terça-feira, 14 de agosto de 2012

História da Inteligência Brasileira

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo

O Brasil visto por sua inteligência.

Wilson Martins – História da Inteligência Brasileira, vol VII – Cultrix – 1979 – 1ª edição.

Wilson Martins (1921-2010) foi magistrado, professor, escritor, jornalista, historiador, crítico literário brasileiro e autor da monumental obra ‘História da Inteligência Brasileira’. Celebrizou-se com sua coletânea de estudos sobre o Brasil. Neste volume, cobre o período de 1933 a 1960, abordando com extraordinária lucidez o nascimento da grande crise dos anos 30, que com a quebra da bolsa de NY iria desencadear o aparecimento de vozes anunciadoras do fim do liberalismo político, de um lado, e do fim do capitalismo de outro. O fenômeno do integralismo, para o qual convergiram grandes pensadores e que chegou a ser a esperança de um novo modelo para o Brasil por pouco mais de uma década, teve uma rápida obsolescência, o mesmo não acontecendo com o marxismo, que perdura atrofiado como sempre foi até os dias atuais confundido com o estatismo, a grande força nuclear da brasilidade desde seu descobrimento.

Não é possível deixar de admirar o rigoroso e sensível trabalho de Wilson Martins com sua História da Inteligência Brasileira. Utilizando o método cronológico associado à pesquisa editorial, ele descreve catalograficamente os principais lançamentos editoriais de um ano como pano de fundo de seus comentários, contribuindo assim para entendermos o pensamento nacional próprio e aquele reverberado das instâncias internacionais.

Não se trata de um trabalho meramente histórico, nem tampouco de crítica literária e cultural, porém de um apanhado conjunto que vai da sociologia à história, e desta à literatura e à poesia e artes. Em cada análise anual, ao mencionar seu fichário das principais obras nacionais do período, nos legou na parte final do livro um apêndice com cerca de 200 páginas, um trabalho monumental e sem igual em qualquer outra publicação que já vi.

Apesar de sua perspicácia no tratamento das contradições infindáveis da nossa sociedade e da acuidade com que abordava os temas da época, Wilson Martins não se arrisca a ser um intérprete com opinião pessoal, como costuma ser um analista social: ele se contém no papel do ‘schoolar’ que cria a rede de conectividades com o próprio material de estudo. Talvez por isso sua obra tenha alguns poucos pontos fracos, como por exemplo, não cita o livro de Afrânio do Amaral, ‘Serpentes em Crise’, de 1939. Afrânio foi um cientista chefe de um instituto norte-americano, que abandona sua carreia nos EUA a pedido de autoridades brasileiras para chefiar o Instituto Butantã de São Paulo. Cientista renomado, Afrânio conta em seu livro os desatinos para implantar uma estrutura estatal séria em um país arcaico e corrupto. Suas peripécias para limpar o Butantã da corrupção política das nomeações, e sua defecção em consequência do golpe de 1937 em um processo que saiu vitorioso na justiça mas demitido na política, representam um paradigma para a crítica do modelo político brasileiro ainda não percebido por nossa intelectualidade. Trata-se de um livro que deveria ser utilizado como ‘case’ nos cursos de pós-graduação em Direito, se nossas escolas não estivessem moribundas pela tragédia da frivolidade intelectual.

Além deste livro exemplar para o entendimento do Estado Novo, outro ponto fraco é que Wilson Martins também demonstra que não entendeu a importância da obra de Monteiro Lobato como crítica social. Ele foi capaz de uma preciosa análise do caráter de Lobato, de suas vicissitudes e incoerências, de sua personalidade ímpar, mas não percebendo a questão do poder fora de sua redoma acadêmica, terminou, talvez pela pressa, perdendo a noção do valor da crítica social de Lobato, espalhada em numerosos artigos, epigramas, cartas e contos.

Isso não diminui o valor do seu trabalho, dada a quantidade de informações que nos transmite ao longo de 442 páginas. Mas foi suficientemente acurado ao perceber o fenômeno perverso do nacionalismo ao se referir a ele da seguinte maneira: (p. 418)


O nacionalismo e, em particular, o nacionalismo primário, sentimental e intolerante (intolerante porque sentimental e primário; sentimental porque primário e primário porque sentimental) transformou-se, já agora, numa espécie de grave neurose brasileira; mais ou menos latente em toda a nossa história, ele aparece por irrupções bruscas, como as epidemias, e causa tantos males quanto elas. O Brasil sofre da mania de perseguição colonialista - é ela a responsável pelo nosso alheamento da realidade. Resultante de velho complexo de inferioridade - compensado e sublimado delirantemente pela criação de estereótipos os mais inconsistentes - ela alcança, neste momento da vida nacional, formas verdadeiramente patológicas, erigida que está em política, em programa da vida coletiva. É que uma grande parte do povo brasileiro deseja doentiamente preservar alguns valores vazios de conteúdo, agarra-se, justamente, por paradoxo, à constelação mental que caracterizava a sociedade luso-brasileira e deseja imobilizar o Brasil no instantâneo de um dos seus momentos históricos. Esse "velho País colonial", para conservar a terminologia de Jacques Lambert, opõe-se, com a força indestrutível da inércia, servida pela agressividade emocional, ao "País novo" e progressista, que compreendeu a permanência do Brasil sob as suas diversas fisionomias sucessivas e que responde às solicitações do momento em que vive. Se, até agora, entretanto, o "velho País colonial" representava a maioria absoluta, do ponto de vista demográfico, estamos chegando a um ponto em que as duas forças antagônicas tendem a equivaler-se e a partir do qual as correntes do progresso, da identificação com o seu tempo e com a "essência" brasileira começarão a prevalecer. A onda nacionalista que atualmente nos submerge bem pode ser a febre desse minuto culminante do conflito: explorada e mantida por interesses políticos que, precisamente, e por escárnio, nada têm de nacionais, nem de brasileiros, sua permanência e duração, seu alcance efetivo e a influência real que puder exercer decidirão, por muitos anos, do nosso destino coletivo. (1959)

Wilson Martins refere-se ao livro ‘Os Dois Brasis’ de Jacques Lambert, um professor francês que lecionou muitos anos no Brasil e nos deixou esta obra muito estimada nos círculos acadêmicos. Para Lambert, o Brasil arcaico é o país do analfabetismo, da pobreza endêmica, dos excluídos e da improvisação que coexiste com uma sociedade que se moderniza e que já forma profissionais em todas as áreas de especialidades.

A visão de Lambert, à qual Martins se associa, já não serve para os dias atuais, porque ao nos depararmos com o panorama nacional do início do século XXI, o Brasil arcaico não mais se distingue por diferenças de renda ou classe social, de educação ou acesso a bens de consumo. Nosso arcaísmo não está mais unicamente no retirante, na economia da enxada, tampouco na favela e no interior, mas na Universidade, ou em parte dela, no conjunto de ideias refratárias ao desenvolvimento econômico por não se render à realidade asiática que há 20 anos nos manda a mesma mensagem: a solução para os problemas sociais está dentro do capitalismo, e neste na economia do conhecimento ou high-tec, e não no Estado. Como somos uma sociedade coagulada em um semicapitalismo em que a oligarquia estatal dá o tom da vida nacional, tal como no Império, continuamos assoberbados por crises que seguem a um período de esgotamento de capitais por perda de oportunidades de desenvolvimento.

Perdemos essa oportunidade com a superação da crise de 29, que inicia em 1934, e com a possibilidade de nos enriquecermos com a demanda violenta absorvida pelos países em conflito na segunda grande guerra. Incapazes academicamente de avaliar o que poderíamos conseguir caso o Brasil tivesse enveredado por outros rumos -- como, por exemplo, com o governo de Julio Prestes em 1930 e sua sucessão democrática, com os candidatos naturais como Armando Sales de Oliveira ou José Américo, senão outros pretendentes até 1945, ficamos na aceitação medíocre de resultados pífios, mas suficientes para entronizar as piores lideranças que o país já teve como fundadoras de nossa modernidade, como é o caso de Vargas. As pessoas que endeusam Vargas não são capazes de imaginar o que ele deixou de fazer, ou o que teriam feito seus substitutos, não fosse o levante de 30.

Da mesma forma, fosse José Serra eleito para dois mandatos sucessivos desde 2002 poderíamos especular a situação da infraestrutura nacional em 2010, e como poderíamos estar preparados para enfrentar os tempos atuais com os ganhos de produtividade e de políticas públicas honestas e coerentes, a mesma danação que a Copa de 2014 vai nos levar a repetir a construção de Brasília dos anos 50: grandes investimentos sem retorno econômico. E rapados os cofres públicos, resta a inflação e com ela a agitação social e a decadência.

O cálculo não é muito complicado: basta avaliar as obras paradas, o dinheiro público roubado e a extensão possível dessas obras prontas comparadas com a “herança maldita” deixada pelo governante petista, e temos um intervalo a defasagem entre o que poderíamos ter sido e o que deixamos de ser. Extrapolando para um período grande, como um século, temos uma diferença no PIB que indica o que foi desperdiçado com o sistema político, cerca de 4 trilhões de dólares, como tenho apontado em outros artigos.

Nossa tendência ao atraso tem sido reiteradamente advertida a cada década por um escritor importante, a começar por Lobato nos anos 20. O fato de o brasileiro ser refratário à leitura, foi observado por Wilson Martins ao avaliar o pobre resultado das edições brasileiras justamente em um ano que o Brasil ainda vivia a euforia do pós-guerra e se preparava para mais uma eleição presidencial. (p. 283)

[....]

Um país de quarenta milhões de habitantes que termina o ano [de 1949] apresentando três livros de interesse, um ensaio e dois romances, não justifica, evidentemente, grandes entusiasmos. Ao denunciar ainda uma vez essa crise espantosa – crise de inteligência, para dizer com nitidez o meu pensamento – tenho o intuito de alertar os homens de responsabilidade para esse problema que não é exclusivamente literário, que é geral, e do qual depende o destino da nacionalidade [...] Quer o queiramos ou não, somos nós os responsáveis pelo futuro do país. Amanhã, nossos filhos e netos serão a inapelável resposta do que tivermos feito ou deixado de fazer. Quando todos esses nomes de "grandes" e "pequenos" da política estiverem esquecidos, existirá, já não digo uma nacionalidade, mas um povo, cuja expressão interior e internacional será a que lhe tivermos dado nos dias que correm (...) Somos um povo que não lê – e de posse dos documentos indesmentíveis dessa afirmação, desejaríamos que todos meditassem sobre o que isso significa. Um povo que não lê é um povo que existe, mas não vive: é povo que poderia desaparecer amanhã da face da terra sem que nada de essencial se perdesse. Um povo que não lê é um povo que não conta internacionalmente: nossos escritores podem ser ignorados sem prejuízo por um homem culto de qualquer nação, nossos estadistas não têm autoridade internacional, nosso país não comparece ao lado dos outros senão como região colonial destinada a fornecer matérias-primas. Um povo que não lê é um povo que não pode governar-se a si mesmo: eis como a democracia chega a depender do hábito de leitura. A nossa democracia é formal, não é orgânica: os candidatos "do povo” ainda saem dos bolsos caprichosos dos "grandes" e dos "pequenos". Ela é formal e não é orgânica precisamente porque esse povo que não lê pode ser dirigido por estadistas que também não leem – ou que não leram, quando ainda era tempo. A maior parte deles não saberia escrever os próprios discursos e a prova consiste nos seus risíveis improvisos ou nas suas declarações desprevenidas.

[...]

Sem dúvida que a leitura não é tudo. Coisas mais urgentes existem para ser feitas – nenhuma, porém, de mais fundas consequências. Nem só do salário vive o trabalhador, mas do exercício das faculdades de raciocínio e de crítica que o caracterizam realmente como homem. É essa transformação do indivíduo em pessoa o que se obtém por meio da leitura, e os estadistas que o ignoram ou que pretendem esquecê-Io estão justamente fornecendo o contingente mais precioso para os regimes totalitários, que só podem existir onde os indivíduos ainda não alcançaram a dignidade de pessoas. A medida que aumentamos os salários e esquecemos a instrução embrutecemos progressivamente o homem, provocando-lhe a hipertrofia das funções vegetativas e a atrofia das funções intelectuais. Não se trata de transformar todos os homens em sábios, nem mesmo em poetas, mas de fornecer a cada um os conhecimentos de base que o capacitem a saber como e em quem votar, por exemplo, a conhecer os seus direitos cívicos e morais, a ter uma consciência exata dos seus deveres como membro da comunidade. Não são, pois, resultados de ordem especulativa o que temos em vista, mas resultados de ordem prática. Nenhum problema se apresenta, dessa forma, com maior importância vital: os grandes países que julgamos exclusivamente comerciais ou industriais são os países onde mais se lê. Onde todos leem e não apenas uma pequena minoria de mandarins que ficam sem saber o que fazer afinal com os conhecimentos que possuem. Se me perguntassem, pois, terminado o ano, qual o problema político mais importante do Brasil, eu diria que é o da leitura. Todos os outros dependem desse e a democracia na realidade não existirá enquanto o povo for governado, como acontece atualmente, em lugar de se governar. Ora, hoje o povo brasileiro está nitidamente dividido em dois grupos: o dos indiferentes, que votarão em qualquer um, indicado pelos donos do país, e o dos místicos, que esperam a palavra de ordem de um banzo em que ainda acreditam. Nenhuma negação mais flagrante do regime democrático do que esses grupos rebanhos, amorfos e sem expressão, sem vontade e sem consciência, nem dos seus direitos nem dos seus deveres. As legiões de decência e as censuras literárias não serão senão ridículas enquanto o próprio indivíduo não estiver convencido de que o homem não é apenas um animal. Elas não atingem senão as consequências, quando são as causas que devemos combater. Não é o banhista sem camisa ou a historieta do gibi que permite a existência de banhistas sem camisa e das histórias em quadrinhos. Suprimir estes últimos pela violência, atribuindo-lhes uma existência gratuita que estão longe de possuir, não adiantará um passo na solução do problema fundamental.

Eis-nos, agora, segundo parece, longe da literatura. Nunca estivemos, ao contrário, tão perto dela. Pois a crise literária é uma das alarmantes conseqüências desse estado de espírito em que nos afundamos cada vez mais. Ela nos dá um índice seguro da situação em que nos encontramos. Começamos por nos desinteressar dos livros e terminamos por nos desinteressar do destino nacional. Começa-se por achar inúteis os poetas e termina-se por achar o voto inútil. Deixamos de acreditar nos romances para depois deixar de acreditar nos homens. Julgamos a cultura um luxo para melhor justificar a nossa ignorância e o pouco esforço que ela nos custa. Tudo isso se entrosa, como vemos, e começando com um povo que não lê, terminaremos por um aglomerado de homens sem consciência e sem dignidade. Eis o balanço pessimista do ano literário: que ele nos abra, enfim, os olhos, se ainda pretendermos salvar um país que mereceria um destino melhor.

Em 1950, Getúlio se elege e volta ao poder... O que se pode dizer?

Evidentemente, que o forte de Wilson Martins é sua crítica literária. Ele aborda todas as personalidades literárias do período, ou pelo menos aquelas que na cultura brasileira são conhecidas como celebridades. Ele não omite as críticas que se faziam ao oportunismo dos escritores que tinham aderido ao realismo socialista, e que veneravam a figura humana mais despótica do século XX: Stalin. Sobre Jorge Amado, suas observações não deixam de causar surpresa. (p. 352-354)

À espera da recuperação sensacional que seriam Gabriela (1958) e Velhos Marinheiros (1960), Jorge Amado era, àquela altura, um mero sobrevivente de si mesmo e da escola literária que paradigmaticamente representara. Superestimado na década de 30, parecia chegado o momento de reduzi-lo às suas proporções reais, não tanto por ele mesmo quanto por causa dos pupilos temporões que começavam a germinar. Porque, enfim, Jorge Amado era sempre Jorge Amado, isto é, tinha o mérito intransferível de haver sido o criador dessa corrente literária e o seu vulto mais importante (...). Imaginemos, agora, o que poderão ser os seus discípulos ideológicos e estilísticos, sem o sabor da novidade, fanados como flores da última semana, simples repetidores dos seus "efeitos", da sua técnica, das suas ideias; romancistas que demonstram a mais absoluta indiferença pelo caminho percorrido literariamente desde 1930; políticos que permaneceram nos domínios da interpretação lírica da realidade, o que desde logo comprova que lhes são estranhos, que não sentem genuinamente os problemas em que procuram inspiração.

Como o romancista de Cacau, Maria Alice Barroso, José Ortiz Monteiro e Ibiapaba Martins construíam romances maniqueístas, separando os personagens em dois grupos inconciliáveis, antagônicos e contrastantes: de um lado, os bons, ou seja, os que se incluem na "chave" mística do "trabalhador", do "operário"; de outro lado, os maus, isto é, todos os outros, mas, em particular, o "proprietário" e a "polícia", as duas entidades arimânicas desse singular universo. / Os primeiros são honestos, generosos, desinteressados, amigos da instrução e do progresso, patriotas, bons pais de família, sóbrios, artesãos dedicados, técnicos conscienciosos, empregados eficientes (embora revoltados), imaginativos e incansáveis, focos de poderoso magnetismo pessoal, cheios de inata vocação de comando e, ao mesmo tempo, do espírito de disciplina mais irrepreensível, corajosos, sentimentais, poetas instintivos, sede de paixões violentas (oh! no bom sentido!), modelos de solidariedade grupal, argumentadores invencíveis, repletos, em suma, de uma nobreza que em torno deles resplandece como um halo. O "trabalhador" é o herói característico desses romances de cavalaria: sem medo e sem mácula, ele tem tantas relações com a realidade quanto o próprio Amadis de Gaula.

Já o "proprietário" é um ser asqueroso e nojento, chafurdado em' todos os vícios, grosseiro, bárbaro, corrupto, implacável na cobrança dos seus juros, lascivo na presença das viúvas jovens e perseguidor feroz das idosas, barrigudo, fumando enormes charutos, arrotando sem pudor, repleto de amantes e provavelmente de doenças inconfessáveis, membro da sociedade secreta chamada "capitalismo", onde, como todos sabem, é invulnerável à solidariedade existente entre os membros; indivíduo que favorece todos os deboches, inclusive dos seus próprios filhos; covarde, desonesto, egoísta, ignorante, vendido ao dólar americano, lúbrico, marido brutal e pai perverso, irritante e antipático, rotineiro, frio como uma enguia, incapaz de sinceridade, sem melhores argumentos que a força bruta, verdadeira encarnação contemporânea dos demônios chifrudos com que a Idade Média se assustava a si mesma.

A "polícia", enfim, é composta dos maiores sádicos da história. Todos os "tiras" são modelos em que o "divino Marquês" legendário muito teria que aprender; brutais e violentos, analfabetos e lombrosianos, vendidos ao "proprietário" que mensalmente lhes distribui todo um caderno de cheques, só costumam beber sangue de criança e não têm apetite senão depois de algumas horas de espetáculo na câmara de torturas. É fácil, de resto, reconhecê-los: seus olhares torvos, as manchas gordurosas do paletó, os sapatos cambaios e as unhas aquilinas, em dedos repletos de anéis (que também lhes foram dados de presente pelo "proprietário"), não permitem nenhuma hesitação. Passam o dia procurando "trabalhadores" para seviciar e costumam se meter no meio dos grevistas como agentes provocadores. Mas, como são imediatamente reconhecidos, não há nenhum perigo. Há, porém, uma espécie de "polícia" um pouco diferente: é o "delegado". Este é limpinho, perfumado e serviçal; atende aos mais ligeiros assovios do "proprietário" e dispõe imediatamente os seus homens (os primeiros) em linha de combate; também recebe cheques do "proprietário", mas semanalmente e em quantias maiores; mora, em geral, numa cidade do interior e comete as maiores torpezas a fim de conseguir a promoção para a capital; sente, às vezes, alguns sintomas de revolta social e uma ligeira veleidade de aderir ao "trabalhador", mas a sua mentalidade capitalista não lhe permite tão grande progresso; bom rapaz, no fundo, porque evita assistir às sessões de tortura levadas a efeito por sua ordem pelos "tiras" acima descritos.

Inútil dizer que, tanto o "proprietário" quanto a "polícia" estão ligados por misteriosos pactos com o "tabelião", encarregado de dar forma jurídica às espoliações por eles cometidas. Em geral, o "proprietário" deseja se apropriar das terras pertencentes a um "posseiro" (que é a forma terrestre mais frequentemente assumida pelos entes celestiais também conhecidos pelo nome de "trabalhadores" e de "camponeses"); para isso, começa a tornar-lhe a vida insuportável, o que o "posseiro" tolera com evangélica resignação. Diante disso, o "proprietário" chama a "polícia" e o "tabelião". A primeira, para intimidar o "posseiro"; o segundo, para lavrar imediatamente a escritura, se a intimidação não surtir efeito. Não se sabe bem que espécie de escritura pode outorgar um posseiro; mas não faz mal: um romance não é o tratado do Fraga. Se a intimidação malograr, o "tabelião", depois de admirar as pernas das moças e de tomar um café com bolo de polvilho, vai embora num jeep emprestado pela "polícia". Enquanto isso, o "delegado" toma as suas providências. Seu destacamento de seis soldados é disposto estrategicamente; mas a bravura dos "posseiros" os obriga a bater em retirada, deixando um "macaco" morto no campo da luta.

Nesse ponto, intervém o "governador", espécie de entidade suprema nesse mundo sodômico e gomorreano. O "governador" tem todos os defeitos do "proprietário" e da "polícia", reunidos numa só pessoa. Primeiro, ele se aborrece com as notícias desagradáveis que lhe chegam justamente na hora do café da manhã, depois de uma noite bem dormida junto aos cabelos perfumados da esposa (ou da amante, conforme o caso). Depois, apanha furiosamente o telefone e mobiliza a polícia militar. Os batalhões começam a embarcar precipitadamente para o local da desordem. Muitos soldados desejariam fazer causa comum com o "posseiro", mas têm medo das consequências; de resto, já estão corrompidos pela convivência com os seus oficiais. Depois de uma semana de cerco, os posseiros são derrotados mas não se entregam; todos foram mortos em plena batalha, no meio dos gestos mais sublimes de heroísmo. Um deles, entretanto, deve se salvar, para ser preso e continuar, primeiro na cadeia e mais tarde entre os gentios, a sua doutrinação. O "delegado" é promovido; o "proprietário" toma uma bebedeira de whiskey importado no câmbio negro; os filhos do "proprietário" vão para a farra; a mulher do "proprietário" também; o "governador" será candidato à presidência da República.

Enquanto isso, a terra que produzia frutos maravilhosos nas mãos do "posseiro", torna-se estéril e abandonada, porque o "proprietário" não a deseja para cultivá-la, para tirar proveito dela, mas apenas para constituir um "latifúndio". O "latifúndio" é o fim supremo do "proprietário", da "polícia" e do "governo". Todos se esforçam para constituí-lo, para transformar o Brasil num imenso latifúndio. Nenhum deles pensa em plantar café ou algodão; nenhum quer criar gado; ninguém deseja produzir nada. Todos querem formar um "latifúndio", isto é, comprar ou roubar uma extensão infinita de terra, cercá-la de arame farpado e entregá-la às espinheiras e à tiririca. Não se sabe muito bem do que vivem os "proprietários", já que não plantam nem trabalham; mas não faz mal: um romance não é um tratado de economia política. Atingir o "latifúndio" é, para o "proprietário", a sua vitória maior; dir-se-ia uma criança que obtivesse afinal o seu trenzinho elétrico. Chega-se, então, à conclusão de que o "proprietário" só quer o "latifúndio" para impedir que o "posseiro" plante o seu pedaço de chão e medite, nas noites estreladas, a poesia do Sr. Jorge Amado. Ao lado desse romance do "camponês", interpretado com grande realismo social pela Sra. Maria Alice Barroso e pelo Sr. José Ortiz Monteiro, há o romance do "trabalhador". Neste, o posseiro é substituído pelo "grevista". A história e os personagens são exatamente os mesmos, só que se situam nas cidades e nas fábricas, em lugar de ser numa fazenda do interior. O Sr. José Ortiz Monteiro e o Sr. Ibiapaba Martins combinam, aliás, nos seus livros, as duas espécies: são obras que, como diz o Sr. Jorge Amado no prefácio do primeiro, vão "ajudar a luta dos camponeses brasileiros para libertarem-se da miserável situação em que vivem". Reconhece-se nessa frase o estilo do mestre. Com efeito, os "camponeses" do Sr. José Ortiz Monteiro, vencidos pelo "proprietário" buldogueano, transferem-se para a cidade e se aliam ao "trabalhador" das fábricas. Essa presença moral é de um efeito prodigioso e corresponde a uma espécie de sagração. A revolta estala imediatamente. Mulheres mais ou menos cornelianas (de Cornélia, não de Corneille) tomam parte na luta e incentivam os maridos. O capitalismo norte-americano é derrotado num piscar de olhos, apesar da "polícia" que, vendida como sempre, atira com metralhadoras e gases venenosos contra o "trabalhador". Aqui, a vitória é mais sensível, porque o "proprietário", acovardado no seu escritório, fechado atrás de uma tríplice cortina de aço, consente em aumentar os salários. Mas, é claro que se trata apenas de uma etapa e que a luta continua. A vitória final está próxima, o que permite ao "camponês" e ao "trabalhador" sentarem-se na soleira da porta, sob a noite estrelada, meditando mais uma vez na poesia do Sr. Jorge Amado.

Com esse tom crítico podemos entender como Wilson tinha uma percepção acurada do universo literário brasileiro. Entretanto, às vezes nos causa surpresa com alguma opinião aziaga, como ao se referir ao personagem Vão Gogo de Millôr Fernandes (p. 380): “se considerarmos o humorismo, como devemos, uma das artes menores”. Ora bolas, desde Rabelais, Sterne, Cervantes, o humorismo faz parte da alma literária. É novamente o espírito de ‘scholar’ a lhe atrapalhar. E talvez por isso ele tenha entendido Lima Barreto mais pelo lado caricatural do que pelo sardônico. Fora isso, ele não comete erros ao sair de seu ambiente natural, exceto na citação de ‘Um Rio Imita o Reno’ de Viana Moog em que confunde o Vale do Rio dos Sinos com o Vale do Itajaí.

Mas esses deslizes estão muito longe de diminuir a importância de sua obra. Ele envereda por todos os temas culturais, exceto a música, a quem faz um pequeno comentário sobre o surgimento da Bossa-Nova e sua importância no panorama nacional. O samba, a alma popular mais profunda cujo patrimônio é a maior distinção da brasilidade com o resto do mundo, pois que nunca imitado, não é retratado em seu livro.

Quanto ao cinema, não deixa de ser surpreendente a observação de Alberto Cavalcanti, o cineasta brasileiro que fez cinema na Inglaterra, fundou a Vera Cruz no Brasil, desentendeu-se, saiu, criou outra companhia cinematográfica, faliu, passou-a para a TV Record e voltou para a Europa de onde nunca mais saiu. Segundo Martins (p. 321), o diagnóstico de Cavalcanti sobre o cinema nacional transcende o próprio cinema, pois consegue enxergar o próprio drama nacional em poucas linhas. Segundo o cineasta, os principais problemas do nosso cinema são:

1) fator étnico (improvisação, pressa, falta de gosto pelo acabamento);

2) fator ético (falta de equilíbrio, falta de confiança em nós mesmos, imoralidade e grosseria nos filmes);

3) fator industrial (falta de equipamentos e/ou desperdício);

4) fator econômico (falta de capitais, que desejam rápida retribuição);

5) fator profissional ou técnico (deficiência, arrogância, convencimento);

6) distribuição (deficiente);

7) exibição (entradas baratas demais);

8) crítica (incompetente, preconceituosa)

Trata-se, na verdade, de um diagnóstico do Brasil, cinematográfico ou não, que vale para a nossa história do cinema muito depois da Vera Cruz.

O que se pode dizer do hercúleo trabalho de Wilson Martins é que com a banalização dos cursos de ciências humanas, com a supremacia do marxismo vulgar no conhecimento, ele tornou-se um autor de bibliotecas, reservado a uns poucos estudiosos de nossa nacionalidade. Da mesma forma que os autores por ele abordados, sua obra ainda está à espera de um crítico capaz de avaliar em profundidade o maior trabalho já feito sobre nossa vida intelectual: sem tantos correlatos.

FIM


8 comentários:

  1. Repito a expressão de gratidão do Andre Lyra. Obrigada por compartilhar, muito obrigada. Certamente vou procurar ler Wilson Martins já.

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    1. Em Wilson Martins temos um apanhado geral do que se escreveu no Brasil, além da vida cultural em geral. Infelizmente uma parte de suas fontes não estão mais disponíveis nem mesmo na Biblioteca Nacional. Com dificuldade tenho conseguido livros já quase centenários de autores geniais como Carlos Vasconcelos e Alberto Rangel.

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  2. Obrigada por compartilhar seu conhecimento,vou estudar esse cara essa semana e o livro que comprei vai demorar de chegar.

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    1. O conjunto total da obra dele é de 7 volumes. Ainda se encontra nos sebos.

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  3. Comprei a coleção "História da Inteligência Brasileira" através da editora da Universidade Estadual de Ponta Grossa que, por ter o crítico residido lá por um período, reeditou a obra em homenagem a ele. Augusto Aguiar.

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    1. Boa notícia. Esta reimpressão vai circular nas grandes livrarias ou ficar só no Paraná? Dificilmente os livros de editoras universitárias circulam...

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