sábado, 23 de maio de 2020

Pró-Pátria

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo

As meias-verdades sobre o primeiro ciclo da borracha (1827-1912)


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Pode-se pensar que uma intelligentsia mostre sinais de impotência provocados por algum princípio mensurador da decadência de um país. Mas também podemos atribuir a nossa vocação para o fracasso intelectual a um estranho fenômeno tropical, a uma deficiência que nos mantém no círculo vicioso de uma escolástica motivada pelas mesmas interpretações.

O ciclo da borracha no Brasil constitui um desses exemplos em que a falta de lógica, a ausência de pergun­tas, a incapacidade para ver além das aparências, nos prendem a uma interpretação que não seria singular se não fosse um exemplo revelador da doença do espírito que nos abrasa como uma malária, e que nos incapacita de enxergar além dos lugares comuns do vitimismo. Mas tudo não passa de falsificações de uma verdade que não se quer ver, e cu­jos resultados não se quer calcular — uma aversão congênita à verdade, e uma impotência ao raciocínio frio do cálculo.

Pouco se pode fazer contra uma montanha de asni­ces, exceto resistir com a evidência dos fatos descobertos pela metodologia intuitiva do pesquisador. Nossos historia­dores repetem à exaustão de que o ciclo de navegação portuguesa foi motivado pela busca de especiarias, e o po­bre adolescente engole esta estória na sala de aula como se, na Idade Média, o povo tivesse uma compulsão misterio­sa para se encher de pimenta, cravo, canela e sabe-se lá o que mais para arder seus gorgomilos febricitantes de condi­mentos extravagantes.

E, na verdade, a mais banal das ligações entre causa e efeito, é que a dita pimenta da Índia era também um con­servante dos alimentos dos navegadores, que metiam as carnes assadas em barricas, cobriam-nas com banha de porco e, sobre a superfície distribuída em alguns centímetros, colocavam sua porção de pimenta para evitar a deterioração. E, assim, o que era uma necessidade logística passa a ser uma questão de condimentar a sociedade em proporções rabeleaisianas, na ausência de explicações de autores que leem outros e passam a macaquear sem se fazer perguntas, e, muito menos, sem chegar às verdadeiras razões dos atos mais ordinários da vida cotidiana de uma época.

Com a borracha, ocorre algo semelhante. Entre tan­tas falsificações, podemos começar didaticamente mostrando como a realidade tão evidente, é, ao mesmo tempo, tão banal. Uma parábola sobre o distributivismo tal­vez possa iluminar alguma coisa para quem não costuma buscar na história um elenco de explicações lógicas para seus acontecimentos.

Suponhamos que “alguém” ganhe um milhão por mês, e a sociedade, assolada pela febre de populismo em nosso país, ache que ele deveria distribuir 40% e ainda as­sim viver como um rico. Consulta-se a opinião pública e esta logo se declara favorável a que esse Midas egoísta e desu­mano distribua seu milhão: 400 mil para 100 pessoas, resultando numa renda per capita de 4 mil, e 600 mil para o nosso Midas. Agora, parece implantado o socialismo, e tudo se acomoda na boa consciência da justiça social realizada.

Porém, uma investigação mais apurada constata que esse Midas que fatura 1 milhão não é uma pessoa, mas uma empresa que recebe 100 reais por mês pelos produtos que vende a 100 mil pessoas. Como empresas têm obrigações sociais, tudo parece pacificado. Mas, se perguntado às 100 mil se preferiam gastar só 60 reais, reservando os outros 40 reais para gastar em outras coisas, a resposta seria óbvia.

Mas até aí morreu o Neves, e acabou o distributivis­mo. É pre­ciso dizer que os 100 premiados com uma renda de 4 mil mensais são funcionários inúteis, para aproximar a parábola ao nosso Brasil? E que os 100 mil que pagaram são nada menos do que a nossa classe trabalhadora — tão fartamente defendida pelo estrabismo distributi­vista, mas, na prática, tão vilipendiada pelas ideologias que pressupõem representá-la?

Estendendo a parábola a outras paragens, verifica­mos, com o passar do tempo, quais são as consequências para essa empresa. Se, a despeito de ser tungada em 40% de sua receita, ela consegue sobre­viver, significa que uma empresa estrangeira, não submetida a semelhante abuso tributário, poderia acabar com a nossa empresa, especial­mente quando esta produz para o mercado internacional. Portanto, um país pode acabar com a produção de outro se for o comprador de sua matéria-prima e, ao mesmo tempo, for capaz de produzi-la mais barato.

Este é o caso revelado pelo 'Pró-Pátria', de Carlos de Vasconcelos, em uma vibrante narrativa barroca escrita aos 26 anos de idade. Amigo de Euclydes da Cunha e de Alberto Rangel, foi um dos mais exuberantes narradores de nossa realidade amazônica na época da hévea brasiliensis.

Carlos Carneiro Leão de Vasconcelos nasceu em 1881 no Ceará, estudou em Recife, onde se formou como enge­nheiro operacional e topógrafo. Depois de formado, foi para o Amazonas trabalhar na demarcação do rio Purus. Passados 2 anos, veio para o Rio, onde concluiu o curso de engenharia civil em 1901. Voltou ao Amazonas para a demarcação do rio Iaco e do alto Purus, situados no Acre, então território habitado majoritariamente por cearenses extratores da “seringa”. Depois de 2 anos, de volta ao Rio de Janeiro, participou ativamente do debate sobre a anexação do Acre. Como outros de sua geração, estudou o espetacular desenvolvimento americano do século XIX e, entusiasmado com o fenômeno “América”, viajou à Europa e aos EUA, de onde escreveu este livro ao Ministro de Obras de Afonso Pena, mostrando a insanidade dos anos que antecederam à crise que haveria de cortar nossas exportações de borracha abruptamente, em apenas 3 anos. Teria sido uma premoni­ção não fosse uma simples operação lógica reservada à sua familiaridade com a ciência. Faleceu em 1923 no RJ, em consequência da explosão de uma caldeira.

O que ele nos conta é o resultado de duas forças atu­antes na sociedade da época: o donatário ou concessionário do negócio e a política fiscal do estado brasileiro. Quanto à exploração impiedosa da escravidão do seringueiro, temos literatura abundante em nossas universidade. Mas, salvo al­gumas passagens sobre mineração, pouco se fala sobre a exploração fiscal — assunto dado como irrelevante, sendo, no entanto, a explicação mais contundente para o fracasso brasileiro na produção do látex.

A exploração fiscal deveria nos levar a refletir sobre todos os nossos ciclos produtivos: do açúcar ao café, do gado à soja, da mineração à borracha, para descobrir por que nosso PIB encolheu em, no mínimo, 6 trilhões de dóla­res. E o que se vai demonstrar nas páginas de 'Pró-Pátria' é o que foi perdido apenas na cultura da borracha, que nos fez passar da opulência de décadas ao colapso, em apenas 3 anos.

Neste ponto entra Carlos de Vasconcelos com seu Pró-Pátria para irrigar a nossa história econômica: os custos da borracha brasileira na Bolsa de Londres tornaram-se, no início do século XX, mais altos do que os custos da borracha da Malásia, transportada de uma distância maior, de menor qualidade elástica porém mais pura.

O leitor talvez não esteja acostumado a importar pro­dutos pela Internet. No Brasil, em pleno século XXI, a um produto importado que custe 100, aplica-se o ICMs de 18%, saltando para 118. Depois, aplica-se a tarifa de importação de 60%, obrigando o comprador a pagar 70,08 para a adua­na, isto é, 70% efetivos sobre sua compra com imposto sobre imposto em cascata.

O mesmo aconteceu com a exportação da hileia: numa escalada voraginosa de sobretributação, na base de 23%, que poderia subir para até 40%, imposto que era distribuído entre as prefeituras, os governos dos estados e o governo federal. Isto significa que o imposto era regiamente apropriado pela classe política, de cuja abundância se permitiam os luxos ostentatórios da época, compartilhados com os barões da borracha. Mas, como se verá, havia ainda outros tributos, que ao final inviabilizaram a produção. Caso espetacular a ser citado em nossas salas de aulas — se o país tivesse se encontrado consigo mesmo e não vivesse sob a alienação do vitimismo —, como exemplo em que tri­butação produz miséria, em vez de progresso.

Como o governo inglês cobrava a tarifa de 6% sobre a exportação de sua borracha da Malásia, o leitor pode en­tender facilmente as causas pelas quais o Brasil perdeu o que tinha de mais valioso do ponto de vista de sua exclusi­vidade econômica à época.

E como a ditadura fiscal nunca foi demolida, e age incontrolá­vel e independentemente sobre a nação como se fosse um poder separado, o ciclo que poderia ter permitido o desenvolvimento de uma infraestrutura espetacular, o nascimento de grandes cidades, a construção de portos, es­colas, hospitais, murchou repentinamente em 1912, quatro anos depois da edição de Pró-Pátria, e nunca mais se recu­perou totalmente, porque ninguém muda a estrutura tributária moldada para manter a oligarquia política que du­rante 500 anos manda e desmanda no país.

Para se ter uma ideia do descalabro tributário, de acordo com IBPT (Instituto Brasileiro de Planejamento Tribu­tário), em 25 anos (1988-2013) foram editadas 309,1 mil normas tributárias, uma mé­dia de 31 por dia nos três níveis de governança do país.

O que fica para ser calculado é o quanto perdemos em riqueza. Se no futuro alguém examinar as tabelas de produção da borracha natural, talvez possa transformar em cifra toda a produção de um século: eis aí uma pista para calcular o que seria nosso PIB se não fossem nossas institui­ções totalmente refratárias ao capitalismo clássico. Por exemplo, em 2012, a produção mundial da borracha natural foi de 11 milhões de toneladas, das quais o Brasil IMPORTOU da Malásia 22.600 toneladas (ver International Rubber Study Group).

O Brasil poderá retomar o cultivo da hileia e se tornar novamente exportador, bastando para isso que o cultivo se caracterize como uma atividade do agronegócio, nos moldes das demais explorações florestais. Sabemos que, desde 1992, começamos a cultivar a seringueira, mas ainda existe a necessidade de novas técnicas para que o passado seja deixado para trás e possamos voltar a ter os benefícios de nossa própria natureza. O livro de Carlos de Vasconcelos tem a singular importância de nos apontar os erros que se eternizaram ao longo do século XX. Sem conhecê-los, não sairemos da crise que nos acomete como uma doença incu­rável.

Carlos U Pozzobon

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