terça-feira, 20 de abril de 2010

Godofredo Rangel

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo

VIDA OCIOSA - Godofredo Rangel

Apresentação de um conto engraçado de Godofredo Rangel, o amigo íntimo e confidente de Monteiro Lobato durante mais de 40 anos

UMA HISTÓRIA DE CAÇADAS

"Conte-nos uma história de caça, sr. Próspero." Ultimado o conserto das redes, viera o velho sentar-se ao pé de mim. Sentei-me também; e, ainda estrouvinhado do longo cochilo, observava, um tanto abstraído do lugar e da hora, no alto de um portal negro, pequeninos túneis de barro estendidos lado a lado, povoado rústico acrescentado cada dia pela faina construtora dos maribondos. Saindo de seu profundo torpor, o velho papagaio dignou-se abrir um olho vidrento, com que nos inspecionou um instante; em seguida remergulhou na sua imobilidade de ave empalhada.

O sr. Próspero pigarreou, sorriu, ajeitou-se e começou a história reclamada. Era um velho episódio, um tanto desairoso para seus foros de caçador feliz. Combinaram uma vez, ele e o Capitão Domiciano, passar a noite num barreiro, à espera de caça. Não sabia eu que era um "barreiro"? Ia explicar-me. Nas nascentes de certos córregos, há, nalgumas grotas, uma espécie de lama salitrada, que os animais gostam de lamber. A terra aí lacrimeja continuamente escassa umidade. Durante o dia e a noite reveza-se nesse lugar toda a sorte de caça. É o ponto de encontro das espécies mais desirmanadas, e algumas ali vão mais à cata de pábulo vivo, que atraídas pelo salgado marejamento do solo. De dia são os animais menos espantadiços e as aves de grande porte, até jacutingas: à noite é a assembléia transida das pacas e capivaras ariscas, cutias, cachorros-do-mato, que não raro são surpresos pelos temerosos povoadores da mata virgem: antas, onças, queixadas.

Calcado por todo o feitio de patas, o terreno é limpo em certo raio; e, pela ação erosiva de milhares de bicos e línguas, vai-se solapando em roda. Não há melhor posto para um caçador, que uma das árvores do circuito. É preciso, porém, que seja homem de coragem e use certas prevenções. Ora, para isso, era ótimo companheiro o Capitão Domiciano, pois mais de uma vez haviam-se arriscado em sombrias tocas de feras e acampado semanas em serras bravas, à caça de macucos. Durante o dia foram ao ponto escolhido, para a construção dum estaleiro, e que não fosse oblíqua, nem muito grossa, que as onças grimpam de melhor grado nos troncos hartos lançados de viés. Feita a escolha, dois escravos, Adão e Pai Tomás arranjaram o ponto de pouso.

— Sabe que é um estaleiro ou jirau? É uma espécie de prateleira de paus encruzados, armada numa árvore. Estiva-se bem estivado, fazendo-se como um assoalho e dos lados levantam-se parapeitos. Fazem-se para uma e duas pessoas. Aí até pode-se dormir. Finalizando os escravos o serviço, fomos para a fazenda, a tratar dos últimos aprestos.

Preparamos matalotagem, verificamos o bom estado e limpeza das armas, entrouxamos cobertas que nos defendessem do frio e nesses arranjos esperávamos a tardinha para partir. Precisa-se ir com dia e estar-se disposto a passar a noite no jirau, porque é perigoso arriscar-se a gente com o escuro em lugar rondado por tão perigosas feras. Depois do jantar chegou à fazenda, muito açodado, o Vigilato, nosso parente longe. "Soube que vão ao barreiro?" perguntou. Respondemos que sim. "Pois vim para caçar com vocês." "Impossível! o jirau dá apenas para dois. Se avisasse mais cedo..." "Não seja essa a dúvida! arranjar-me-ei de qualquer modo." Pensei que fosse gracejo, porque era de gênio brincalhão e pouco dado a aventuras. Mas teimou que ia, que ia... Já vinha armado e pronto para o pernoite. "Pois então, Vigilato, faça o que quiser. Depois não se arrependa!" E, à tardinha, partimos os três, rumo ao barreiro...

Aqui o sr. Próspero tocou-me o braço:

— Veja, dr. Félix, a atenção do louro... Está-se recordando dos tempos antigos...

De feito, o papagaio, com os olhinhos agora vivos e brilhantes, desperto do seu sono de velhice, escutava com imensa atenção.

— São do seu tempo, meu louro, o Vigilato, o Capitão Domiciano, o Pai Adão... E o velho prosseguiu na narrativa. Foram, pois, rumo da grota. Chegados aí, Próspero e o capitão subiram, a experimentar o estaleiro. Pareceu-lhes pouco sólido e nele cabiam estritamente duas pessoas.

— Pois, Vigilato, arranje-se como puder, que não sobeja espaço para você.

O rapaz tomou em riso a dificuldade. Se ainda estava dia...

— Vou fazer uma estiva melhor que a sua — disse.

Numa árvore perto atravessou uns paus pelas forquilhas dos galhos, amarrou e encruzilhou em tudo sólido cipó e pôs-se à turca sobre a armação, gracejando:

— Daqui farei mais proezas que vocês, porque não há parapeito a estorvar-me. E pilheriava, contava casos, atirava remoques aos companheiros.Quando o negrume da noite deu de adensar aos poucos, o caso mudou de figura. Vigilato foi-se pondo mudo e de olhos arregalados.

— C'os diabos! — rosnou entredentes.

— Não avisei a Maricota,que pode estar inquieta...

Devassou num relance o caminho a desandar; mas seguir um carreiro mal-amassado, por brenhas inóspitas, e àquela hora, e só...

— Vamos adiar a espera para outra noite? — perguntou em voz Incerta. Os companheiros, quietos.

— Que diabo! Não respondem?

— Pouco barulho — ciciou Próspero; — é tarde para lembrar-se da Maricota. Se tem medo, trocamos de lugar.

— Medo, eu?! E tentou, para mostrar isenção, cochichar novas facécias, que lhe saíram miseravelmente sem sal. Os ouvintes, também, não lhe encorajavam a loqüela, pois para o bom caçador é grave pecado quebrar o silêncio solene da espera. E os bichos não iam tardar. Fechou-se de todo a noite. Do barreiro subiam sons misteriosos, bruscas correrias, estranho amarfanhar de folhagens, guinchos abafados, longos silêncios expectantes...

Em forçada inação passam algumas horas. Felizmente a lua eleva-se e na clareira esmoitada espalha-se um difuso albor. Já se pode caçar. E, olhos à espreita, ouvidos fitos na calada da selva, ao menor rumorejo suspeito comprimem com o polegar o gatilho das armas, prontos para aperrá-las.

Raras formas assustadiças sombreavam o chão numa carreira, fazendo, pequeninas que eram, largo rumor. Um focinho minúsculo trabalhava o barranco, na faina de lamber. Nada que valesse uma carga de chumbo e o alarme de uma detonação. Vigilato pôs-se a trautear entre dentes uma modinha, afetando desassombro. O focinhito riscou o chão de negro, numa fuga rápida.

— Pst! — recomendaram os companheiros ao cantador importuno. Fez-se outra vez o silêncio... e, no silêncio, muito longe, rouquejou um urro sinistro.

— Nunca ouviu urrar uma onça, dr. Fêlix? É uma cousa bonita. É um miado forte, mas um tanto engasgado, como o dos gatos em sanha. Quando ela urra, parece que tudo se confrange de medo e até a mata fica mais quieta. No instante do uivo entreviu-se no barreiro um confuso debandar de formas antes invisíveis. Um trepidar seco vinha do estaladeiro do Vigilato. Ele tremia e os paus nos seus pés tremiam com ele.

— A bicha aí vem — murmurou o capitão. Passou-se um espaço de calada absoluta. No céu sem brisa imobilizaram-se as ramas das árvores, negras e como petrificadas. Apenas longe em longe um lufo manso corria um frêmito pelas franças sombrias. E aquilo prolongava-se, sem termo... "Má noite!" pensavam os caçadores. Mas um segundo indício, bem próximo, preveniu-os de algo sensacional. Ouviram um taque-taque característico.

— É pintada — avisou Próspero. — Essa qualidade de onça tem o "sotaque" de estralar com as orelhas. Armas engatilhadas e silêncio. Vamos atirar todos juntos. Segurem o ponto e esperem o sinal. Do negrume da brenha surge uma grande massa animada que avança lenta e ondulante. É um felino. Ao sair da orla de sombra, bate-lhe em cheio o luar. Tem o pêlo mosqueado de negro e ouro. Na pausa solene dos quadris a deslocarem-se na marcha, há a segurança da força. Ondulante e lenta atravessa o barreiro, em direitura da árvore onde se acham os dois... Detém-se em baixo, como buscando sonegar-se-lhe à sombra, à espera, também. Preparam o ponto, cautelosamente. Os dentes de Vigilato estralejam, entrebatendo-se.

— Pst! — faz Próspero, a pedir-lhe silêncio. Com o "pst" a onça olha para cima. Domiciano assusta-se e um seu movimento instintivo falseia um pau do estaleiro, e o estaleiro, mais os dois caçadores, desabam fragorosamente sobre a onça... A fera, surpreendida, atira-se, de salto, para a árvore onde está Vigilato. Vigilato despenha-se, num berro...

— Ah, senhor doutor, nem posso contar-lhe todas as peripécias dessa noite! Caímos de muito alto — ficamos machucados, uma espingarda quebrou-se e as outras ficaram sob os escombros... E, tropeçando no escuro, aos tombos, aflitos, a olhar para trás, fugimos correndo quanto podíamos, quase sem rumo, extraviados na escuridão da mata. Felizmente não fomos perseguidos. Então, recobrando alento, pudemos gemer as nossas contusões, e, acendendo pedaços de taquara e palha de pinheiro, conseguimos achar o caminho da fazenda. E Próspero ria, da velha recordação. Siá Marciana, da cozinha, fez coro com ele. Eu ajudei-os. E, esperto na sua placa, revivendo também antiqüíssimas memórias, na ilusão de um retrocesso aos bons tempos, o papagaio quebrou sua obstinada mudez, clamando em falsete estridente:

— Capitão Domiciano! Vigilato! Pai Tomás!

NO BARREIRO

Num barreiro — continuou Próspero, a quem escutávamos atentos eu e o papagaio — onde se reúnem espécies tão várias, dão-se às vezes interessantes episódios. Era testemunha, não de vista, mas de ouvida, de uma pendência entre uma onça e um bando de queixadas. Os queixadas, acrescentou, não são os únicos animais que podem enfrentar o nosso jaguar; a anta defende-se dele perfeitamente, graças à sua rija couraça nativa. E sua arma de ataque é o arremesso da fuga. Nunca assistira eu à corrida de uma anta? Era espetáculo empolgante.

Quando foge acossada pelo inimigo, tem o ímpeto de um obus; rompe desencabrestadamente em linha direita, varando, esmagando, sem encontrar obstáculo. É uma avalanche que despenha. E não há enrediça de touça ou tranqueira engrazada que ela, irresistível, não force. Malgrado a couraça encorreada, é atacada às vezes. A onça, num pulo, toma-lhe de assalto o cogote, onde se encarapita; e aí, aderida como emplastro vivo, forceja por estroncar-lhe o cachaço. Contaram-lhe de uma que, levando uma fera assim às cavaleiras, embarafustou mato adentro em rompente arremesso, que o peso suplementar não moderava, aprofundando um túnel no intricado da selva.

Guiada pelo instinto, atira-se de raspão sob o primeiro madeiro deitado de través... Com o crânio estalado, a onça desmonta bruscamente, aquém do obstáculo, onde fica escabujando, no ralo último. Podia não ser verdade, mas era verossímil. Atestava, porém, a veracidade do que passava a narrar.

"Palavra de caçador, dr. Félix!" Desta vez era seu companheiro um vizinho, bom sujeito, o Prudêncio. Estavam empoleirados num jirau. Noite negra e silêncio grande. Um rastilho prateado, no horizonte, anuncia a lua. Já as ramas mais altas se meneiam alvacentas sobre o bojo atro da clareira. Podem dormir, ainda é cedo para caçar, pois o luar tardará a banhar o barreiro emparedado pela grande mata, num profundo entresseio de serras. E, no estaleiro cômodo, dispõem-se a fazer cama...

Súbito a atenção aviva-se-lhes. Ouvem um rumor longínquo, um vago crepitar que se torna cada vez mais nítido. Por fim é um vasto estrépito que se avizinha, tomando monte e vale, em convergência para um só ponto — o barreiro. À chegada, o rumor sinistro torna-se o formidável estralejar das presas de um cento de queixadas. De mistura soam roncos; grunhidos, acachoado farfalhar de folhagens destroçadas. E o terreno apisoado pela horda invasora é fossado e furiosamente revolvido, arado pelo cento de focinhos, que ávidos se cevam na salobra infiltração do solo.

No entanto, os caçadores nada vêem. A treva homogênea, compacta, espessa como piche, enche o âmbito da clareira. A vida ali é apenas o confuso rumor da bandeira invasora — um grulhar múltiplo e um amortecido estrincar de presas. Aquela vida misteriosa no negror da noite, côa-lhes pelos nervos arrepios de pavor. Arriscar passos, àquela hora, sob as soturnas abóbadas da mata, seria buscar o perigo. Em cada ponto das pesadas trevas pode haver uma emboscada. A elasticidade do salto está pronta para o bote, as orelhas aplicam-se adivinhando a presa, as úngulas crispam-se nervosas no antegosto da posse... Mesmo protegidos pela altura, os caçadores estão emocionados e trementes. Oh, a forte sensação, eternamente renovada, da montaria às feras!

Embaixo, a bulha amortece. É agora um resfolegar exasperado de focinhos lavrando a terra mole, num grande raio. Improviso, celeuma terrível. Entrebatem-se as presas entre roncos ferozes, bufos assanhados e confuso revolvimento da horda. Era uma onda infernal a investir contra um ponto e a recuar, como rolos encapelados abalroando um rochedo e refugindo com fragor. E a misteriosa investida arrancava para um mesmo ponto, sempre o mesmo... Para os caçadores só havia em baixo a homogeneidade do negrume; nem chispas, fosforescências, ou pálido delinear de contornos: a treva unida, igual.

— Sabe que significa este rebate? — perguntou Próspero à Prudêncio.

—Não.
— É um inimigo. Os queixadas defendem-se.
— De quê?

— Escute, escute! Não tardou partiu de baixo um rugido fortíssimo, prolongado, que dominou a alarida dos porcos, enchendo a mata e a noite com um rebôo de trovão; e embuzinado pelo vale, desconforme trompa, o rebramar da fera foi despertar até longe os ecos adormecidos dos rincões selváticos. Aos caçadores, azoinaram-lhes os ouvidos.

— É onça! — exclamou abafadamente Prudêncio.

— Atire!

—Atirar como! — objetou Próspero. —Nada vejo! Mas sossegue, que, ocupada a caçar os queixadas, não dará pela nossa presença. Com o urro espalhou-se o pânico no bando dos suínos, seguindo-se precipitada bulha de numerosa abalada. E, entre bufos, guinchos, matraquear de dentes e um farfalhar encachoeirado, a esparramada turba desgalgou pelo vale, tornando-se prestes uma crepitação longínqua.

E então, já remoto, um segundo urro ecoou no silêncio e na treva. O inimigo também distanciava-se, na esteira da preia recalcitrante. Esse incidente foi um azar. Subiu serena a lua, dealbando as entranhas do vale, um luar tão claro, que se desenhava no barreiro a sombra carregada do menor caule de erva. Era uma riqueza de minúcias no chão calcado e aberto, que mais claramente mostrava a falta de caça. Nem uma paca, nem um rato montês! Pela madrugada desceram, com as cargas inexplodidas nos canos das armas. Viram em cada palmo do solo os vestígios da passagem do bando; e, num grosso tronco, para onde se concentrara a investida da bandeira, a casca, nalguns lugares escodeada de fresco e agatanhada de garras, mostrava a cautela da onça, em frente dos queixadas, não se aventurando ao duvidoso desenlace de uma luta rosto a rosto com a desaçaimada horda estrepitosa.

2 comentários:

  1. Olá.. tenho um podcast de crônica, contos e novelas, de autores brasileiros (meu pai, Enéas Athanázio, entre outros) e usei o seu material do Godofredo Rangel para o episódio do dia 09/12/21. Se houver algum impeditivo, por favor avise-me. Eu citei o seu blog como fonte, mas não sei em qual livro do Godofredo foi publicado o conto. Procure em meu canal no Youtube o episódio 151.

    abraços e parabéns pelo conteúdo!

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    1. Olá. O nome do livro está no título acima. Chama-se VIDA OCIOSA.Creio que foi o único livro de Godofredo Rangel que só o publicou por insistência de Lobato, que era editor.

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