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domingo, 2 de fevereiro de 2020

Esquerda Caviar

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo

O livro Esquerda Caviar de Rodrigo Constantino saiu poucas semanas depois de A Civilização do Espetáculo de Vargas Llosa, ambos tratando de temas da conjuntura cultural internacional, embora sob diferentes enfoques.

Enquanto Vargas Llosa aborda o declínio da cultura erudita, em favor da cultura da frivolidade, um fenômeno que não é novo, porém turbinado pela era da Internet, Rodrigo Constantino se limita ao comportamento humano naquilo que se chama de politicamente correto e, sobretudo, do desastre ideológico contemporâneo na gênese da reorganização do marxismo sebento em bolivarismo fraudulento.
Se Vargas Llosa enxerga a situação atual com pessimismo, fruto da vigarice intelectual, da midiatização da fraude em nome da arte, Rodrigo Constantino a vê como uma manifestação ideológica, fruto da personalidade oportunista. Ele confessa sua perplexidade com líderes culturais que preferem defender abertamente ditadores e ditaduras, enquanto se banqueteiam com as benesses do capitalismo avançado. Comenta a falácia de líderes ambientalistas que se valem de jatos particulares para viajar mundo afora e fazer propaganda do aquecimento global.

Analisa, dentro das esquerdas engomadinhas, as bandeiras do antiamericanismo, o culto ao multiculturalismo, o guevarismo messiânico, a justiça social e o utopismo juvenil. Em um capítulo chamado Sem Preconceitos, que talvez seja o melhor do livro, aborda um tema pouco divulgado nas mídias sociais, o da impossibilidade de não haver preconceitos na esfera de apreensão humana das questões cujas aparências necessariamente devem servir de alerta para todos nós. A criação do estereótipo é tão importante quanto o cuidado que se deve ter para não discriminar pessoas somente pela aparência.

Exceto este capítulo, o livro é apenas um apanhado do que circula na Internet. Sendo Constantino um dos representantes mais influentes da nova geração liberal, seu livro denota uma quase total ausência de conhecimento sobre o legado das gerações liberais brasileiras anteriores, tal como Emil Farhat.

Esta perda de elo com o passado dos nossos analistas sociais é um dado que abre um precedente perigoso, na medida em que as novas mídias, não podendo substituir o repertório acumulado, relegam ao esquecimento todo o esforço intelectual do passado.
Um exemplo típico disso são as atenções da nova geração liberal relativas aos fenômenos contemporâneos: quando da crise americana das hipotecas de 2008, o surto de keynesianismo do governo Obama foi combatido no Brasil com a publicação da trilogia de Ayn Rand, chamada A Revolta de Atlas, o que produziu uma quantidade apreciável de leitores em todo o país. Entretanto, quando da vitória do PT em 2002, ninguém desta geração percebeu que era urgente reeditar O País dos Coitadinhos, seguido de O Paraíso do Vira-bosta, a propósito do populismo magistralmente analisado por Emil Farhat, nos anos 60.

O que se passou no Brasil desde a vitória do PT, em termos de dissolução moral e institucional, merecia uma reflexão mais atenta dos liberais desta nova geração, pois afinal todo populismo carrega os mesmos vermes destruidores em qualquer época, e está se repetindo nos dias atuais, com seu economicídio apenas atenuado pelo crescimento espetacular das exportações de commodities até 2010. A crítica liberal não aconteceu porque houve este descolamento da cultura nacional em favor da globalização, que acaba atuando como uma Wikipédia de reminiscências históricas, sem deter-se no testemunho do momento histórico revelado pelos analistas contemporâneos.
A Wikipédia pode ser um guia geral para orientação, mas quando se está em confronto com uma realidade nacional em que as palavras funcionam como jabuticabas, é preciso ter cuidado, pois vivemos um momento de incontáveis mistificações semânticas levadas a cabo por uma ideologia claudicante que não mede esforços para se apropriar das palavras para a consolidação de seu discurso de inversões. Todos nós sabemos que a palavra democracia tem sido usada até para denominar países socialistas. O duplipensar utiliza um conjunto semântico realmente grande, e como toda a esquerda se organiza em um discurso, os liberais não podem fazer concessões sob o risco de serem escanteados para sempre do poder, pois quem não tem escrúpulos para a moralidade republicana, não os terá para usar as mesmas ideias e expressões.

É o caso de reacionário que se lê na p. 91: “quando me deparo com essa agenda cultural esquerdista, onde 'vale tudo', onde o único ser bizarro é o heterossexual fiel e cavalheiro, educado e atencioso, confesso que sinto vontade de ser um carola, moralista, puritano, conservador e reacionário, algo que, definitivamente, não sou. Nelson Rodrigues até aceitava o rótulo de reacionário, pois dizia que, de fato, reagia contra tudo aquilo que não prestasse. Neste aspecto, sim, sou um 'reacionário' também”.

Conta Wilson Martins, em seu monumental História da Inteligência Brasileira, que foi Jackson de Figueiredo quem deu sentido à palavra reacionário. A palavra passou a ser aceita pelo “pensamento católico para definir-lhe (sic) a posição: os inimigos a abater eram a 'democracia liberal' e a 'corrupção burguesa', plataforma em que se irmanaram católicos e comunistas, anarquistas e tenentes; Hamilton Nogueira chegava a afirmar que os liberais eram as desgraças do Brasil”. (Vol. VI, p. 364)

Isto ocorreu ainda nos anos 20, quando a turbulenta República, assaltada por rebeliões, viria a ser perturbada pela crise do café, ressuscitando as ideias de Antonio Torres, que havia apontado no liberalismo a culpa pela crise endêmica das nossas instituições. Para Antonio Torres, somente um estado forte seria capaz de livrar o país da penúria econômica, e a crise foi o suficiente para que os intelectuais como Plínio Salgado, Olbiano Melo, Miguel Reale, Alceu Amoroso Lima e Azevedo Amaral se alinhassem com as novas ideias corporativistas, e mais tarde integralistas. Este último acusava a democracia liberal como causadora da desordem nacional. Pela primeira vez foi feita a distinção entre regimes autoritários e totalitários, termos que seriam usados recorrentemente pelo regime militar de 64.

Obiano Melo escreveu um livro em 1929 contendo o esboço de um estado sindical corporativo a que daria o nome de República Sindicalista dos Estados Unidos do Brasil. Esta mentalidade não durou muito, mas foi o suficiente para causar o estrago da Era Vargas, cujo pesadelo durou até 1945, embora o populismo subsequente viesse ressuscitar o fantasma do reacionário.

A nova fase de insurgência do reacionário foi no pré-64. O populismo vinha destruindo o país com os constantes déficits orçamentários de duas grandes corporações: os ferroviários e os portuários. As legislações trabalhistas criaram tal sorte de privilégios, a perda de autoridade chegou a tal ponto entre os trabalhadores, que se criaram leis obrigando nossos navios costeiros a navegar com uma tripulação oito vezes maior do que os cargueiros internacionais. Os custos portuários foram subindo em níveis tais, que o país ficou incapacitado de utilizar seus portos e ferrovias para o escoamento da produção nacional.

Quando o populismo se transfigura em eleitoralismo, em concessionismo incontrolável, qualquer reivindicação de grupos organizados passa a ser aceita imediatamente por tantos partidos políticos quantos disputem o poder. Desaparecem os freios ideológicos e todos os candidatos se arremessam em promessas encantatórias e mirabolantes.

Com o país paralisado em seus meios de transporte, com uma inflação galopante ano a ano, eis que um ministro do governo Jango bolou uma ideia que haveria de trazer ao vocabulário nacional novamente o espantalho do reacionário: as reformas de base, entendidas como a reforma agrária, a reforma urbana e a reforma educacional. Aquilo que o populismo destruía em ação política, agora seria saneado pelo salvacionismo das reformas de base. E quem se manifestasse contra, logo era tachado de reacionário.

A nova conspiração nos é revelada por Emil Farhat, em seu O País dos Coitadinhos. Os grupos que gravitavam em torno do PCB, procuravam hostilizar todos os dirigentes “burgueses” com suas ideias torpes e ações coordenadas. “A qualquer atitude ou medida mais decisiva dos seus 'orientados', contra a demagogia ou a favor da livre iniciativa, eles faziam uma careta, entre amuados e superiores, e aplicavam a 'chave' do terror intelectual: 'cuidado, chefe. Cuidado para não o chamarem de reacionário!... Olhe o seu futuro político junto às massas...” (p. 35)

O temor era generalizado. Ninguém recuava diante de uma proposta de privilégios a uma categoria estatal, ninguém protestava contra um projeto de lei que inviabilizasse um setor da indústria em favor de interesses do corporativismo. Assim ocorreu com a remessa de lucros, o bode expiatório utilizado para explicar o pagamento dos empréstimos para a construção de Brasília. Como a indústria automobilística havia sido implantada poucos anos antes, as remessas eram mais do que naturais, não fosse o fato de as despesas com a Nova Capital terem secado o caixa do governo.

O reacionário passou a ser todo aquele que ia contra o mainstream do populismo. Neste momento entra em cena a figura de Nelson Rodrigues, um intelectual que não tratava de temas políticos e que, em determinado momento, explode de ira contra a burrice nacional e resolve enfrentar o 'mar de estupidez'. Em entrevista a um colega jornalista, afirma que resolveu deixar de ser covarde. E o resultado foi o contrário do que se poderia supor. Ele começou a ganhar notoriedade com suas polêmicas e receber apoio de uma parte da sociedade acuada e envergonhada com a situação nacional.

Depois que Alceu Amoroso Lima elogiou a revolução cubana, com sua máquina de propaganda castrista, um fenômeno que os intelectuais deste país aderiram até perceberem seu erro, já que os campos de concentração cubanos só apareceram em 1967, Nelson Rodrigues explode em ira e passa a vaticinar contra a adesão ao comunismo, mantendo o mesmo perfil de polemista e crítico social de sempre. Este é o único sentido para sua observação: “sou reacionário porque reajo contra tudo o que não presta.” Mas a observação não tem nenhum sentido filosófico, já que não permite caracterizar exatamente “o que não presta”.

Rodrigo Constantino percebe que o reacionarismo, além de se caracterizar por um 'passadismo retranca', se opõe a uma evidência comprovada em matéria social. Por isso ajusta os ponteiros de sua bússola quando fala (p. 170) de uma “esquerda carnívora”, mais reacionária do que todas, que ainda consegue pregar o socialismo depois de seu vergonhoso fracasso. A esquerda carnívora é aquela que sente atração por caudilhos como Hugo Chávez. Por outro lado, ele sabe pela experiência que existe uma “esquerda vegetariana” que ainda aceita certos postulados da economia de mercado. Ora, como seria uma esquerda que não postulasse a intervenção do estado? Como seria essa esquerda que não postulasse um governo onipotente para resolver os problemas da humanidade?

Talvez estivesse no escorregamento semântico do liberalismo em esquerdismo nos EUA. Mas a mesma coisa aconteceu com o progressismo. Nos tempos de Theodore Roosevelt, o progressismo era conservador e totalmente diferente da apropriação que mais tarde foi feita em seu nome por movimentos contrários a única condição que produz o progresso: o livre mercado e a livre empresa no ambiente competitivo.
A força da esquerda não provém apenas de uma doutrina transfigurada em profecia, porém do fato de se apropriar da mobilização popular de dezenas de reivindicações espontâneas dentro da armadura enferrujada da luta de classes. Não é mais possível um encontro de moradores em um salão paroquial para reivindicar uma linha de ônibus para seu bairro, sem que isto não seja uma “etapa da luta popular revolucionária”.

Os três mandatos dos governos petistas mostraram que não se trata de um partido voltado para a ação, para a governança, mas para o poder, isto é, para organizar um discurso em que a realidade passa a ser aquilo que é enunciado e não o que os fatos possam comprovar. Tarso Genro falou claramente em artigo recente, que os réus do mensalão foram condenados devido a opinião da imprensa contrária a eles. O discurso passa a ser a realidade e os fatos se enquadram ao discurso: isto é o totalitarismo nu e cru.

Por isso, esta nova geração de liberais precisa manter a guarda alerta contra o surto de ortodoxia que lhe cerca, cuja estreiteza mental consiste em jogar as pérolas aos porcos, especialmente legitimando à esquerda a apropriação semântica que ela não tem e não pode oferecer: a democracia e o progresso.

Quem viveu a atordoante revolução tecnológica que se iniciou com a digitalização das redes de telecom há cerca de quarenta anos, passou por incontáveis torturas semânticas. Termos e expressões usados em um ano, passaram a ter significado diverso no ano seguinte. Palavras que tinham um significado único, de repente começaram a incorporar outros sinônimos e, a cada nova geração de equipamentos, vinha um glossário de termos novos ou antigos recauchutados para expressar a nova tecnologia. Isto atenuou com a “maturidade” das novas tecnologias, mas logo novas descobertas vão tirar nosso sossego com os “velhos” vocábulos.

O livro Esquerda Caviar sugere ao leitor a pergunta de saber se nos demais países totalitários, e especialmente na China, não existe um espelhismo em relação ao Ocidente. Em outras palavras, se a penetração da tecnologia do Ocidente e seu way of life, não produziria por acaso um Liberalismo Cavalar na classe ilustrada e cosmopolita da sociedade chinesa, algo como que um reconhecimento e admiração da superioridade da democracia ocidental ainda que com um discurso bem disfarçado nos mitos e sectarismos do marxista. A resposta é seguramente positiva, mas sua análise seria um outro livro.


A Civilização do Espetáculo

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo

Mario Vargas Llosa – Ed. Objetiva, 2013, 208 p.


Todos temos falado na exclusão social como sinônimo de pobreza e carência de oportunidades para as pessoas ascenderem a um padrão de vida digno no mundo em que vivemos, mas raramente tomamos a questão pelo lado oposto, especialmente a exclusão da elite cultural que, a cada dia encontra espaços mais estreitos para cultivar sua cultura nos meios de informação disponíveis. Parece um paradoxo intransponível que pessoas, cuja vida intelectual seja sua preocupação imediata, sintam-se excluídas socialmente em mundo onde 60 canais de TV transmitem filmes ou programas de pouco interesse; onde as revistas divulguem apenas mexe­ricos; os rádios se prendam ao mesmo repertório musical horrível, e os jornais a falar do governo e­ da política como se fossem o suprassumo da honorabilidade.

Vargas Llosa, que vem escrevendo sobre este assunto há duas décadas, reuniu alguns artigos em 'A Civilização do Espetáculo' para nos brindar com uma ampla e variada abordagem de questões que vão da filosofia às artes plásticas, e da literatura à música. Ele denuncia a epidemia de frivolidades que tomou conta do mundo. A febre de banalidades não atinge um campo específico das artes plásticas, mas a totalidade do mundo contemporâneo, pois se espalha da filosofia às artes, e da literatura até ao modo de vida da civilização high-tec.

Em meu livro 'Um dia na vida o diabo duvida', transcrevo parte de um artigo dos anos 70 de Vargas Llosa sobre a crise da Universidade. O mal acadêmico, que ele vislumbra como uma ameaça à civilização, assume formas concretas na expressão da cultura por sucessivas gerações intoxicadas pela crise moral, política, intelectual e humanística do ensino não só no Peru, mas em todo o mundo.

Não pretendo comentar todos os assuntos que Vargas Llosa aborda em seu livro. Não obstante a importância dos fatos apontados por ele, o foco de minha análise são as mudanças contemporâneas que as novas tecnologias digitais estão operando sobre a cultura.
Como todas as pessoas que se criaram e se formaram no mundo analógico, aquele das bibliotecas, teatros, cinemas e museus, Vargas Llosa pergunta-se até que ponto a Internet não está na iminência de destruir toda uma cultura milenar, com uma proposta capaz de emburrecer ainda mais as pessoas em vez de ilustrá-las.

Citando os exemplos de diversos críticos que se detiveram neste assunto, seu desconforto com a trivialidade das mídias sociais e com o aparato online de informações termina no mesmo lamento de todos aqueles desiludidos com a avalanche de futilidades que entopem as mídias a tal ponto de sufocar a sensibilidade mais aguçada para as questões espirituais humanas.

Mas isto não quer dizer que a revolução tecnológica tenha relação com as mudanças no caráter humano e nas formas de melhorar sua capacidade de reflexão e tirocínio. Quando Gutemberg inventou os tipos móveis de impressão, colocando um fim na longa era dos livros manuscritos, a percepção da época era a de que a ignorância iria acabar e, com ela, a desconfiança e a má-fé que acompanham o homem desprovido de lustros intelectuais. Os acontecimentos posteriores provaram que não existe uma relação direta entre a invenção e as mudanças morais na humanidade. O mesmo se pode dizer da presente era de livros digitais (e-readers e tablets), que permitem o armazenamento de uma biblioteca muito maior do que a capacidade de um ser humano ler em toda a sua vida. E, além disso, coloca em crise um enorme setor da economia que, pela natureza de seus produtos, agia discricionariamente sobre a sociedade, impondo seus gostos e sua versão de boa literatura e estilo.

Refiro-me, naturalmente, ao setor livreiro. Quando analisamos os critérios pelos quais as editoras trabalham, ficamos perplexos com as limitações que o mercado impõe sobre os autores, e com as dificuldades de um autor estreante ter seu livro publicado e valorizado pela comunidade de apreciadores e críticos de literatura. Estas dificuldades “eram” (uso as aspas porque vou provar que a tecnologia do e-reader rompeu definitivamente com a barreira) tais que muitos desistiam no meio do caminho, e talentos se perdiam para sempre pelo fato de, por seus temperamentos ou ocupações, estarem fora dos círculos jornalísticos, acadêmicos ou institucionais da literatura.

Os Estados Unidos são o epifenômeno castrador da invenção formal. As grandes casas editoriais norte-americanas são o exemplo mais perfeito que conhecemos sobre a moldagem de um estilo de comercialização seguido pelos demais países. Não por acaso James Joyce ou Beckett foram autores que pouco influenciaram os escritores americanos. Na verdade, não se trata de Joyce ou Beckett serem seguidos por aprendizes, mas das oportunidades incertas que estes teriam com semelhantes arrojos formais. Como a literatura americana se condicionou comercialmente a ser apenas um reflexo do jornalismo, o padrão imposto pelas grandes casas editoriais não pôde ficar fora da sintaxe do bom jornalismo. Portanto, ser escritor nos EUA está diretamente relacionado com a atividade de imprensa. Um bom livro precisa da distribuição de cerca de 200 exemplares entre os grandes jornais e críticos para obter as indispensáveis recomendações que garantam sua difusão em massa. Na verdade, a maioria dos clássicos norte-americanos faz uma literatura que na forma não passa de um jornalismo dialogado. Em tal contexto literário, não seria possível o aparecimento de um barroco como o cubano Lezama Lima, de um crítico como o mexicano Octavio Paz, e nem mesmo de Borges, argentino reconhecido e admirado nos meios intelectuais acadêmicos.
Mesmo em casas editoriais que se dedicaram a publicar (com sucesso) autores da avant-garde europeia, como a Grove Weidenfeld de Nova Iorque, que publicou um escritor americano tão caribenho e fora do mainstream como John Kennedy Toole (A Confederacy of Dunces), o congelamento no estilo dos grandes romancistas do século XIX permaneceu para os grandes incensos literários, abrindo espaço para uma renovação apenas com a ruptura causada pela Internet.

Com o advento do portal virtual Amazon (e sites como Goodreads) é possível publicar pessoalmente um livro e disponibilizá-lo nos formatos e-book e em papel, pelo procedimento de impressão sob demanda. Esta revolução na arte da publicação não garante a difusão nem o sucesso de um autor rejeitado pelas casas editoriais, mas certamente sugere novos caminhos para o futuro do livro, como a organização de grupos online para a promoção, leitura e divulgação de livros de leitores identificados com um autor ou obra. Isto certamente está provocando a adesão (ainda não generalizada) de editoras e livrarias ao processo de promoção de autores. Podemos perceber que as grandes livrarias estão se tornando uma espécie de promotoras de eventos. Não é difícil imaginar que as livrarias serão as casas pelas quais os autores vão passar não para vender os seus livros com exclusividade (isso também não acontecia nem na época analógica), mas para aproximar fisicamente leitores de autores em um formato que deverá evoluir da simples dedicatória para formas diferentes de contatos pessoais. Isto significa que deverá haver transferência das despesas de impressão para empresas de marketing livreiro, encarregadas de promover e difundir um autor e sua obra em canais especialmente arranjados para esta finalidade.

Não existe possibilidade de o livro em papel desaparecer, apenas poderá ser menos utilizado, pois eu mesmo preferiria ter lido “A Civilização do Espetáculo” em e-book, para não sofrer com o tamanho das fontes da edição nacional, as quais, no e-book, podemos adaptar a um tamanho confortável à leitura. Para não falar do conforto de ler língua estrangeira em e-readers, onde se pode consultar o dicionário simplesmente apertando o dedo sobre a palavra que queremos traduzir. Como comparar essa eficiência com um livro em papel, onde a consulta ao dicionário requer a paciente busca alfabética da palavra? No e-reader, ainda temos a facilidade de fazer anotações (e até postá-las nas redes sociais) e de desfrutar tantos outros serviços, o que indica que os e-readers serão cada vez mais preferidos pelos leitores, e que vieram para provocar uma reorganização social ― sem demérito do livro impresso, que sempre existirá, mas em menor proporção.

Por tudo isso, as apreensões com o futuro do livro são muito maiores para o setor livreiro e para escritores bem-sucedidos no mercado do livro impresso, como é o caso de Vargas Llosa, do que para os novos autores deste mercado mais complexo e desafiador das novas mídias em constante mutação de sistemas e dispositivos de leitura.

No tempo de Cervantes, a novela de cavalaria atingira sua fama e se havia vulgarizado a tal ponto que Cervantes reagiu com uma resposta aos leitores dessas novelas com o Dom Quixote. A vulgaridade está sempre acontecendo ― aparece permeando os produtos culturais em qualquer período histórico. Tendemos a esquecê-la porque nossa juventude está perto de nós nas recordações das boas coisas que nos impressionaram: e isto é a vitória do erudito sobre o vulgar, do permanente sobre o descartável. É difícil julgar a revolução tecnológica do nosso tempo simplesmente porque ela ainda está em curso ― pode ser até que esteja apenas começando. Um paradigma da liberdade é não termos segurança sobre o que vem pela frente. E isso não significa que os produtos culturais do presente estarão descartados, pois as transformações sociais a que o mundo vivenciou não apagaram o passado, mesmo aquelas que se dedicaram a isto.

Vargas Llosa tem razão em apontar o espetáculo como instrumento de mídia para a proliferação do rebotalho artístico e intelectual: fetos de animais conservados em substâncias especiais e apresentados em caixas de acrílico como se fossem objetos de arte e arrematados em leilões milionários; lixo humano organizado em “instalações” nos festivais de artes plásticas de todo o mundo; grupos teatrais apresentando cenas excrementícias para chocar a plateia; literatura dedicada à pornografia exaltada; programas de TV cuja breguice e jequice são os padrões de exploração da curiosidade alheia. Por todo o lado, a sociedade mostra que não tem mais elites dirigentes, e que o bom gosto e a alta cultura são desfrutados por uma parcela minoritária desvinculada dos mecanismos de poder. Com semelhante avalanche de vulgaridades, não resta dúvida que o futuro é preocupante. Tudo indica que os países avançados cada vez mais viverão do passado ― como a Itália ―, como única forma de o espírito sensível buscar inspiração e satisfação em uma cultura, já que o presente parece condenado a hordas de consumidores frenéticos de frivolidades excitantes. Certamente não faltarão os Paulo Coelho e os Dan Brown para entreter os contemporâneos em qualquer época. Mas Vargas Llosa pode ficar tranquilo ― por absoluta incompetência de seus descendentes em reproduzir a singularidade de seu tempo, ele sempre terá leitores.