com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo
Mario Vargas Llosa – Ed. Objetiva, 2013, 208 p.
Todos temos falado na exclusão social como sinônimo de pobreza e carência de oportunidades para as pessoas ascenderem a um padrão de vida digno no mundo em que vivemos, mas raramente tomamos a questão pelo lado oposto, especialmente a exclusão da elite cultural que, a cada dia encontra espaços mais estreitos para cultivar sua cultura nos meios de informação disponíveis. Parece um paradoxo intransponível que pessoas, cuja vida intelectual seja sua preocupação imediata, sintam-se excluídas socialmente em mundo onde 60 canais de TV transmitem filmes ou programas de pouco interesse; onde as revistas divulguem apenas mexericos; os rádios se prendam ao mesmo repertório musical horrível, e os jornais a falar do governo e da política como se fossem o suprassumo da honorabilidade.
Vargas Llosa, que vem escrevendo sobre este assunto há duas décadas, reuniu alguns artigos em 'A Civilização do Espetáculo' para nos brindar com uma ampla e variada abordagem de questões que vão da filosofia às artes plásticas, e da literatura à música. Ele denuncia a epidemia de frivolidades que tomou conta do mundo. A febre de banalidades não atinge um campo específico das artes plásticas, mas a totalidade do mundo contemporâneo, pois se espalha da filosofia às artes, e da literatura até ao modo de vida da civilização high-tec.
Em meu livro 'Um dia na vida o diabo duvida', transcrevo parte de um artigo dos anos 70 de Vargas Llosa sobre a crise da Universidade. O mal acadêmico, que ele vislumbra como uma ameaça à civilização, assume formas concretas na expressão da cultura por sucessivas gerações intoxicadas pela crise moral, política, intelectual e humanística do ensino não só no Peru, mas em todo o mundo.
Não pretendo comentar todos os assuntos que Vargas Llosa aborda em seu livro. Não obstante a importância dos fatos apontados por ele, o foco de minha análise são as mudanças contemporâneas que as novas tecnologias digitais estão operando sobre a cultura.
Como todas as pessoas que se criaram e se formaram no mundo analógico, aquele das bibliotecas, teatros, cinemas e museus, Vargas Llosa pergunta-se até que ponto a Internet não está na iminência de destruir toda uma cultura milenar, com uma proposta capaz de emburrecer ainda mais as pessoas em vez de ilustrá-las.
Citando os exemplos de diversos críticos que se detiveram neste assunto, seu desconforto com a trivialidade das mídias sociais e com o aparato online de informações termina no mesmo lamento de todos aqueles desiludidos com a avalanche de futilidades que entopem as mídias a tal ponto de sufocar a sensibilidade mais aguçada para as questões espirituais humanas.
Mas isto não quer dizer que a revolução tecnológica tenha relação com as mudanças no caráter humano e nas formas de melhorar sua capacidade de reflexão e tirocínio. Quando Gutemberg inventou os tipos móveis de impressão, colocando um fim na longa era dos livros manuscritos, a percepção da época era a de que a ignorância iria acabar e, com ela, a desconfiança e a má-fé que acompanham o homem desprovido de lustros intelectuais. Os acontecimentos posteriores provaram que não existe uma relação direta entre a invenção e as mudanças morais na humanidade. O mesmo se pode dizer da presente era de livros digitais (e-readers e tablets), que permitem o armazenamento de uma biblioteca muito maior do que a capacidade de um ser humano ler em toda a sua vida. E, além disso, coloca em crise um enorme setor da economia que, pela natureza de seus produtos, agia discricionariamente sobre a sociedade, impondo seus gostos e sua versão de boa literatura e estilo.
Refiro-me, naturalmente, ao setor livreiro. Quando analisamos os critérios pelos quais as editoras trabalham, ficamos perplexos com as limitações que o mercado impõe sobre os autores, e com as dificuldades de um autor estreante ter seu livro publicado e valorizado pela comunidade de apreciadores e críticos de literatura. Estas dificuldades “eram” (uso as aspas porque vou provar que a tecnologia do e-reader rompeu definitivamente com a barreira) tais que muitos desistiam no meio do caminho, e talentos se perdiam para sempre pelo fato de, por seus temperamentos ou ocupações, estarem fora dos círculos jornalísticos, acadêmicos ou institucionais da literatura.
Os Estados Unidos são o epifenômeno castrador da invenção formal. As grandes casas editoriais norte-americanas são o exemplo mais perfeito que conhecemos sobre a moldagem de um estilo de comercialização seguido pelos demais países. Não por acaso James Joyce ou Beckett foram autores que pouco influenciaram os escritores americanos. Na verdade, não se trata de Joyce ou Beckett serem seguidos por aprendizes, mas das oportunidades incertas que estes teriam com semelhantes arrojos formais. Como a literatura americana se condicionou comercialmente a ser apenas um reflexo do jornalismo, o padrão imposto pelas grandes casas editoriais não pôde ficar fora da sintaxe do bom jornalismo. Portanto, ser escritor nos EUA está diretamente relacionado com a atividade de imprensa. Um bom livro precisa da distribuição de cerca de 200 exemplares entre os grandes jornais e críticos para obter as indispensáveis recomendações que garantam sua difusão em massa. Na verdade, a maioria dos clássicos norte-americanos faz uma literatura que na forma não passa de um jornalismo dialogado. Em tal contexto literário, não seria possível o aparecimento de um barroco como o cubano Lezama Lima, de um crítico como o mexicano Octavio Paz, e nem mesmo de Borges, argentino reconhecido e admirado nos meios intelectuais acadêmicos.
Mesmo em casas editoriais que se dedicaram a publicar (com sucesso) autores da avant-garde europeia, como a Grove Weidenfeld de Nova Iorque, que publicou um escritor americano tão caribenho e fora do mainstream como John Kennedy Toole (A Confederacy of Dunces), o congelamento no estilo dos grandes romancistas do século XIX permaneceu para os grandes incensos literários, abrindo espaço para uma renovação apenas com a ruptura causada pela Internet.
Com o advento do portal virtual Amazon (e sites como Goodreads) é possível publicar pessoalmente um livro e disponibilizá-lo nos formatos e-book e em papel, pelo procedimento de impressão sob demanda. Esta revolução na arte da publicação não garante a difusão nem o sucesso de um autor rejeitado pelas casas editoriais, mas certamente sugere novos caminhos para o futuro do livro, como a organização de grupos online para a promoção, leitura e divulgação de livros de leitores identificados com um autor ou obra. Isto certamente está provocando a adesão (ainda não generalizada) de editoras e livrarias ao processo de promoção de autores. Podemos perceber que as grandes livrarias estão se tornando uma espécie de promotoras de eventos. Não é difícil imaginar que as livrarias serão as casas pelas quais os autores vão passar não para vender os seus livros com exclusividade (isso também não acontecia nem na época analógica), mas para aproximar fisicamente leitores de autores em um formato que deverá evoluir da simples dedicatória para formas diferentes de contatos pessoais. Isto significa que deverá haver transferência das despesas de impressão para empresas de marketing livreiro, encarregadas de promover e difundir um autor e sua obra em canais especialmente arranjados para esta finalidade.
Não existe possibilidade de o livro em papel desaparecer, apenas poderá ser menos utilizado, pois eu mesmo preferiria ter lido “A Civilização do Espetáculo” em e-book, para não sofrer com o tamanho das fontes da edição nacional, as quais, no e-book, podemos adaptar a um tamanho confortável à leitura. Para não falar do conforto de ler língua estrangeira em e-readers, onde se pode consultar o dicionário simplesmente apertando o dedo sobre a palavra que queremos traduzir. Como comparar essa eficiência com um livro em papel, onde a consulta ao dicionário requer a paciente busca alfabética da palavra? No e-reader, ainda temos a facilidade de fazer anotações (e até postá-las nas redes sociais) e de desfrutar tantos outros serviços, o que indica que os e-readers serão cada vez mais preferidos pelos leitores, e que vieram para provocar uma reorganização social ― sem demérito do livro impresso, que sempre existirá, mas em menor proporção.
Por tudo isso, as apreensões com o futuro do livro são muito maiores para o setor livreiro e para escritores bem-sucedidos no mercado do livro impresso, como é o caso de Vargas Llosa, do que para os novos autores deste mercado mais complexo e desafiador das novas mídias em constante mutação de sistemas e dispositivos de leitura.
No tempo de Cervantes, a novela de cavalaria atingira sua fama e se havia vulgarizado a tal ponto que Cervantes reagiu com uma resposta aos leitores dessas novelas com o Dom Quixote. A vulgaridade está sempre acontecendo ― aparece permeando os produtos culturais em qualquer período histórico. Tendemos a esquecê-la porque nossa juventude está perto de nós nas recordações das boas coisas que nos impressionaram: e isto é a vitória do erudito sobre o vulgar, do permanente sobre o descartável. É difícil julgar a revolução tecnológica do nosso tempo simplesmente porque ela ainda está em curso ― pode ser até que esteja apenas começando. Um paradigma da liberdade é não termos segurança sobre o que vem pela frente. E isso não significa que os produtos culturais do presente estarão descartados, pois as transformações sociais a que o mundo vivenciou não apagaram o passado, mesmo aquelas que se dedicaram a isto.
Vargas Llosa tem razão em apontar o espetáculo como instrumento de mídia para a proliferação do rebotalho artístico e intelectual: fetos de animais conservados em substâncias especiais e apresentados em caixas de acrílico como se fossem objetos de arte e arrematados em leilões milionários; lixo humano organizado em “instalações” nos festivais de artes plásticas de todo o mundo; grupos teatrais apresentando cenas excrementícias para chocar a plateia; literatura dedicada à pornografia exaltada; programas de TV cuja breguice e jequice são os padrões de exploração da curiosidade alheia. Por todo o lado, a sociedade mostra que não tem mais elites dirigentes, e que o bom gosto e a alta cultura são desfrutados por uma parcela minoritária desvinculada dos mecanismos de poder. Com semelhante avalanche de vulgaridades, não resta dúvida que o futuro é preocupante. Tudo indica que os países avançados cada vez mais viverão do passado ― como a Itália ―, como única forma de o espírito sensível buscar inspiração e satisfação em uma cultura, já que o presente parece condenado a hordas de consumidores frenéticos de frivolidades excitantes. Certamente não faltarão os Paulo Coelho e os Dan Brown para entreter os contemporâneos em qualquer época. Mas Vargas Llosa pode ficar tranquilo ― por absoluta incompetência de seus descendentes em reproduzir a singularidade de seu tempo, ele sempre terá leitores.
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