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domingo, 2 de fevereiro de 2020

A Civilização do Espetáculo

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo

Mario Vargas Llosa – Ed. Objetiva, 2013, 208 p.


Todos temos falado na exclusão social como sinônimo de pobreza e carência de oportunidades para as pessoas ascenderem a um padrão de vida digno no mundo em que vivemos, mas raramente tomamos a questão pelo lado oposto, especialmente a exclusão da elite cultural que, a cada dia encontra espaços mais estreitos para cultivar sua cultura nos meios de informação disponíveis. Parece um paradoxo intransponível que pessoas, cuja vida intelectual seja sua preocupação imediata, sintam-se excluídas socialmente em mundo onde 60 canais de TV transmitem filmes ou programas de pouco interesse; onde as revistas divulguem apenas mexe­ricos; os rádios se prendam ao mesmo repertório musical horrível, e os jornais a falar do governo e­ da política como se fossem o suprassumo da honorabilidade.

Vargas Llosa, que vem escrevendo sobre este assunto há duas décadas, reuniu alguns artigos em 'A Civilização do Espetáculo' para nos brindar com uma ampla e variada abordagem de questões que vão da filosofia às artes plásticas, e da literatura à música. Ele denuncia a epidemia de frivolidades que tomou conta do mundo. A febre de banalidades não atinge um campo específico das artes plásticas, mas a totalidade do mundo contemporâneo, pois se espalha da filosofia às artes, e da literatura até ao modo de vida da civilização high-tec.

Em meu livro 'Um dia na vida o diabo duvida', transcrevo parte de um artigo dos anos 70 de Vargas Llosa sobre a crise da Universidade. O mal acadêmico, que ele vislumbra como uma ameaça à civilização, assume formas concretas na expressão da cultura por sucessivas gerações intoxicadas pela crise moral, política, intelectual e humanística do ensino não só no Peru, mas em todo o mundo.

Não pretendo comentar todos os assuntos que Vargas Llosa aborda em seu livro. Não obstante a importância dos fatos apontados por ele, o foco de minha análise são as mudanças contemporâneas que as novas tecnologias digitais estão operando sobre a cultura.
Como todas as pessoas que se criaram e se formaram no mundo analógico, aquele das bibliotecas, teatros, cinemas e museus, Vargas Llosa pergunta-se até que ponto a Internet não está na iminência de destruir toda uma cultura milenar, com uma proposta capaz de emburrecer ainda mais as pessoas em vez de ilustrá-las.

Citando os exemplos de diversos críticos que se detiveram neste assunto, seu desconforto com a trivialidade das mídias sociais e com o aparato online de informações termina no mesmo lamento de todos aqueles desiludidos com a avalanche de futilidades que entopem as mídias a tal ponto de sufocar a sensibilidade mais aguçada para as questões espirituais humanas.

Mas isto não quer dizer que a revolução tecnológica tenha relação com as mudanças no caráter humano e nas formas de melhorar sua capacidade de reflexão e tirocínio. Quando Gutemberg inventou os tipos móveis de impressão, colocando um fim na longa era dos livros manuscritos, a percepção da época era a de que a ignorância iria acabar e, com ela, a desconfiança e a má-fé que acompanham o homem desprovido de lustros intelectuais. Os acontecimentos posteriores provaram que não existe uma relação direta entre a invenção e as mudanças morais na humanidade. O mesmo se pode dizer da presente era de livros digitais (e-readers e tablets), que permitem o armazenamento de uma biblioteca muito maior do que a capacidade de um ser humano ler em toda a sua vida. E, além disso, coloca em crise um enorme setor da economia que, pela natureza de seus produtos, agia discricionariamente sobre a sociedade, impondo seus gostos e sua versão de boa literatura e estilo.

Refiro-me, naturalmente, ao setor livreiro. Quando analisamos os critérios pelos quais as editoras trabalham, ficamos perplexos com as limitações que o mercado impõe sobre os autores, e com as dificuldades de um autor estreante ter seu livro publicado e valorizado pela comunidade de apreciadores e críticos de literatura. Estas dificuldades “eram” (uso as aspas porque vou provar que a tecnologia do e-reader rompeu definitivamente com a barreira) tais que muitos desistiam no meio do caminho, e talentos se perdiam para sempre pelo fato de, por seus temperamentos ou ocupações, estarem fora dos círculos jornalísticos, acadêmicos ou institucionais da literatura.

Os Estados Unidos são o epifenômeno castrador da invenção formal. As grandes casas editoriais norte-americanas são o exemplo mais perfeito que conhecemos sobre a moldagem de um estilo de comercialização seguido pelos demais países. Não por acaso James Joyce ou Beckett foram autores que pouco influenciaram os escritores americanos. Na verdade, não se trata de Joyce ou Beckett serem seguidos por aprendizes, mas das oportunidades incertas que estes teriam com semelhantes arrojos formais. Como a literatura americana se condicionou comercialmente a ser apenas um reflexo do jornalismo, o padrão imposto pelas grandes casas editoriais não pôde ficar fora da sintaxe do bom jornalismo. Portanto, ser escritor nos EUA está diretamente relacionado com a atividade de imprensa. Um bom livro precisa da distribuição de cerca de 200 exemplares entre os grandes jornais e críticos para obter as indispensáveis recomendações que garantam sua difusão em massa. Na verdade, a maioria dos clássicos norte-americanos faz uma literatura que na forma não passa de um jornalismo dialogado. Em tal contexto literário, não seria possível o aparecimento de um barroco como o cubano Lezama Lima, de um crítico como o mexicano Octavio Paz, e nem mesmo de Borges, argentino reconhecido e admirado nos meios intelectuais acadêmicos.
Mesmo em casas editoriais que se dedicaram a publicar (com sucesso) autores da avant-garde europeia, como a Grove Weidenfeld de Nova Iorque, que publicou um escritor americano tão caribenho e fora do mainstream como John Kennedy Toole (A Confederacy of Dunces), o congelamento no estilo dos grandes romancistas do século XIX permaneceu para os grandes incensos literários, abrindo espaço para uma renovação apenas com a ruptura causada pela Internet.

Com o advento do portal virtual Amazon (e sites como Goodreads) é possível publicar pessoalmente um livro e disponibilizá-lo nos formatos e-book e em papel, pelo procedimento de impressão sob demanda. Esta revolução na arte da publicação não garante a difusão nem o sucesso de um autor rejeitado pelas casas editoriais, mas certamente sugere novos caminhos para o futuro do livro, como a organização de grupos online para a promoção, leitura e divulgação de livros de leitores identificados com um autor ou obra. Isto certamente está provocando a adesão (ainda não generalizada) de editoras e livrarias ao processo de promoção de autores. Podemos perceber que as grandes livrarias estão se tornando uma espécie de promotoras de eventos. Não é difícil imaginar que as livrarias serão as casas pelas quais os autores vão passar não para vender os seus livros com exclusividade (isso também não acontecia nem na época analógica), mas para aproximar fisicamente leitores de autores em um formato que deverá evoluir da simples dedicatória para formas diferentes de contatos pessoais. Isto significa que deverá haver transferência das despesas de impressão para empresas de marketing livreiro, encarregadas de promover e difundir um autor e sua obra em canais especialmente arranjados para esta finalidade.

Não existe possibilidade de o livro em papel desaparecer, apenas poderá ser menos utilizado, pois eu mesmo preferiria ter lido “A Civilização do Espetáculo” em e-book, para não sofrer com o tamanho das fontes da edição nacional, as quais, no e-book, podemos adaptar a um tamanho confortável à leitura. Para não falar do conforto de ler língua estrangeira em e-readers, onde se pode consultar o dicionário simplesmente apertando o dedo sobre a palavra que queremos traduzir. Como comparar essa eficiência com um livro em papel, onde a consulta ao dicionário requer a paciente busca alfabética da palavra? No e-reader, ainda temos a facilidade de fazer anotações (e até postá-las nas redes sociais) e de desfrutar tantos outros serviços, o que indica que os e-readers serão cada vez mais preferidos pelos leitores, e que vieram para provocar uma reorganização social ― sem demérito do livro impresso, que sempre existirá, mas em menor proporção.

Por tudo isso, as apreensões com o futuro do livro são muito maiores para o setor livreiro e para escritores bem-sucedidos no mercado do livro impresso, como é o caso de Vargas Llosa, do que para os novos autores deste mercado mais complexo e desafiador das novas mídias em constante mutação de sistemas e dispositivos de leitura.

No tempo de Cervantes, a novela de cavalaria atingira sua fama e se havia vulgarizado a tal ponto que Cervantes reagiu com uma resposta aos leitores dessas novelas com o Dom Quixote. A vulgaridade está sempre acontecendo ― aparece permeando os produtos culturais em qualquer período histórico. Tendemos a esquecê-la porque nossa juventude está perto de nós nas recordações das boas coisas que nos impressionaram: e isto é a vitória do erudito sobre o vulgar, do permanente sobre o descartável. É difícil julgar a revolução tecnológica do nosso tempo simplesmente porque ela ainda está em curso ― pode ser até que esteja apenas começando. Um paradigma da liberdade é não termos segurança sobre o que vem pela frente. E isso não significa que os produtos culturais do presente estarão descartados, pois as transformações sociais a que o mundo vivenciou não apagaram o passado, mesmo aquelas que se dedicaram a isto.

Vargas Llosa tem razão em apontar o espetáculo como instrumento de mídia para a proliferação do rebotalho artístico e intelectual: fetos de animais conservados em substâncias especiais e apresentados em caixas de acrílico como se fossem objetos de arte e arrematados em leilões milionários; lixo humano organizado em “instalações” nos festivais de artes plásticas de todo o mundo; grupos teatrais apresentando cenas excrementícias para chocar a plateia; literatura dedicada à pornografia exaltada; programas de TV cuja breguice e jequice são os padrões de exploração da curiosidade alheia. Por todo o lado, a sociedade mostra que não tem mais elites dirigentes, e que o bom gosto e a alta cultura são desfrutados por uma parcela minoritária desvinculada dos mecanismos de poder. Com semelhante avalanche de vulgaridades, não resta dúvida que o futuro é preocupante. Tudo indica que os países avançados cada vez mais viverão do passado ― como a Itália ―, como única forma de o espírito sensível buscar inspiração e satisfação em uma cultura, já que o presente parece condenado a hordas de consumidores frenéticos de frivolidades excitantes. Certamente não faltarão os Paulo Coelho e os Dan Brown para entreter os contemporâneos em qualquer época. Mas Vargas Llosa pode ficar tranquilo ― por absoluta incompetência de seus descendentes em reproduzir a singularidade de seu tempo, ele sempre terá leitores.


terça-feira, 29 de novembro de 2011

O nome do jogo

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo

O nome do jogo de Will Eisner

Uma história em quadrinhos (HQ) que causou extensos comentários na Internet a partir de uma notícia veiculada pela afiliada da TV Globo em Vila Velha, depois que uma mãe denunciou o conteúdo. Seu filho teria recebido o livro da biblioteca da escola para fazer um trabalho escolar. A reportagem mostra algumas figuras de um homem na cama com uma mulher (ambos cobertos), e outra mulher recebendo bofetadas de um homem. Isto caracterizaria o livro como politicamente incorreto para a escola, que ao receber a notícia prometeu recolher o exemplar. Ocorre que o livro foi distribuído em todo o país pelo MEC e não se sabe de nenhum comunicado oficial do Ministério da Educação sobre o destino do livro.

Mas do que trata o livro, afinal, para que tenha causado tanta indignação? Trata-se da história fictícia de uma família judaica, os Arnheim, imigrantes da Alemanha, que se estabeleceu em Nova York e prosperou nos negócios de confecção de espartilhos, no final do século XIX. Com a mudança nos hábitos de vestir, o filho do patriarca Moses chamado Isidore passou para a área financeira, e a família tornou-se socialmente uma das mais importantes do início do século no ramo de corretagem de valores, disputando clientes e fortunas com negócios imobiliários e na bolsa de valores.

Entretanto, o propósito de Eisner é mostrar a disjunção entre as gerações de famílias cujos filhos não só não seguem o caminho dos pais, como naufragam na dissolução moral do caráter e relações familiares. Para os novos ricos emergentes, o único sentido da vida revela-se na ostentação e ambição que se materializam no modo de agir condizente com o auto-reconhecimento trazido pelo dinheiro.

Isidore casou-se e teve 2 filhos, Alex e Conrad. A história gira em torno destes 2 rapazes, que criados em um ambiente de superproteção descambam para a irresponsabilidade, para a vida endiabrada na adolescência e depois para a devassidão moral e ética na idade adulta. Todo o conflito ocorre entre o sentimento de ser aceito na comunidade judaica, como família endinheirada e influente, e na contradição entre a vida mundana, o desregramento social e os conflitos familiares.

A história avança com a injunção de outras famílias judaicas pelo casamento e pelo arranjo de interesses. Will Eisner trabalha com o temperamento humano, especialmente o caráter ambicioso das mulheres em ascender socialmente através do casamento e do ambiente social ancorado na hipocrisia e no dinheirismo. Com isso, Eisner se torna um crítico impiedoso da sociedade da época, mas escorrega demais na têmpera, deixando a porta aberta para que seu trabalho seja utilizado como propaganda contra os ricos, por apresentá-los muito mais sovinas e inescrupulosos do que na realidade, e mostrar as constantes humilhações a que são submetidas as pessoas de condição social inferior e as criadas, que até mesmo são estupradas pela licenciosidade dos 2 rapazes incontidos.

Não se trata, portanto, de literatura para adolescentes, pois Eisner não está interessado no conflito moral, mas apenas em mostrar o quadro de infelicidade resultante da busca desesperada pelo poder. Seu tom não esconde certa obsessão pela depravação. Traçando um perfil excessivamente negativo da vida social da alta classe, Eisner sem querer se prestou à propaganda política do petismo, razão pela qual foi patrocinada pelo MEC como instrumento de educação sobre a luta de classes nas escolas públicas.

O politicamente correto da história, na concepção petista em que ‘ricos não são felizes, nem intimamente boa gente’ segundo o estereótipo marxista, contrasta com o politicamente correto na educação juvenil – maridos espancando mulheres, frequentando lupanares, estuprando criadas, casamentos desfeitos na vida real mas mantidos por conveniência. Poderia ser um bom argumento para uma história que se passasse em Brasília dos dias atuais, exceto pela ausência total da pior de todas as hipocrisias: a de ladrões de dinheiro público que se fazem passar por revolucionários, representantes do povo e infâmias tais que Eisner, naturalmente, não poderia passar nem perto, uma vez que seus conflitos não pecam por falta de legitimidade na obtenção de riqueza.

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