terça-feira, 7 de dezembro de 2021

PARTE 2: O TELEGRAMA DE ATAXERXES

Continuação do conto O Telegrama de Ataxerxes de Aníbal Machado

Voltar à PARTE 1

— Então, seu felizardo, vai ser troço, hein? — diz-lhe um sujeito interrompendo-lhe o arrebatamento, se não exaltando-o ainda mais. Que tal? Vamos almoçar juntos? Não no Bar Azul, ali só dá fracassados...

Ataxerxes vai sendo levado pelo braço do "amigo". Não sabe bem quem seja. Alguém que deve ter influência no meio e goza da grande aventura da cidade. Almoça com o quase desconhecido. Presta-lhe mais atenção na gravata do que na conversa. O homem devora pratos, é entusiasta de cavalos e mulheres, corre várias vezes ao telefone, conversa em diferentes idiomas; fala em câmbio negro, numa certa Gisele cujo navio foi torpedeado, e num tal Armandinho que deve ser procurado no cassino. E termina: — "Tudo depende da naturalização do judeu."

Que judeu, que Gisele, que Armandinho? Ataxerxes atrapalha-se. Diminuído e ridículo sob o chuveiro de perguntas e informações do desconhecido, pensa em aproveitar-se de uma das idas dele ao telefone e fugir. Como é complexa a alma de um homem de negócios! Aqueles olhos ávidos, aquele nariz de quem fareja petróleo no ar...

Acabada a refeição, indaga-lhe o desconhecido, em voz gutural, se já foi recebido pelo Presidente: — Não, estamos de relações cortadas — responde Ataxerxes em tom apagado.

Deu-lhe essa resposta como uma vingança. Mas o desconhecido vira-lhe as costas com desprezo, nem se despede. Esperava-o à porta uma mulher tão bela, tão delicada, que Ataxerxes quase tomba de êxtase.

As lanchas largavam a amurada do mercado. As barcas da Cantareira soltavam apitos graves. Só, no cais, Ataxerxes pergunta a si mesmo se a gente da cidade era sempre assim, se as mulheres eram como aquela com quem o eventual companheiro de almoço desaparecera de automóvel.

Fica triste, com raiva dele, com dó delas. Por que lhe propõem negócios esses homens? Não; nada de coisas escusas. Seria incapaz de comprometer a honra de Zito. A aragem cheirava a peixe e galináceos. Ataxerxes deixou-se ficar horas num bar. De lá se levantou e pôs-se a caminhar. Parou na esquina da Avenida, quase à boca da noite.

Foi quando lhe veio vindo uma sombra à cabeça. O enigma do telegrama... Mandou ou não mandou? Todo o mundo que passa parece satisfeito, tem certeza do que fez. Custa-lhe reconhecer um rosto que se aproxima sorrindo:

— Então, pai, não me conhece? É a primeira vez que vê sua filha integrada na vida das ruas. Pensa com orgulho: "uma das moças que atravessam a Avenida agora é Juanita, minha filha..." Chegara a esquecer-se dela.

Juanita apresenta-lhe as colegas de curso. Uma delas se atreve a uma pergunta: — É verdade que ela nunca aprendeu dança? As outras silenciam, à espera da resposta. Ataxerxes informa que nunca. — Por quê? indaga sem alcançar a razão da pergunta. — Oh, parabéns, respondem em coro as moças. O professor está espantado. Todas nós, aliás...

Ataxerxes, perturbado, o chapéu na mão, murmura qualquer cousa. Segura sua Juanita e despede-se. — Adeus, Juanita! — Adeus, Pavlova! exclamam as moças, dispersando-se na calçada. — Que querem dizer com isso, minha filha? pergunta o pai. Você metida com essa bobagem de dança! Vamos para casa.

Acompanhava-os uma prima de Zamboni que viera no grupo. Por ela Juanita descobrira o curso. Dirigiam-se os três para a Estrela do Norte, quando notaram a atenção dos transeuntes voltada para os lados da Praça Mauá. Um incêndio. Juanita arrebata a companheira e parte para aquelas bandas. Queria vê-lo de perto.

Ataxerxes voltou sozinho. — Como é que a filha se mete num curso de dança sem autorização da gente? pergunta à mulher. Você vai ver que ela acaba se corrompendo. Há quanto tempo isto, Esmeralda?

— Sei lá, Xerxes, quem pode ter mão nela? A menina parece que anda com o capeta no corpo. Sei de nada... Nem dela, nem de você. Estou só... cada vez mais só… — E a última frase se desmanchou num soluço. Ataxerxes, o semblante constrangido, aproxima-se da companheira, põe-lhe o braço nos ombros, acalmando-a. — É por bem de Juanita, você bem sabe.
— É a primeira vez que você se interessa por ela, desde que chegou...
— Escuta, meu amor, disse beijando-a.
— … é a primeira carícia que me faz depois de tanto tempo... pronunciou a mulher, numa queixa que era também uma reclamação. Abraçaram-se e desceram tarde para a sala, sem a companhia de Juanita.


A rivalidade entre os irmãos Zamboni, ou melhor, entre as respectivas esposas, recrudesceu. Dona Cacilda, ao receber uma bela fotografia da casa da cunhada, compreendera logo a provocação. Por sua vez, ela e o marido arranjaram meios de levar ao conhecimento de seus inimigos de Copacabana que tinham como hóspede alguém chegadíssimo ao Presidente da República, o que representava um trunfo nas mãos; e que, por via desse hóspede, já negociavam um empréstimo na Caixa Econômica. Iam também construir o seu arranha-céu. Era preciso cultivar os Ataxerxes, mesmo estando eles com atraso de muitos meses na pensão.

Miguel, empurrado pela mulher, diversas vezes subira com a conta até o quarto de Ataxerxes; mal chegava, porém, à porta, respirava com dificuldade, perdia a coragem. Sempre que o italiano indiretamente aludia ao assunto, a insinuar que a vida estava difícil, tudo caro, Ataxerxes tocava no nome de Zito. E Zamboni empalidecia. Não era pequena honra ter como hóspede um dos amigos mais íntimos do primeiro magistrado do país. O próprio hóspede há muito sentia os efeitos disso. O Catete se conservava silencioso. Com certeza, lá se estava conjeturando o que seria reservado a Ataxerxes. Daí a demora. Zito não falharia.

Ataxerxes via-o passar às vezes em grande velocidade, pre cedido de batedores de motocicleta. Vinham-lhe neste momento ímpetos de atirar-se à frente e gritar: — Sou eu, Zito, o teu amigo Ataxerxes. Quase na miséria, como vês…

Mas a imponência e a rapidez do espetáculo deixavam-no perturbado.

Contentava-se, então, em bater palmas de longe. As vezes, o único a fazê-lo...

Estas demonstrações de aparato iam pouco a pouco trans ferindo para um domínio de maior prestígio a imagem outrora familiar de Zito. Ataxerxes sentia-se esmagado ante as exteriorizações de esplendor e majestade que marcavam a passagem de seu antigo colega. Como ele subira alto! Um deus quase invisível. Não mais continuaria a chamá-lo pelo apelido Quem sabe não o teria ofendido com o tom demasiado íntimo do telegrama!... "Telegrama... telegrama... teria seguido mesmo?" O temor religioso de seus antepassados acordava na alma tímida de Ataxerxes. Zito era quase divino...

Num esforço de memória — e não mais aos outros, para armar ao efeito, como aquela vez na sala da pensão, mas a si mesmo — procurava evocar o que na infância do Presidente prenunciasse o homem do destino. Só lhe chegavam, porém, fragmentos inexpressivos ou prosaicos: os arrotos de Zito, aquela mania de enfiar o dedo no nariz...

Oh, não! o cidadão Ataxerxes, necessitado e entusiasta, pedia uma coisa ao passado e o antigo colega de Zito, irreverente, fornecia-lhe outra.


Os amigos improvisados foram desaparecendo. — Uma galinha morta, já diziam dele.

Ataxerxes admirava essa raça de homens brilhantes e cruéis. Mesmo na pensão, sua importância caiu. Zamboni, porém, incitava-o a agir, a procurar o Presidente. Não tanto agora pelo empréstimo em perspectiva, mas para saldar a dívida.

Mais três meses de espera, e nenhuma resposta do Palácio. Todas as manhãs, a leitura ansiosa dos atos ministeriais, seguida de uma decepção. Ataxerxes era já a decepção em pessoa. Dezenas, centenas de nomes contemplados com cargos da variada natureza. Ele, nada!

[O empreguismo é aqui realçado como um elemento de contraste e ao mesmo tempo de decepção. Como pode haver tantas nomeações e a dele sequer ser contemplada?]

Começava a impacientar-se. Dona Cacilda já lhe fechava a cara. Esmeralda acompanhava o sofrimento do marido sem nada dizer. Mas se sentia menos vexada depois que passou a usar óculos pretos. Juanita subia e descia as escadas dançando alheia àquele drama.

Um dia, Esmeralda falou timidamente ao marido: — Xerxes, não é melhor desistirmos?... Quem liga para nós nesta cidade? É só esse calor, essa barulheira... E fila para tudo.
— Zito há de recordar-se de seu antigo colega, respondeu. A questão é ser visto por ele…
— Está alto demais para enxergar você.
— Não desisto, Esmeralda.
— É uma aventura, Xerxes. Não fique zangado com o que vou dizer, mas você sempre foi assim, meu marido. Vive contando com o acaso. No começo, foi com os diamantes; por causa de um que encontrou por acaso, o nosso quintal ficou lá todo revolvido; depois, você se meteu com o zebu, lembra-se? E foi aquele desastre; depois, com o cristal; agora, é com o Presidente. Que é da resposta ao telegrama, Xerxes?!...

O marido não respondeu, Esmeralda continuava a queixa: — O nosso sitio está hipotecado; nem sabemos como anda aquilo lá. Por que não voltarmos? A terra é sempre mais fiel...

Volvia de novo ao espírito de Ataxerxes a questão do telegrama. Um mistério, aquilo! Ultimamente, durante a noite convencia-se de que o havia mandado; ao amanhecer, acordava com a dúvida horrível. Em seu espírito tudo passava facilmente do real para o imaginário, do sonho para a realidade. Às vezes não tinha bem certeza de que estava casado e, casado, se era Esmeralda sua mulher. E Juanita? Quantas vezes, vê-la, experimentava um choque. Seria mesmo sua filha, alguma desconhecida a chamar-lhe pai, pai! Com relação telegrama, lembra-se de ter entregado o papel ao guichê tomado o recibo à taxadora; não estava seguro, porém, isso se dera em seu pensamento ou na agência da Avenida Rio Branco. Enviar de novo o mesmo telegrama, seria despropósito, se não grosseria; fazer outro diferente, com alusão primeiro de existência duvidosa, sem o principal que a história em resumo da infância de ambos no colégio, fica incompleto e daria impressão de coisa de maníaco. Além do mais, só tinha confiança no texto primitivo, o único eficaz. Tão eficaz que, ao reler-lhe a cópia, se sentia na pele do Presidente. Figurava então a cena: o Presidente, depois de abraçá-lo comovido, começava a recordar a infância em comum; em seguida, mandava chamar o ajudante de ordens com uma lista enorme e dizia ao amigo: "Agora escolha, Ataxerxes… Mas que prazer em revê-lo! Há quanto tempo, hein?...” — E ao despedir-se: “Olhe, estou cá em cima, mas não esqueço as antigas amizades. São as que valem. Apareça de vez em quando para um cafezinho...” Ele então saía e o pessoal do Palácio ficava olhando, estarrecido.

Essas conjeturas embriagavam Ataxerxes. Decidiu dirigir-se pessoalmente ao Palácio. Não o fizera antes porque contava ser chamado. Muitas vezes, de bonde, passava em frente e olhava, olhava... Lá estava a sede majestosa do governo era dali que Zito comandava o país.

Entrou dando bom dia aos soldados da guarda. Anunciou-se ao porteiro e se sentou, sério, a esperar. Observou a principio os móveis, os quadros, os símbolos e sinais de poder. Seu pulso batia além do normal. Depois, passou a observar as pessoas que entravam e saíam. Eram os homens públicos. Essa expressão "homem público" metia-lhe medo. Vinham ouvir o Presidente, receber-lhe as ordens. Conversa grave nas portas, movimento de papéis, de contínuos, — tudo com luxo e respeito, mas um tanto triste. Qualquer cousa de câmara-ardente.

Ataxerxes fumava, fumava... Tinha a impressão de que Zito estava dirigindo o país direitinho. Começava a anoitecer, Sob os lustres de cristal acesos, circulavam as altas patentes militares. Quanto poder!... Ataxerxes sentiu-se possuído de certo temor. E se entendessem de tomá-lo por um espião? Entre ele e o Presidente havia apenas uma ou duas salas apenas. Se gritasse pelo amigo, estava certo de que Zito acudiria do outro lado. Um dos contínuos parecia querer fulminá-lo com o olhar. Ataxerxes baixou a cabeça e achou prudente recolher o toco de cigarro que havia deixado cair distraidamente no chão lustroso. Desagradavam-lhe as pontas de baioneta na porta... Sentiu um frio na barriga. Um ajudante de ordens veio dizer-lhe que voltasse no outro dia.

[Agora o conto se encaminha para o desenlace. O lado humorístico de Anibal Machado se revela nas minúcias machadianas do ridículo a que Ataxerxes se submete].

— Trata-se, respondeu gaguejando, de um telegrama que enviei há tempo ao Sr. Presidente.
— Seu nome? perguntou o ajudante de ordens.
— Queira ter a bondade de dizer a S. Exa que se trata de João Ataxerxes, seu antigo colega de infância... O Xerxes… V. S.ª poderá dizer-lhe que é o Xerxes. — Então o senhor fará a gentileza de deixar o endereço e aguardar a resposta em casa.

Ataxerxes voltou para casa tarde e faminto. Pôs-se a comer. Não quis conversa com a mulher. Mas Esmeralda precisava contar-lhe o que ouvira de Isabela, a prima de Zamboni, a respeito de Juanita: — A nossa filha parece louca, Xerxes. Sabe o que ela fez ontem? Uma cena horrorosa na praia. Começou a dançar sozinha diante do mar, em tempo de ser engolida pelas ondas. Tirou o sapato, a blusa, soltou os cabelos. Juntou gente; Isabela disse que todo o bairro assistiu. Um escândalo. A polícia teve que intervir. Ela parecia maluca. Os estudantes não queriam deixar que fosse presa. Soltava-se das mãos dos guardas e continuava a dançar. Ah, Xerxes, que será de nossa Juanita!...

Ataxerxes suspendeu o garfo, espantado. As impressões da longa espera no palácio dissiparam-se-lhe da memória para darem lugar à imagem da filha diante das ondas. "Bem que ela me disse, pensou, que um dia seria capaz de dançar o mar."

Mandaram chamar Isabela. A companheira de Juanita ainda acrescentou alguns detalhes com sua voz quente: — Uma vez ela quis dançar também um incêndio!... aquele da Praça Mauá, o senhor se lembra, Sr. Ataxerxes? Ah, hoje no curso ela estava uma maravilha!
— Chame essa menina!
— Não, deixa-a quieta dormindo, respondeu Esmeralda.

Pai e mãe cada vez mais desconheciam a filha. Em Ataxerxes, essa perplexidade se misturava à admiração. Ameaçaram tirá-la do curso. Ela respondeu que continuaria lá de qualquer maneira; seria desgraçada se não dançasse. Quando viu que a mãe fitava complacente, alegrou-se: — É tão bom, mamãe, a gente esquece tudo, realiza tudo que sonha. A dança é…

Não podendo exprimir o pensamento com palavras, começou a formulá-lo com os movimentos do corpo. Esmeralda correu e fechou a porta para que os hóspedes não vissem. Que iriam pensar de sua filha?

[O texto vai mostrando paulatinamente o estado de desagregação em torno de Ataxerxes, não só com relação aos amigos de ocasião, como à própria família].


Iam correndo os meses sem a resposta prometida do Catete. Consequência do racionamento de guerra na comida da pensão, andavam pálidos os hóspedes, ora a tossir, ora desarranjados dos intestinos.

Esmeralda fora a maior vítima, A humilhação e os vexames de devedora agravaram-lhe o estado de saúde. Costurava para a filha de Zamboni, ajudava D. Cacilda. Ataxerxes, conquanto sem entusiasmo dos primeiros tempos, não desanimava. Acabara de ser promovido, mediante recomendação sua, um funcionário público, o de cabeleira e coriza que mora no fundo do corredor. Se o Presidente tomara em consideração um pedido seu para outrem, o que não faria para ele, Ataxerxes? — Ah, Esmeralda, te garanto que fui nomeado com outro nome. Tenho quase certeza de que aquele sujeito se serviu de meu telegrama.

— Que sujeito? perguntou a mulher.
— O tal que o apanhou. Não te lembras daquela vez que o papel foi levado pela roda do caminhão?
— Isso não é possível, Xerxes; há quanto tempo! Respondeu a mulher cobrindo-se toda à sensação de um arrepio de febre. A notícia de que o funcionário fora promovido a pedido de Ataxerxes levantou subitamente o prestígio deste na pensão. Zamboni não só impedia que sua mulher falasse em pagamento, como adiantava clandestinamente certas quantias ao hóspede. Apenas se queixava de que ele não sabia tirar partido de uma situação privilegiada. Dos lados de Copacabana não cessava a ofensiva da mulher de Pietro, o que tornava Miguel ainda mais impaciente.

Certa vez, Zamboni e Ataxerxes entreolharam-se com emoção ao verem chegar um telegrama. Ataxerxes segurou-o como se fosse abrir uma fruta saborosa. Era um despacho de Pedra Branca. Anunciava que as vacas estavam morrendo de peste e a lavoura prejudicada pela inundação. Vinha assinado pelo encarregado do sitio. Ataxerxes escondeu a noticia à sua companheira.

— É do Palácio? perguntou Zamboni vivamente.
— Não, respondeu Ataxerxes, lacônico e dilacerado.


Suas visitas sucessivas ao Palácio tornaram-no ali figura conhecida entre os funcionários subalternos. Era o esfria. Esperava horas. De vez em quando, aproximava-se de algum contínuo para dizer o quanto era íntimo do Presidente; falava sobre a guerra, mostrava o retrato de Juanita; e voltava a sentar-se com dignidade. Levantava-se de novo para repetir que ele e o Chefe da Nação tinham sido colegas de infância; que até o tratava por Zito. — Não acredita? levem-me à presença de S. Exa para provar que não minto, — respondeu, ferido na sua dignidade.

O porteiro e os contínuos estavam habituados a essas histórias de pedintes. Um deles sorri com sarcasmo, Ataxerxes se ofende, vai saindo um general. Há o calor, vem a vontade de fumar, há um amigo ali pertinho, atrás da parede, e há uma opressão indefinida no ambiente de rostos duros. Ataxerxes perde a cabeça e xinga. Os homens retiram-no dali, fazendo uso de uma técnica ao mesmo tempo discreta e implacável. Nem foi preciso que os soldados se mexessem.

Posto na rua, exclama: — Vocês vão ver depois! É porque ele não ouviu a minha voz!... Um dia hão de saber quem sou eu! Afinal, isso aqui é ou não é uma democracia?... Canalhas! saibam que o Presidente é meu amigo...

Vagou pela calçada: — "Canalhas! Canalhas!" E foi beber numa taverna, onde se acalmou.

Esperava-o na pensão um indivíduo vagamente conhecido que lhe viera pedir pistolão para o Loide Brasileiro. Atordoado, Ataxerxes desculpa-se alegando já haver feito vários pedidos. Oportunamente o atenderia. Sentiu que seu prestígio, anulado na sala do Palácio, reaparecia maior, quando longe.

Espantou-se de haver tratado o pobre candidato ao Loide com o mesmo ar importante com que fora atendido pelos ajudante de ordens.

Daí por diante, a pessoa do Presidente passou a ser algo de inacessível. A todo momento ouvia-lhe o nome gritado nos rádios, por toda a parte, o retrato dele. Vira-lhe uma vez a imagem luminosa pairando no céu, numa noite de fogos de artificio. Olhava para o alto e se perguntava: — Será ele mesmo, o meu amigo, o meu antigo colega?...

Zito! Um astro que brilha longe.

Só por telepatia poderia comunicar-se com ele, dizer-lhe: — Há mais de um ano estou aqui perto, acompanhando a tua gloria, Presidente. Querendo, precisando falar-te. Mas esses miseráveis não deixam avistar-me contigo, que é que posso fazer?..."


Juanita trabalhava numa loja elegante e seguia o seu curso de dança à noite. A beleza de seu tipo, a vivacidade de seu espírito facilitavam-lhe tudo. Mas ficou compreendendo o preço que pediam por essas facilidades. Crescia-lhe o nojo da maior parte dos homens, contra os quais se protegia. Entretanto, em certos momentos, tinha vontade de abraçar a todos.

O estado de sua mãe agravara-se. A esta poupou Ataxerxes o desgosto de comunicar que Pedra Branca, tendo ido à praça, fora arrematada em leilão por um desconhecido. A mulher parecia ter pressentimento do acontecido, tão depressa se acabava. Para Ataxerxes, importava-lhe menos perder as suas terras do que abrir caminho até o Presidente.

Inesperado fora o choque de Juanita ao saber do fato. Atrapalhou-se toda na loja. — Onde está hoje sua cabeça, Juanita? Leia aí os preços, dizia-lhe uma caixeirinha. — O que a freguesa está pedindo não é isto, menina, advertiu-lhe outra.

Impossível à moça prestar atenção ao trabalho. Mais impossível ainda saberem as outras que o cheiro, a ondulação do milharal e das bananeiras, o rumorejo do moinho, as colinas, as reses — tudo que recordava Pedra Branca lhe estava invadindo naquele momento o coração, como se o sítio perdido viesse despedir-se dela. Alegou indisposição de saúde, e retirou-se mais cedo.

Intimamente, ia o seu corpo reproduzindo os movimentos da paisagem da infância. Andava pelas ruas como se estivesse percorrendo os vales da meninice. Aproximava-se de casa, quando lhe saiu ao encontro o seu pai.

— Vai ver tua mãe depressa, Juanita. Disse e caiu no pranto. Juanita entrou, pálida. Parou ante o corpo de sua mãe que esfriava lentamente nas extremidades. Ataxerxes se aproxima também do leito. Ajoelha-se. Esmeralda reconhece-o, passa-lhe a mão pela cabeça e murmura: — Pobre Xerxes, ele nem sabe que você existe... que nós existimos...

E foi perdendo o fôlego. Juanita nunca vira ninguém morrer e pensava que sua mãe fosse eterna. Tomou-se de um acesso nervoso: — Não! com ela, não! Deixa mamãe!... deixa! E alongava os braços no gesto de quem empurra alguma sombra invisível.

Entravam neste momento Zamboni, a filha e o hóspede que fora promovido. Esmeralda apenas os reconheceu. Insistia que estava tomando um ventinho fresco de montanha: — "Subam também... Cá em cima é agradável..." Olhava para eles longamente. Começou depois a indagar-lhes onde era a fila de morrer: — "É aquela, é?... Como está comprida, meu Deus!... Ah! lá vem o carro. Juanita, olha o milho para os patos... Chỗ. .. Chôo...”

Quase toda a pensão lhe acompanhou o enterro no dia seguinte. O funcionário promovido perguntou se o Chefe da Nação se fizera representar.

[Como um clássico, Aníbal Machado começa a dar um destino a cada um dos personagens da família.]


Foi-se assim a fazenda, e foi-se a mulher de Ataxerxes. Juanita teve que adiar a sua festa de estreia. O professor achava prematura qualquer exibição pública. A moça parecia lhe ainda demasiado instintiva. Mas a vontade de dançar se exasperara nela depois da morte da mãe. Esmeralda e o sítio não lhe saíam do pensamento. O russo procurava conter a discípula rebelde. Mal disfarçava o seu zelo por ela. Chegava a querer policiar-lhe a vida, aconselhava-a a que não se deixasse levar por nenhum dos apaixonados, como acontecera a tantas outras, mais amantes do que dançarinas. Era a maravilha que viria dar cartaz ao seu curso. Juanita, por sua vez, temia que a amizade desinteressada dos homens se queimasse logo no desejo de possuí-la. Fez-se quase irmã e mãe de um jovem que se quis matar por ela. As vezes, seus olhos pisados e certo langor na voz e nos movimentos denunciavam-lhe os desejos profundos. Ela desviava essa corrente, fazia-a explodir na dança. Ia assim adiando o encontro com o parceiro inevitável.

Uma inglesa rica do Leblon, mãe de uma colega, oferecera-se a protegê-la; queria-lhe a companhia para alegrar sua viuvez. Beijava-a de uma maneira esquisita, dizia que ela se parecia com as figuras de Burne-Jones. Juanita não sabia quem era Burne-Jones.

Ataxerxes falou a Zamboni: — Miguel, você tem sido meu amigo, me emprestado dinheiro, não devo pesar-lhe mais. Vou mudar-me para algum aposento barato. Há de chegar o dia em que hei de falar ao Presidente, tenho certeza; nossa vida vai melhorar; subiremos juntos.

Explicou-lhe que a dificuldade era atravessar a trincheira de guardas, contínuos e secretários que segregam o Presidente. — "Estou certo de que ele também quer me falar, mas não consegue. O meu pobre amigo! Prisioneiro dos outros!... Também é natural que assim seja, Miguel... Quem pode dirigir este país senão ele? Olhe o telegrama que lhe mandei — disse, mostrando-lhe um papel.

Ataxerxes ia declamando para o amigo as passagens que lhe pareciam mais expressivas. — Belo! Belíssimo! — exclamava Zamboni. Que telegrama, santo Dio!

E vinha a tal dúvida... Ataxerxes entristecia, caía no mutismo, Zamboni, pensando que fosse saudade de Esmeralda, dor de viúvo, retirava-se.

Misto de bondade e velhacaria, Miguel Zamboni, que se comovia facilmente, sentiu que essas demonstrações de confiança ligavam definitivamente o seu destino ao de Ataxerxes. Permitiu, entretanto, devido à pressão de D. Cacilda, que o hóspede se mudasse para um quartinho miserável em Catumbi. Não se conformava, porém, em que um amigo íntimo do Presidente ficasse abandonado numa pocilga. Ia vê-lo frequentes acompanhado de Isabela, admiradora de Juanita. Levava-lhe queijo, cigarros e macarrão às escondidas da mulher; acabou abrindo-lhe pequeno crédito no armazém mais próximo. Ao cair da tarde, Ataxerxes passava meio bêbedo. Com o tempo, os moradores da rua vieram a saber que aquele bêbedo era pessoa da estima do Presidente. Se andava desleixado, quase maltrapilho, era porque fizera voto de humildade. Tratava-se de um excêntrico.

Seu aposento se enchia de candidatos a empregos. Verdadeiras audiências. Até doentes vinham solicitar-lhe internamento nos hospitais; outros, pedir explicações sobre os impostos. Dava cartas de recomendação ao prefeito, ao chefe de polícia, a diversos diretores de serviços públicos. Alguns desses pedidos surtiam efeito.

[Excelente interlúdio humorístico. Até as cartas de recomendação que enviava surtiam efeito, menos o telegrama que era sua salvação].

O governo continuava a atender a seus pedidos! Mistério!...

— Está vendo! exclamava Zamboni; está vendo!

Acompanhado de Zamboni, ia rondar as imediações do Catete. Colocava-se em pontos discretos, receoso de que o tomassem por malfeitor. E lá ficava namorando o Palácio. Pela porta lateral entravam os automóveis reluzentes. Os estadistas desciam com grandes ares. Ataxerxes assistia a tudo. "Ah, se ele chega o rosto à vidraça um tiquinho!..."

Lá dentro, tudo respirava a mesma calma e dignidade. O que atrapalhava eram as caras antipáticas dos guardas. Ataxerxes, amargurado, voltava para Catumbi. Fazia-lhe bem o simples fato de namorar o Palácio. Por três ocasiões passara ante seus olhos a figura do Presidente; mas cada vez mais longe, e em maior velocidade. Sempre como um deus inatingível, uma estrela longínqua...

Certa vez, na inauguração de um edifício público em festa, sentiu no meio da multidão que o olhar do amigo pousava no seu rosto, como que o reconhecendo. Não se conteve e gritou:

— Ziiito... E foi logo abotoado por dois brutamontes que o empurraram para dentro de um carro forte, ao som do Hino Nacional. Não lhe ficou mágoa disto; persuadiu-se de que o Presidente estava mesmo proibido de falar aos amigos do peito, condenado a dirigir a República. O único sujeito capaz salvar a nação.

Arranjaria um meio de encontrar-se com ele às escondidas, fora da vigilância do Estado. Tentou vários telefonemas. Inútil. Chegou a admitir a inexistência de Zito... Já não pretendia mais nenhum lugar, contentava-se apenas em receber um abraço dele. — Acho que na residência dá mais jeito, Zamboni. Se ele me vir, é capaz de receber-me até de pijama.

Esperaram a noite e tocaram para lá. Encostaram-se ao muro. Xerxes trepou nos ombros do italiano.

— Cuidado. Suba por aqui!
— Não! Me levanta um pouco mais... Aquelas árvores me atrapalham. Agora! Estou vendo tudo! Ali deve ser o escritório... que beleza este parque... Entrou uma menina; deve ser Clotilde, a filha.

— É o homem?
— Espera! espera! Não faça barulho... Psiu! Ai que ele vem entrando!... Meu Deus, estou pertinho dele! Como emagreceu! Sentou-se. Acho que está triste... acendeu um charuto!...
— Você está distinguindo bem? sussurra Zamboni. Eu também estou com vontade de espiar.
— Você não, Zamboni, que pode atrapalhar. Até os seus olhos azuis estou vendo!... Mas como ficou calvo!... De tanto se preocupar com a Pátria, não é, Zamboni? — Ah, sim... com certeza! — Acho que vou dar um assobio.
— Não faça isso, você está louco?
— Coitado, agora está descansando... trabalha tanto!... Estou quase ouvindo a respiração dele.
— Cuidado! não fale alto. É melhor descer...
— Não; é só transmissão de pensamento... Zito! Zito!… — chamou de novo num cicio. — Tão simples que ele é... Meu amigo!… — Olhou para as alamedas: — Que silêncio no parque! Zito! Zito! Adivinha só quem está aqui!... Houve um tiro seco. Ataxerxes rolou. Zamboni correu. A noite prosseguiu calma.


Auxiliada pela viúva inglesa e alguns rapazes de suas relações, conseguira Juanita, no dia seguinte, descobrir o cadáver do pai. A polícia tomou-lhe o depoimento e do Zamboni. Fora logo afastada a hipótese de que se tratava de um malfeitor. — O Presidente veio a saber? perguntou Zamboni à autoridade, na presença de Juanita. — Não, respondeu o agente. Para que incomodar S. Exa ? A guarda avistou um desconhecido a saltar o muro e cumpriu o seu dever. Lastimo o ocorrido, senhorita — terminou, fazendo uma vênia à filha de Ataxerxes.

Devolveram à moça os objetos e papéis do morto, e ela partiu nos braços de Zamboni. Fechada em casa, Juanita abriu o pequeno embrulho. Na carteira de identidade, o retrato de Ataxerxes apresentava aqueles mesmos olhos grandes e mansos, a cabeleira atirada para trás, o rosto glabro e mole, dois leques de rugas se abrindo da extremidade das pálpebras. A cara simpática dos velhos atores. Correu a fechar a porta a chave. Começou a examinar os papéis: cautelas de casas de penhor, recibos de tintureiro, listas de jogo do bicho, uma fotografia do Presidente, uma carta de Pedra Branca, um retratinho de Esmeralda. Bilhetes corridos de loteria espalharam-se pelo chão. Havia também um charuto inacabado.

Abriu duas folhas manchadas de gordura e suor: o telegrama. Leu-o, releu-o demoradamente. Suas narinas palpitavam. A inglesa e a filha vieram chamá-la para o almoço. Não se tocou no fato. Mas a viúva beijava-lhe a testa de vez em quando, reverenciando-lhe a dor.

Juanita aparentava uma doçura triste e grave. Voltou ao quarto onde passou horas, os olhos negros cravados no azul do mar.

Não se separava do telegrama, onde quer que andasse. Relia-o sempre. No emaranhado de palavras riscadas, linhas assimétricas, rabiscos ora fortes, ora esmaecentes, desenhava-se o rosto de Ataxerxes sorrindo tristemente para ela.

Naquele papel sujo, ia decifrando o mistério da vida de seu pai — o drama de Ataxerxes; simultaneamente, aparecia-lhe a imagem de Esmeralda morrendo. Saiu a vagar pelas ruas. Via tudo diferente. Em cada rosto, não mais uma promessa de alegria, só a confissão de uma esperança perdida. Como se enganara! Vontade de acudir aos outros, de fazer-lhes algum bem. Emudecera durante meses. Achavam-na cada vez mais estranha. A inglesa e sua filha receavam por ela. Aquele mar perigoso em frente, aquele terraço tão alto… — Por que não choras, Juanita? sugeriu a viúva. É preciso desabafar, darling.

Chorar, ela não chorava. Assim permaneceu longo tempo, como se caminhasse para alguma catástrofe irremediável.

Afinal, seguiu ou não seguiu o telegrama? inquiria. E que lhe adiantava saber? O homem não se cansa de dirigir mensagens a um deus que não responde. Há distâncias infinitas; há o silêncio, o egoísmo; há paredes, leis e carabinas embaladas de permeio.

Quem nunca teve no bolso ou no pensamento um telegrama com o pedido impossível ?...


À mesa de cabeceira de seu quarto, Juanita colocara os retratos de Zamboni e da viúva inglesa, ao lado do de Esmeralda e Ataxerxes.
Ataxerxes sempre com aquela cara doce, meio aparvalhado, de quem ainda espera resposta...

[O retrato de Zamboni seria insinuação de uma possível relação com Juanita que o autor não quis desenvolver? Aníbal Machado está nesta categoria de mestres a quem uma dúvida é sempre um patrimônio a mais na arte narrativa].


2 comentários:

  1. Excelente conto!
    Ataxerxes, impostor humilde e delirante, passa os dias alinhavando uma pistolagem política para mudar de vida... Triste e hilário, com preciosas passagens literárias, como esta:

    "Enquanto seu espírito desembarca no país estrangeiro, os olhos se voltam para as gravatas e mergulham nelas como num mar de sargaços. Algumas pendem como serpentes do galho de metal; outras parecem armar o bote aos transeuntes; outras se estiram no chão de veludo, como raparigas em repouso, numa alcova; outras circulam como peixes. Todas coloridas, maliciosas, oferecendo-se... Trêmulo de emoção, Ataxerxes compra uma. Segura-a como a um objeto mágico. Em suas mãos a gravata perde o fascínio; quer devolvê-la à zona hipnótica da vitrina. Mas já está paga. Sai."

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Este conto é um ponto de ligação entre a cultura brasileira e a literatura. Não poderia ser escrito por alguém que não fosse um brasileiro. Obrigado pelo comentário.

      Excluir

Você comentou no Blog de Carlos U Pozzobon. Sua mensagem será moderada dentro de algumas horas. Obrigado por participar.