em uma sociedade organizada é vigarice intelectual.

Em certo momento, vem o golpe: fecha-se o parlamento e surge o governo por decreto. Aparelha-se a polícia para limpar a sociedade dos elementos indesejáveis. O totalitarismo, assim como o nazismo, o stalinismo e tampouco o getulismo, não se baseia no poder ditatorial do exército. O governo ditatorial domina o aparato policial que, subordinado ao mandatário, age estritamente sob suas ordens. A neutralização militar é facilmente conquistada nas empresas e agências estatais, ou no lobby privado – o getulismo subornou os militares entregando cargos públicos aos tenentes.

Mesmo assim, o descontentamento entre os setores profissionais das forças armadas torna-se visível em manifestos e circulares. A tensão conspiratória aumenta. Algumas vozes aparecem pedindo intervenção militar, argumentando um totalitarismo irreversível. Outras vozes clamam mais alto pedindo prudência, temerosas de que a intervenção militar possa gerar uma sucessão de eventos incontroláveis. O passado é relembrado como um exemplo a ser evitado. Mas, a cada dia, o presente demonstra que as coisas avançam na direção de tudo piorar, mais do que no passado. No meio do relativismo, quem vai dar a palavra final é o povo que espera ser convocado às ruas.

Enquanto isso, a crise avança. No estado policial aparecem as grandes inversões. Mede-se o mérito pelas denúncias de cidadãos contra os inimigos do povo ou da nova ordem. Oferecem-se recompensas pela captura dos dissidentes. Slogans nacionalistas, refrões musicais, gingles do governo e propagandas acintosas produzem a lavagem cerebral necessária à legitimidade do regime.

A imprensa livre é atacada consecutivamente — jamais ao mesmo tempo. Primeiro, um grupo jornalístico é atingido por uma lei criada contra uma particularidade das empresas de comunicação. Depois, são forjadas fraudes contra outros, intervenções garantem o silenciamento, enquanto novos decretos dão legitimidade ao regime para garantir o avanço de grupos empasteladores que exultam com os novos tempos.

Neste momento, é preciso fechar as vias de informação internacionais. A Internet é constantemente manipulada para bloquear os sites que criticam o novo regime. Para não provocar a reação de toda a sociedade, o fechamento vai se sucedendo em intervalos, enquanto o governo vai ampliando seu poder de penetração no financiamento de novos portais de comunicação, de rádios e jornais, que passam a legitimar o avanço fascista e aumentar o tom de apoio ao governo.

Prisões na calada da noite, espancamentos, confissões forjadas e irradiadas para todo o país envergonham a serenidade do povo e avacalham a sobriedade indispensável à ordem republicana. Quando uma pessoa é invadida em sua intimidade, com propósitos de calúnias e dossiês, logo um exército de mercenários ocupa o maior número possível de espaços de discussão para destruir a respeitabilidade de inocentes. Baseando-se na estratégia de culpar a vítima para jogar na mesma lama violadores constitucionais e inocentes difamados, uma poderosa máquina de jornais e revistas paga com dinheiro público põe-se em ação para enxovalhar pessoas. Desavergonhados riem-se cinicamente do constrangimento de quem tem uma reputação a defender.

O país vive uma constante mudança: currículos escolares, cursos de patavina para valdevinos são prestigiados, concursos literários, poemas exaltando o grande chefe ou o sacrifício dos espoliados pelo antigo regime são consagrados como peças literárias imortais. Uma simbologia estabelece o novo status social para a oligarquia emergente: o regime começa a acumular vaidades.

Entretanto, as coisas começam a dar errado na ordem econômica. Por razões óbvias, o regime não foi capaz de se manter dentro dos limites da sanidade fiscal. E então o plano inclinado da ordem moral revela-se com o mesmo declive na ordem econômica. Os bodes expiatórios começam a dar explicação para o fracasso. Os delinquentes intelectuais voltam-se para o passado, com o pretexto de aliviar a crise com motivações remotas. A história é reescrita para glorificar os dirigentes, o presente e a verdade universal da linha do partido. Mobilizações de massa, comícios gigantescos colocam em ação o aparelho estatal e assumem o espetáculo expiatório da própria decadência do regime em um tom pomposo e solene.

Para salvar as aparências, delegações de economistas saem à cata de empréstimos externos. Uma engenharia financeira é colocada a serviço da empulhação dos déficits e da desconfiança na moeda. A inflação começa a devorar seus filhos mais fracos. Por algum tempo, o regime oscila entre a estabilidade da ordem e o terror patológico da insurreição. Em ritmo não de todo controlado, começam a aparecer os primeiros sinais de descontentamento.

A ordem balança, e a estabilidade fica condicionada à sua capacidade de dar resposta repressiva aos inimigos pontuais. Em todos os locais, a despersonalização aumenta e a expressão espontânea do povo some como por encanto. Todos fazem de conta que não se conhecem, que nunca se viram, que não são uma sociedade interativa, a menos do espírito conspiratório e da insurgência latente.

A sorte do regime está selada com as vagas incertas das circunstâncias internacionais. Ninguém sabe ao certo até quando o festival de arbitrariedades vai durar. Ninguém sabe ao certo se algum dia o país será capaz de se curar da insensatez. Mas a verdade é que, no fundo, no mais recôndito de todos os seres, a esperança não passa de uma vela acesa ao relento.

De repente, uma oposição fragilizada é cooptada na rede da oligarquia perene. O regime, sempre obsequioso em criar vínculos e benesses para arregimentar novos seguidores, sabe que precisa de ‘reformas’ para se revitalizar. E aquilo que era a oposição multifacetada passa a ser situação integrada, maldizendo o passado, cortando gastos, atingindo órgãos perdulários há muito tempo para serem extintos. Refaz-se a moeda, cortam-se os zeros inflacionários para se manter tudo como está em nome de uma constituição que, examinada a fundo, não passa de arranjos vexaminosos.

É o suborno intelectual obtido com recompensas políticas. A perenidade do regime está em sua capacidade de subornar. Subornam-se com viagens, com horas-extras, com cargos de comissão, com um segundo emprego, com vantagens, com retroações de benefícios no tempo, com toda uma maquinaria inexistente no capitalismo, e que faz do regime de iniquidades algo muito melhor do que qualquer coisa jamais descoberta na face da terra para os que participam do reservado círculo do poder.

Cria-se uma linguagem para lastimar a pobreza que o regime solenemente criou: nela, palavras-chave como elite, aristocracia, capitalismo, forças ocultas, exploradores, imperialismo ou qualquer outra, formam o glossário mais frequente no vocabulário político expiatório.

Na folha de pagamento dos governos estaduais, 30% do funcionalismo não trabalha, dedica-se ao absenteísmo alternado. Os demais, ao burocratismo feroz. O impedimento é sua marca mais nítida. Departamentos inteiros dedicados a aplicar regras de proibições, discriminações, exceções, de senões e mais senões com certidões, atestados e quetais.

Como casas da mãe-joana, as Assembleias Legislativas desfilam famílias inteiras na folha de pagamento de assessores. Nas prefeituras, em paralelo com os abnegados de sempre, o burocratismo e os maus tratos com o patrimônio público chegam às raias de sabotagem de guerra não declarada. Congresso e Senado são gerenciados por atos secretos. Nas prefeituras e universidades, são comuns salários duplos, triplos, quádruplos. Funcionários fantasmas se acumulam do Oiapoque ao Chuí.

A entropia produzida pela delinquência partidária chega a um ponto tal que as poucas vozes discordantes ficam reduzidas a uma minoria inexpressiva eleitoralmente — é a inteligência do país relegada a uns gatos pingados, o fascismo perene, a sociedade do vale-tudo, o regime que fornece recompensa àqueles a quem a astúcia está associada com as piores qualidade morais.

O dinheiro dos impostos de quase 130 milhões de brasileiros e de milhares de empresas é gasto com 5-10 milhões de funcionários públicos e dependentes, dos quais 1 milhão de privilegiados, e dentre esses, uns 100 mil formam uma oligarquia intocável, inamovível e inimputável. Assim é o regime fascista. Ele se baseia na lógica do consórcio: para se ter uma oligarquia, é fundamental que um não se imiscua no butim do outro, e que haja divisão entre todos. Assim, todos se absolvem e se protegem, igualando-se na mesma promiscuidade libertina.

Doenças intelectuais invadem a consciência da Nação com o empreguismo, o coitadismo, o concessionismo, o assistencialismo, o niilismo, e um sistema político que não se renova, que não se extirpa, sustentado por um judiciário que negocia sua tabela de preços aos cochichos, e que avacalha o bem pensar e a própria lógica com certas absolvições.

A contradição entre a lei e a moral provoca o espírito de depredação do patrimônio público. É o carimbo do brasileiro revoltado. A qualquer momento, e sob qualquer pretexto, aquilo que foi conseguido a duras penas para a população vem abaixo com o vandalismo explodindo pela prática corriqueira da exclusão social e dos privilégios legais. Comportamento anárquico forjado no dia-a-dia do ressentimento.

Estelionatários, fraudadores, peculatários, corruptos, todos se apresentam para o coquetel licitatório de onde sairão os contratos mercantis para a transferência de bens e serviços com descontos por fora, com dinheiro na cueca, com contas offshore, com maletas de mão em mão.

Parece que o princípio marxista de ‘a cada um segundo suas necessidades’ toma conta dos propinistas. Todos cobram uma parte, a corrupção se espalha como uma praga. As eleições são o sintoma evidente. Cabos eleitorais se licenciam dos empregos no magistério com remuneração garantida, migram para os gabinetes de assessorias e cargos comissionados, e se apresentam como organizadores de comícios, de panfletagens, de visitas de candidatos.

A máquina pública é posta em ação para a disputa. Vence o mais forte, o Partido que acumulou mais dinheiro do butim, e mais infraestrutura no aparelhamento estatal. O povo trabalhador contempla estupefato entre a sandice dos discursos e a cara-de-pau dos pretendentes. Às vezes, parece que certos candidatos não têm superego, pois, tomados pela pusilanimidade e desfaçatez do momento, lhes falta o recato inerente à vida social. Seus discursos são torpezas pronunciadas no maior descaramento.

Quando afinal os desmandos atingem o ápice, a Nação está empobrecida, décadas foram perdidas, a produtividade em baixa, os serviços públicos aviltados, e parte do povo moralmente depravada. Nova liderança assume o poder para acabar com os desmandos. E o que se consegue auditar do vendaval de destruição do patrimônio da Nação é muito pouco, tímidas reformas ficaram no meio do caminho.

Mesmo assim, uma nova época é celebrada, novas esperanças ressurgem, um novo otimismo toma conta do espírito da Nação, que já traz embutido o germe de sua destruição pela fraqueza intelectual de seus epígonos ou pela manutenção do ancien régime, sob as cinzas do novo tempo.

O espírito de conciliação faz o estrago previsto ao manter, sob o manto da legalidade, a proteção dos estelionatários. Em nome da paz social, estende-se uma anistia aos velhos prevaricadores, em geral, com aposentadorias integrais — forma de suborno preferida no século XX.

Sob as mudanças introduzidas, tudo melhora desde que se conservem as raízes do atraso, que brotam novamente com o mesmo romantismo da igualdade, da moralidade, da virtude, agora com novos protagonistas, com uma nova geração. Com a tomada do poder, termina o novo ciclo, tudo se dissolve, e se chega à infeliz contabilidade de que o engodo é o mesmo, só mudaram as moscas. Do ponto de vista moral, não cruzamos o século XVIII.

Lampedusamente, tudo muda, tudo se transforma, mas não a ponto de se derrubar a oligarquia perene e se descobrir o virtuoso caminho da grande Nação que nos foi reservada pela natureza.

FIM — 19/9/2010