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segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Para quê filósofos?

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo


PARA QUÊ FILÓSOFOS? – Jean François Revel.

Depois da leitura de A Tentação do Totalitarismo e O Monge e o Filósofo, desfrutando do mesmo ceticismo agnóstico de Revel, encontrei outra pérola da crítica filosófica esquecida nos sebos poeirentos da memória.

Inicia perguntando se existe uma técnica na filosofia da mesma forma que nas ciências naturais, por exemplo, a física, que impossibilitaria um neófito questionar os fundamentos defendidos por um filósofo. Afirma que não, que toda a argumentação pode ser entendida e o filósofo que se recusa a fazê-lo não é mais que um criador de “geringonças de palavras sem ideias”, escreve citando Rousseau.

“Para esses filósofos [Descartes, Leibniz e Malebranche], lhes é estranha a ideia de que a falta de certo conhecimento a posteriori, ainda não obtido, proíbe a construção de um sistema completo de explicação, mas o a posteriori campeia no coração de sua filosofia em sua pior forma: o preconceito disfarçado de resultado científico. Todos os seus argumentos são reduzidos finalmente a este: que uma explicação é necessária. É, sem dúvida, necessária. Mas isso significa que é capaz de produzi-la imediatamente? E por que seria preciso exatamente dessa forma? Por que não seria de uma ordem totalmente diferente, tanto que, não só não poderíamos fornecê-la, como não poderíamos representar qual classe de explicação seria?”

Revel acerta em cheio na “philosophical rumination” dos filósofos:
“Um tratado sobre filosofia geralmente começa com uma exposição sombria e desdenhosa de teses simplistas atribuídas a predecessores imaginários ou a um "pensamento ingênuo" forjado para esse efeito; seguida por uma exposição afirmada imediatamente – em um tom não menos sombrio e tenebroso – de que a teoria do autor (ainda a ser apresentada), certamente será mal compreendida e distorcida. Atualmente é Heidegger que conseguiu elevar esse método a alturas apocalípticas. Eu vou falar sobre isso mais tarde. Mas adianto que o método é antigo e personagens de menor estatura o usam diariamente.”

Em seguida, ironiza a fenomenologia de Merleau Ponty e Sartre, mostrando como são conceitos em que o filósofo chama a atenção para coisas que não existem, com o agravante de que todo mundo sabe que não existem.

“Um filósofo começará proibindo, em termos cominatórios, que sejam tomados ao pé da letra, porque se isso acontecer, ele sempre quer dizer que há algo mais em seu livro, uma passagem que não terá sido prestada atenção ou que não haverá entendido. ”…“ E em vez de ser o raciocínio que sustenta sua filosofia, é a “filosofia” que paga por suas ignorâncias”.

Quantas vezes ouvi a mesma coisa dos reacionários tradicionalistas?

“Repetindo as consabidas frases sobre o "humanismo" mais insulso, [Heidegger] lamenta o progresso científico feito desde o Renascimento, seja um progresso que nos separa do Ser. Condena a "loucura técnica" de nosso tempo, fingindo confundir, como tantos outros, o maquinismo com o emprego lucrativo e imperialista feito dele, e contente de qualquer maneira, com a nostalgia hipócrita de um mundo pré-industrial”.

E na pg 24 continua burlando-se de Heidegger:

“O pensamento de Heidegger segue cada vez mais essencial, mais fundamental, mais original, mas sempre mais deformado, mais incompreendido, mais traído, para se transformar brutalmente em um amontoado macarrônico de palavras”.

“O caráter rigorosamente tautológico da intenção de Heidegger, o qual, quando se trata do Ser, se limita a nos dizer que nele surge o ente e, quando se trata do ente, nos diz que só é possível compreendê-lo à luz do Ser, tal caráter, digo, não deve impedir-nos de olhar atentamente o que diz sobre o ente, uma vez que é a única coisa que tratou explicitamente até agora”.

E descasca o abacaxi francês: “Se você é francês, é verdade que o orgulho de ser filósofo já deixou de ser sentido há muito tempo; nesse jardim de preguiça que é a filosofia, a França tira uma soneca particularmente longa: nunca o pensamento filosófico foi tão débil na França como desde o início do século XIX”... "A gente se pergunta como foi possível escreverem [os franceses] milhares e milhares de páginas sem o mais ínfimo traço de gênio, sem a mínima ideia interessante”.

Depois de Heidegger, sobra pra Bergson. Desmonta a insensatez filosófica do nobre francês em uma página e termina com uma conclusão arrasadora sobre a queda vertiginosa deste depois de desfrutar de grande fama:

“Pode, portanto, a filosofia francesa sem medo, se orgulhar de Bergson. Mas, pelo contrário, quando ouço alguns de nossos “filósofos” falarem em nome de Descartes, Pascal ou Rousseau, penso na frase de Nietzsche: “É nojento ver os grandes homens reverenciados pelos fariseus”. “Os filósofos não se acostumam a menosprezar seus talentos. Ao se acreditar neles, a humanidade apenas começa verdadeiramente a pensar com cada um deles”.
“Eles não deveriam se preocupar com o fato de que todas as grandes inovações filosóficas que ocorreram, especialmente desde um século atrás, são devidas a economistas, naturalistas, matemáticos, físicos, biólogos ou médicos, mas em nenhum caso a um filósofo de profissão?"

“O mais surpreendente é que, exatamente quando atinge seu nível mais baixo, reivindica a filosofia com mais intransigência sua infalibilidade e, de acordo com a frase de Leone-Battista Alberti, 'todos desunidos e com opiniões diversas, os filósofos concordam, no entanto, em algo; em que cada um deles tem aos demais mortais como dementes e imbecis'”.

Depois de arrasar com a pretensão tola dos filósofos, acrescenta uma nota: “Nota para uso de filósofos: Leone‐Battista Alberti (1404‐1472), matemático, arquiteto, teórico da pintura, etc... a frase citada se encontra no Momus, tratado que forma parte de suas obras morais e foi composto em torno de 1450.”

“A filosofia da matemática é o próprio desenvolvimento da matemática. Da mesma forma, em outro campo, a estética é o reflexo dos artistas sobre sua arte, uma reflexão que consiste na análise crítica de velhas fórmulas juntamente com a incorporação de novas fórmulas; o mesmo acontece com as obras de historiadores de arte que pensam, como Focillon, Panofsky ou Saxl, por exemplo. Ali se encontra estética que não está presente nos livros dos filósofos. E a filosofia da história são as inovações e extensões feitas ao método histórico pelos próprios historiadores."

“Desde um século, se produziu um aumento efetivo do conhecimento em todas as áreas que aniquilam claramente as antigas formas de filosofar. Os filósofos, no entanto, pretendem continuar servindo-se, para refletir sobre a ciência e os fatos atuais, de conceitos que remontam a uma época em que o conhecimento não tinha relação alguma com o que é hoje."

É uma indireta para o surto de Platão que nos aflige partindo da academia. E inicia um parágrafo com a seguinte observação percuciente: “Por consistir o dogmatismo contemporâneo em 'sacralizar' tudo o que é 'filosófico', ...” dando a entender que não se conhece pensamento dogmático que não esteja escorado em garimpagens filosóficas.

E mais, ao começar o capítulo 7: “Anteriormente, falei sobre as críticas e as "revisões" às quais Freud foi submetido por psicólogos "científicos", bem como por espíritas e certos epígonos da fenomenologia, isto é, de todas as pessoas cuja característica comum é a de nunca terem inventado nada."

E, como não poderia faltar, não deixa barato para Lacan, talvez o maior charlatão da França:

"Para começar, essa franqueza nos faz sentir confortáveis e, como se trata de linguagem, digamos, sem rodeios, que na maneira de o Dr. Lacan se expressar nos parece, onde quer que a olhemos, um conjunto de clichês pseudo-fenomenológicos, uma confusão das mais deformadas e distorcidas que existem na verborreia existencialista e que cada uma de suas frases manca de uma aspiração forçada no estilo grandiloqüente, à agudeza, ao retorcimento, ao rodeio rebuscado, à formulação rara, ao giro pretensioso, embora alcance apenas o suficiente para ser um preciosismo pesado, um mallarmeísmo de bairro e um hermetismo para donzelas cansadas. "

“Acontece, porém, que os filósofos de nosso tempo permanecem mais ou menos conscientemente fiéis a aquele ideal medieval, àquela noção implicitamente religiosa de seu papel, e chamam de filosofia a tal sonho de disciplina orientadora, que seria ciência e prudência, conhecimento do absoluto e princípio hierarquizante de outros conhecimentos, que obteria daquela seu significado último. A filosofia de nosso tempo é uma tentativa desesperada de dissimular e disfarçar-se, a própria desintegração dessa concepção."

Pg 83: “Husserl quer fazer da filosofia uma “ciência rigorosa…. uma vez que a filosofia terá precisamente a tarefa de "fundamentar" tais ciências, substanciando seu significado, algo de que elas próprias são incapazes por causa do naturalismo, que é sua atitude espontânea. Observe-se que, nesse caso, a filosofia deve fundamentar as ciências já constituídas como ciências "rigorosas", quando sucede que ela própria ainda não é uma ciência”.

E já ao fim (p 88) “É comum ouvir-se que a literatura de nosso tempo é baseada na filosofia. Diz-se, inclusive com frequência, para deplorar. Muita metafísica no teatro e no romance, gemem os defensores da literatura pura. Curioso paradoxo, ainda que generalizado, mas como não vê-lo? O exato oposto acontece há um século, uma vez que é a literatura a base da filosofia de nosso tempo”.

"Certamente mais de uma obra literária manifesta hoje, em linhas gerais, intenções filosóficas mais explícitas do que a maioria das obras do século passado, por exemplo. Esse fenômeno corresponde a uma inversão de formas narrativas, cuja dominação, para o resto, foi momentânea. Mas mesmo esse momento, longe de garantir o triunfo da literatura pura (fantasma tão inatingível, ademais, como o da pintura absolutamente realista ou o da economia totalmente liberal) tem sido, pelo contrário, na ausência de qualquer filosofia formal aceitável, a época em que o papel da literatura correspondeu de maneira mais clara ao de um ensino. A literatura moderna tem sido a nossa filosofia e tem sido para os próprios filósofos. É a psicologia de Stendhal, Dostoiévski ou Proust, que serve para tentar entender a nós e nossos semelhantes, e não a de Bergson, Brentano, Pradines ou Merleau-Ponty. É em Joyce, em Kafka ou mesmo em Pirandello, onde encontramos os elementos daquilo que, para nós, mais se assemelha a uma metafísica, e não em Whitehead ou Heidegger. E se existe uma moral ou moral específica de nosso tempo, ou seja, novas maneiras de ver o homem moralmente, seja vítima ou ator, são Dos Passos, TE Lawrence ou Malraux que estão cientes disso e não Jaspers ou Max Scheler . Poder-se-ia citar muitos outros exemplos, de obras ou correntes, até questionáveis do ponto de vista estético ou esquecidas (não se trata de crítica literária), nas quais se encontram algumas das fontes de nossa reflexão e sensibilidade”.

A inadequação da filosofia clássica para os tempos em que vivemos, isto é, a sociedade high-tec, pode ser observada na pletora de conhecimentos produzida pelas pesquisas e investigações em áreas correlatas das ciências humanas, tais como antropologia, sociologia, psicologia (que avançou mais no conhecimento da mente humana que a filosofia no século XX), história, etnologia e arte.

Embora a filosofia analítica tenha produzido obras notáveis da pena de diversos filósofos, neste campo eles não se distinguem do resto da crítica. Russel escrevendo sobre Educação não é diferente de um Emil Farhat publicitário.

A própria crítica passou a elaborar as análises importantes que se tornaram uma mistura de conhecimentos agrupados em torno de ideias gerais. Por exemplo, as obras de Matt Ridley agregam campos do conhecimento especializado, com propósito histórico-filosófico-social. Percebe-se que se trata de um escritor que segue a tradição liberal britânica do pensamento político-filosófico.

Entretanto, o colapso da filosofia clássica reduziu a procura pelos filósofos, na medida em que a população do planeta aumentou. Isto também vale para a literatura. Eles se tornaram uma minoria dedicada a especulação de seus paradoxos, modelos de abordagem das variáveis do pensamento humano, sem acrescentar nada de novo. Assim como uma religião entra em declínio, uma forma de ver o homem também se desvanece nos tempos atuais. Como descrevi em A Insondável Matéria do Esquecimento, a insensibilidade filosófica para entender que o mundo se move pela tecnologia talvez seja o epitáfio mais importante para sua tumba: aqui jazz uma disciplina que ignorou a ciência.

Voltando a Revel, ele termina o livro com a resposta fatal e arrasadora:

“Assim, patrimônio de tagarelas e torpes, a filosofia é deixada de fora de tudo; oscila entre o humanismo hipócrita, o ecletismo formado com conhecimento de segunda mão, o jogo da prestidigitação etimológica à maneira de Heidegger, vulgaridade pedante e teologia vergonhosa”.

"Para quê, então, realmente os filósofos? Ou para quê, pelo menos, esses filósofos, se sua filosofia se tornou o oposto da filosofia, se a disciplina da libertação por excelência degenerou gradualmente naquela litania de fórmulas procedentes de todas as camadas do tempo e de todos os recantos do espaço, se a suposta escola de rigor não é mais que o refúgio da preguiça intelectual e da covardia moral? "

Cai o pano rapidamente.