quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Ensaio Sobre a Liberdade

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo

John Stuart Mill - Ensaio Sobre a Liberdade -

Seleção de texto sobre liberdade e burocracia

A terceira e mais irrefutável de todas as objeções para restringir a interferência do governo, é o grande mal de acrescentar funções desnecessariamente a seu poder. Toda função acrescida a mais àquela já exercida pelo governo torna sua influência sobre esperanças e temores ser mais amplamente difundida e converte, cada vez mais, a parte ativa e ambiciosa do público em carrasco do governo ou em partidos que almejam tornar-se governo.

Se as estradas, as ferrovias, os bancos, as seguradoras, as grandes companhias de sociedade anônima, as universidades e as obras assistenciais públicas, fossem todas ramificações do governo; se, além disso, as corporações municipais e ministérios locais, com tudo aquilo que agora recai sobre elas, se tornassem departamentos da administração central; se os empregados de todas essas empresas diferentes fossem designados e pagos pelo governo e confiassem no governo para qualquer promoção na vida, nem toda a liberdade de imprensa e constituição popular da legislatura fariam deste ou de qualquer outro país, um país livre a não ser no nome.

E o mal seria maior, quanto mais eficiente e cientificamente a máquina administrativa tenha sido construída – quanto mais habilidosas as providências para obter as melhores mãos e cabeças com quais trabalhar.

Na Inglaterra tem sido ultimamente proposto que todos os membros do serviço civil do governo devam ser selecionados através de exame competitivo, para obter para tais empregos, as pessoas mais inteligentes e instruídas que se possa obter; e muito tem sido dito e escrito a favor e contra essa proposta.

Um dos argumentos em que seus oponentes mais insistem é que a ocupação de um funcionário permanente e oficial do Estado não detém suficientes aspectos de competição e importância para atrair os mais elevados talentos, que sempre poderão encontrar uma carreira mais convidativa nas profissões ou no serviço de companhias e outros órgãos públicos. Ninguém se surpreenderia se este argumento tivesse sido usado pelos amigos da proposição como uma resposta à sua principal dificuldade. Vindo dos oponentes, é bastante estranho.

O que é realçado como uma objeção é a válvula de escape do sistema proposto. Se realmente todo o talento do país pudesse ser levado para o serviço do governo, uma proposta que pretenda provocar tal resultado poderá inspirar inquietude. Se toda parte do trabalho da sociedade que exigiu união organizada, ou visões grandes e abrangentes, estivesse nas mãos do governo e, se os escritórios do governo estivessem cheios de homens mais capazes, toda cultura expandida e inteligência praticada no país, exceto a puramente especulativa, estaria concentrada em uma burocracia numerosa, a quem o resto da comunidade procuraria por todas as coisas: a multiplicidade de direção e preceito em tudo o que eles têm que fazer; a capacidade e ambição de progresso pessoal.

Para ser admitido nas classificações desta burocracia: e quando admitidos, para ascender nesse sentido, seriam os únicos objetos de ambição.

Sob este regime, não apenas o público exterior mal qualificado, por falta de experiência prática para criticar ou checar o modo de operação da burocracia, mas mesmo se os acidentes do trabalho despótico ou natural de instituições populares ocasionalmente eleve ao poder um governante ou governantes de tendências reformadoras, nenhuma reforma poderá ser efetuada que seja contrária ao interesse da burocracia.

Essa é a condição melancólica do império russo, como mostrado nas considerações daqueles que têm tido oportunidade suficiente de observação. O próprio Czar é impotente contra a burocracia; ele pode enviar qualquer um deles para a Sibéria, mas não pode governar sem eles, ou contra sua vontade.

Em todos os seus decretos, eles têm um veto tácito, simplesmente para restringir de levá-lo a efeito. Em países de civilização mais avançada e um espírito de maior insurreição, o público acostumado a esperar que tudo seja feito para eles pelo Estado ou pelo menos a não fazer nada por si sós sem solicitar ao Estado, não apenas para que ele o faça, mas mesmo como deve ser feito, naturalmente faz do Estado responsável por todo mal que recai sobre eles e quando o mal excede sua quantidade de paciência, eles se revoltam contra o governo e fazem o que se chama de revolução; em consequência do que alguém, com ou sem autoridade legítima da nação, salta na cadeira, dá suas ordens à burocracia, e tudo continua como antes; isso porque a burocracia é imutável e ninguém mais é capaz de tomar seu lugar. Um espetáculo muito diferente é exibido entre as pessoas acostumadas a realizar suas próprias tarefas.

Na França, uma grande parte das pessoas tendo se alistado no serviço militar, muitas receberam pelo menos a classificação de oficiais subalternos; há em toda insurreição popular várias pessoas competentes para tomar a liderança e improvisar algum plano de ação aceitável.

O que os franceses são nos assuntos militares, os americanos são em todo tipo de negócio civil; deixe-os sem um governo, todo americano será capaz de improvisar um e realizar aquele ou qualquer outro negócio público com suficiente quantidade de inteligência, ordem e decisão.

Isto é o que todo povo livre deveria ser; um povo capaz disso certamente será livre; e nunca se deixará escravizar por qualquer homem ou grupos de homens porque esses são capazes de tomar as rédeas da administração central.

Nenhuma burocracia pode esperar forçar os povos a isso ou passar por qualquer coisa que não gostem. Mas onde tudo é feito através da burocracia, nada ao qual a burocracia seja adversa pode ser feito absolutamente. A constituição desses países é uma organização da experiência e habilidade prática da nação, em um corpo disciplinado com o propósito de governar o resto; e por mais perfeita que essa organização seja em si, quanto mais bem sucedida em atrair para si mesma e educar para si mesma as pessoas de maior capacidade de todas as classes da comunidade, mais completa será a dependência de todos, inclusive os membros da própria burocracia. Pois os governantes são tanto escravos de sua organização e disciplina, quanto os governados são dos governantes.


Não se deve esquecer também que a absorção de toda a principal habilidade do país dentro do corpo do governo é fatal, mais cedo ou mais tarde, para a atividade mental e caráter progressivo do próprio corpo. Ligados como estão - trabalhando um sistema que, como todos os sistemas, necessariamente se instaura em grande parte por meio de regras fixas - o corpo oficial está sob a constante tentação de se afundar na rotina indolente, ou, se ocasionalmente abandonam aquela roda de moinho, de precipitar-se em crueza considerada pela metade que tivesse atingido a imaginação de algum membro líder da corporação: e a única verificação para essas tendências intimamente aliadas, embora aparentemente opostas do único estímulo que pode manter a habilidade do próprio corpo em um padrão elevado, é a responsabilidade com a crítica atenta de igual habilidade fora do corpo.

É indispensável, portanto, que os meios devam existir, independentemente do governo para formar tal habilidade e fornecê-la com as oportunidades e experiência necessária para um correto julgamento dos grandes assuntos práticos. Se possuíssemos permanentemente um corpo habilidoso e eficiente de funcionários – acima de tudo, um corpo capaz de produzir e desejoso de adotar melhorias; se não tivéssemos nossa burocracia degenerada em uma "pedantocracia", esse corpo não deveria se apoderar de todas as ocupações que formam e cultivam as faculdades requeridas para o governo da humanidade.

Determinar o ponto em que os males, tão temíveis para a liberdade e o progresso humanos, começam, ou antes em que eles começam a predominar sobre os benefícios que atendem a aplicação coletiva da força da sociedade, sob seus chefes reconhecidos, para a remoção dos obstáculos que se colocam no caminho de seu bem-estar; para assegurar o máximo das vantagens de poder e inteligência centralizados, sem que uma grande proporção da atividade geral seja transformada em canais governamentais – é uma das mais difíceis e complicadas questões na arte do governo.

É, em grande parte, uma questão de detalhe, na qual muitas e várias considerações devem ser mantidas à vista e nenhuma regra absoluta pode ser formulada.
Mas acredito que o princípio prático no qual reside a segurança, o ideal é manter à vista o padrão pelo qual se deve testar todas as providências planejadas para superar a dificuldade, pode ser afirmado nestas palavras: a maior disseminação de poder consistente com a eficiência; mas a maior centralização possível de informação e difusão desta a partir do centro.

Dessa forma, na administração municipal haveria, como nos Estados da Nova Inglaterra, uma minúscula divisão entre os funcionários públicos separados, escolhidos pelas localidades, de todo o trabalho que não seria melhor deixá-lo para as pessoas diretamente interessadas; mas, além disso, haveria, em cada departamento de assuntos locais, uma superintendência central, formando uma ramificação do governo geral.

O órgão dessa superintendência concentraria, como em um foco, a variedade de informação e experiência originadas da conduta daquela ramificação de negócios públicos em todas as localidades, a partir de todas as coisas análogas que são feitas em países estrangeiros e a partir dos princípios gerais da ciência política.

Esse órgão central deveria ter o direito de conhecer tudo o que é feito e sua tarefa especial seria aquela de fazer com que o conhecimento fosse adquirido em um Jugar disponível para outros.

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