quinta-feira, 4 de junho de 2020

Contos de Perplexidade e Êxtase

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo


Contos de Perplexidade e Êxtase

Livro em Português

Obtenha gratuitamente enviando seu EMAIL na caixa de comentários no final da página incluindo seu nome, que não será publicado. Especifique se deseja cópia em PDF ou EPUB.

Autor: Marcel Schwob
Palavras: 30.709
Tradução: Carlos U. Pozzobon


Para este escritor de vida breve (1867-1905), o paradoxo é a própria essência da vida, em cujo desenrolar o destino humano encontra seu fim na auto-aniquilação produzida pela alucinação de uma ideia, de um desejo, de um sonho. Para Schwob, que foi estudioso das culturas greco-romana e medieval, a literatura se confunde com a natureza dos homens incapazes de deter um pensamento, uma obsessão, que podem ser tanto o desejo de encarnar um deus, ou a danação de sucumbir a uma paixão incontrolável.

Em cada conto, consegue com uma maestria peculiar de umas poucas frases criar o personagem que irá seguir seu destino de crueldade ou santidade, de fanatismo ou de profecia. Talvez porque as dicotomias que compõem a razão humana se assemelhem em algum momento. Não sabem onde começa o sonho e onde termina a realidade. O destino quase sempre é infame, mas ele traz uma revelação que o personagem não consegue duvidar.

Esta característica dual está na raiz dos contos de Schwob. Ele foi um dos predecessores de Borges, e não por acaso o argentino prefaciou a edição espanhola de seu livro A Cruzada dos Meninos. Neste conto, o resgate efetuado por Schwob vai muito além da mera perplexidade: faz parte daqueles momentos em que a humanidade parece tomada por uma histeria coletiva: "o fato é que durante 2 séculos a paixão de resgatar o santo sepulcro dominou as nações do Ocidente, não sem maravilha, talvez, de sua própria razão... No princípio do século XIII, partiram da Alemanha e da França duas expedições (cruzadas) de meninos. Acreditavam poder atravessar de pé enxuto os mares. Não os autorizavam e protegiam as palavras do Evangelho deixai vir a mim os pequeninos e não os impedis (Lucas, 18:16) ?; não havia declarado o Senhor que basta a fé para mover uma montanha (Mateus 17:20)?", pergunta Borges. A coluna de meninos peregrinos foi engrossando por todos os vilarejos por onde passava. A adesão de outros meninos à causa era tão esmagadora que as estradas se encheram de pequenos peregrinos. A coluna se dividiu, uma indo em direção à Marselha e outra à Gênova. Fora mandada aos mares para aliviar a pressão das cidades tomadas de meninos. O destino desses garotos é contado magistralmente por Schwob usando a voz de diversos narradores. E a missão, naturalmente, termina na mesma perplexidade com que havia começado.

Assim são os Contos de Perplexidade e Êxtase que a Pzz Editora selecionou das obras de Marcel Schwob. A cada nova história, um mergulho no abismo e ao mesmo tempo, uma estranha impressão de que o homem é o mesmo em qualquer época, que todos os exemplares humanos se repetem em outros lugares como se uma estranha programação do universo forçasse os homens para fazer aquilo que só entrevemos nos sonhos, e muito mais, nos pesadelos.



Índice

Prefácio: A Cruzada dos Meninos (1896)
Descrição do Goliardo
Descrição do Leproso
Descrição do Papa Inocêncio III
Descrição dos Três Pequeninos
Descrição de Francisco Longuejoue, Clérigo
Descrição do Qalandar
Descrição da Pequena Allys
Descrição do Papa Gregório IX
O Rei da Máscara de Ouro (1892)
O Rei da Máscara de Ouro
A Morte de Odjigh
O Incêndio Terrestre
As Embalsamadoras
A Peste
Os Falsos Rostos
Os Eunucos
As Virgens de Mileto
Cruchette
Erostratos
Crato
Clodia
Petrônio
Lucrécia
O Capitão Kid
Walter Kennedy
Cyril Tourneur


Tendo em vista a pandemia do coronavírus, segue abaixo o conto A Peste

A Peste

A Auguste Bréal
CCCCI e mille l’an corant
Nella città di Trente Rè Rupert
Volle lo scudo mio esser copert
De l’arme suo Lion d’oro rampant
Cronica del Pitti

Eu, Bonacorso de Neri de Pitti, filho de Bonacorso, gonfaloneiro de justiça da comuna de Florença, cujo escudo foi coberto no ano de quatrocentos e um, por ordem do Rei Rupert, na cidade de Trento do Leão de Ouro rampante, quero contar aos meus nobres descendentes o que me aconteceu quando saí a correr mundo em busca de aventuras. No ano MCCCLXXIV [1374], sendo um jovem sem dinheiro, fugi de Florença para as infindáveis estradas com Matteo de companheiro. A Peste devastava a cidade. A doença surgiu de repente e atacava na rua. Os olhos tornavam-se vermelhos e ardentes, a garganta rouca, o ventre inchava. Depois, a boca e a língua cobriam-se de pequenas bolhas cheias de água irritante. As pessoas ficavam sedentas. Uma tosse seca sacudia os doentes durante várias horas. Logo, os membros ficavam enrijecidos nas articulações, e a pele ficava salpicada de manchas vermelhas inchadas que provocavam ínguas. E finalmente os mortos apresentavam uma aparência retesada e esbranquiçada com as feridas sangrentas e a boca aberta como uma corneta. As fontes públicas exauridas pelo calor estavam rodeadas de homens curvados e magros que tentavam mergulhar a cabeça. Muitos se precipitavam e eram retirados por ganchos em correntes, negros de lodo e com o crânio fraturado. Os cadáveres ressequidos espalhavam-se por inúmeras valas por onde corriam, na estação, as torrentes de chuva; o odor era insuportável e o medo, terrível.

Mas sendo Matteo um grande jogador de dados, nos animou logo que deixamos a cidade e nos metemos na primeira adega para bebermos um vinho em saúde de nossa mortalidade. Havia ali mercadores de Gênova e Pádua. Com os dados chacoalhando nas mãos os desafiamos, e Matteo ganhou doze ducados. De minha parte, desafiei-os ao jogo de cartas, quando tive a felicidade de ganhar vinte florins de ouro, e com os ducados e florins compramos mulas e um carregamento de lã. Matteo, que tinha decidido ir para a Prússia, fez uma provisão de açafrão.

Percorremos os caminhos de Pádua e Verona; retornamos a Pádua para nos suprir com mais lã e viajamos diretamente a Veneza. De lá, passando ao mar, entramos na Eslavônia e visitamos as belas cidades até os confins da Croácia. Em Buda caí doente de febre. Matteo deixou-me sozinho no albergue com doze ducados, retornando a Florença onde lhe aguardavam os negócios e aonde eu deveria ir reencontrá-lo. Eu jazia sobre uma cama seca e empoeirada, sobre o colchão de palha, sem médico e com a porta aberta para a sala de beber. Na noite de São Martinho, apareceu uma companhia de tocadores de pífaros e flautistas, com quinze ou dezesseis soldados venezianos e tedescos. Depois de esvaziarem inumeráveis garrafas, esmagarem as taças de estanho e quebrarem os cântaros contra os muros, começaram a dançar ao som de pífaros. Passaram pela minha porta com seus rostos sadios e rosados e, vendo-me estendido no colchão, quiseram levar-me para a sala gritando: “ou bebes ou morres!”; depois caçoaram de mim enquanto a febre me latejava a cabeça e acabaram por me enfiar na palha do colchão cuja abertura foi atada em volta do meu pescoço.

Suei abundantemente, e minha febre sem dúvida dissipou-se, ao mesmo tempo em que fiquei com raiva. Meus braços estavam petrificados e, como tinham tirado o apoio de minha cabeça, eu dava coices eriçado pela palha no meio dos soldados. Porém, eu trazia à cintura, debaixo do calção, uma curta lâmina embainhada; consegui deslizar minha mão até lá e cortar a capa do colchão.

Talvez a febre ainda me inflamasse o cérebro, mas a recordação da peste que havíamos deixado em Florença, e que depois se propagou pela Eslavônia, misturou-se no meu espírito a uma espécie de ideia que me fez por alucinação ver Sylla, o ditador dos latinos, de quem fala o grande Cícero. Ele se parecia, diziam os atenienses, a uma velha salpicada de farinha. Resolvi aterrorizar os soldados venezianos e tedescos: como me encontrava no meio do reduto onde o estalajadeiro guardava suas provisões de frutas em conserva, rapidamente arrebentei um saco cheio de farinha de milho. Esfreguei o corpo com a farinha e, quando fiquei com uma aparência entre branco e amarela, fiz com a faca um corte no braço de onde tirei suficiente sangue para sujar irregularmente minha indumentária. Depois reentrei no colchão e esperei os bandidos bêbados. De fato, logo chegaram rindo e cambaleando: mal viram minha face esbranquiçada e sangrenta se espantaram gritando entrechocados: “A peste! A peste!" Não recuperei as minhas armas porque a estalagem estava vazia. Sentindo-me restabelecido pela transpiração que me impuseram aqueles rufiões, tomei o caminho para Veneza a fim de me juntar a Matteo.

• • • • • • •

Encontrei meu companheiro Matteo errando pelos campos de Florença em uma situação difícil. Ele não ousara penetrar na cidade onde a peste continuava a enraivecer. Mudamos nossos planos e nos dirigimos para os Estados do Papa Gregório em busca de fortuna. Subindo para Avi­hão, cruzamos bandos de homens armados de lanças, espadas e partasanas, pois os cidadãos de Bolonha tinham se revoltado contra o Papa a pedido dos florentinos (o que ignorávamos). Ali fizemos alegres jogos com as gentes de ambos os lados do conflito, tanto no baralho como nos dados, até que nossos lucros somavam trezentos ducados e oitenta florins de ouro.

A cidade de Bolonha quase não tinha gente, e fomos recebidos nas saunas com gritos de alegria. Os quartos não estavam cheios de palha como em muitas cidades lombardas; não faltavam camas, ainda que as tiras de couro estivessem quase todas rotas. Matteo encontrou uma florentina conhecida, Monna Giovanna; de minha parte, não pensei jamais em saber o nome da minha, pois estava contente.

Ali bebemos em abundância: vinho encorpado da região e cerveja, e comemos doces e tortas. Matteo, a quem eu contara minha aventura, fingindo ir à latrina desceu até a cozinha e retornou vestido com uns trapos ridículos disfarçando que tinha peste. As garotas dispararam em altos e agudos brados até se certificarem e voltarem para tocar, ainda medrosas, a face de Matteo. Monna Giovanna não quis mais ficar com ele e ficou tremendo num canto, dizendo que ele cheirava à febre. Enquanto isso, Matteo, bêbado, pôs a cabeça entre as canecas sobre a mesa, que seus roncos faziam tremer, parecendo-se com as figuras de madeira pintadas que os charlatães mostram nas ruas.

Finalmente deixamos Bolonha e, depois de diversas aventuras, chegamos perto de Avinhão, onde ficamos sabendo que o Papa havia ordenado a prisão de todos os florentinos e mandado queimá-los, a eles e a seus livros, para se vingar da rebelião. Fomos avisados muito tarde, porque os esbirros do marechal do Papa nos surpreenderam durante a noite e nos lançaram na prisão de Avinhão.

Antes de sermos interrogados, fomos examinados por um juiz e provisoriamente condenados à masmorra, a pão seco e água, até depormos conforme prescreve a justiça eclesiástica. Consegui, todavia, esconder sob minhas roupas nosso saco de pano que continha um pouco de polenta e azeitonas.

O chão da masmorra era pantanoso, e não tínhamos ar além de um respiro gradeado que se abria ao rés da terra sobre o canto da guarda.

Nossos pés haviam passado por buracos de pesados cepos de madeira, nossas mãos frouxamente atadas a correntes de tal maneira que nossos corpos se tocavam desde os joelhos até os ombros. O guarda de turno nos fez o favor de dizer que éramos suspeitos de envenenamento, porque o Papa soubera por certos embaixadores que os gonfaloneiros da comuna de Florença mantinham o desígnio de matá-lo.

Assim, estávamos na escuridão da prisão não ouvindo o mínimo ruído nem sabendo a hora do dia e da noite e com grande risco de sermos queimados. Recordei-me então do nosso estratagema, e nos veio a ideia de que a justiça papal por terror da doença nos expulsaria para fora. Peguei com pena a minha polenta, e combinamos que Matteo iria rabiscar seu rosto e sujá-lo de sangue enquanto eu gritaria para atrair os esbirros. Matteo arranjou a sua máscara e começou a gritar roucamente como se a garganta estivesse engasgada. Invoquei Nossa Senhora ao sacudir minhas correntes. Mas a masmorra era profunda, a parede espessa e era noite. Durante várias horas suplicamos inutilmente. Cessei meus gritos enquanto Matteo continuava a gemer. Dei-lhe uma cotovelada para que ele repousasse até a alvorada: seus gemidos tornaram-se mais fortes. Toquei-lhe na escuridão; minhas mãos alcançaram seu ventre que parecia inchado como uma ostra. E então o medo me invadiu: estava colado a ele. E enquanto ele gritava com uma voz rouquenha: "Quero beber! Quero beber”, até o que me pareceu ser o apelo desesperado de um cão, a palidez do dia nascente surgiu no respiradouro. E então um suor frio percorreu meu corpo, pois sob sua máscara poeirenta, sob as manchas de sangue ressequido, vi que ele estava lívido e reconheci as crostas brancas e a exsudação vermelha da peste de Florença.


terça-feira, 2 de junho de 2020

Irmãos Brocato

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Quevedo

Crimes e Aventuras

Livro em Português

Baixe gratuitamente fazendo um comentário no pé da página solicitando o PDF ou EPUB, juntamente com seu endereço de email (que não será publicado).

Autor: Crispim Mira

No final do sec. XIX, dois irmãos sicilianos fazem um pacto e partem para a América separados. O primeiro tratava de fugir da polícia, o segundo cumpria executar uma sentença de morte contra o próprio chefe de polícia local determinado pelo pacto. Assim começa a trama que inicia em Messina, passa por Istambul, Buenos Aires, Rio de Janeiro, Florianópolis, Porto Alegre, Caxias do Sul e termina em Lages em 1º de maio de 1902.

A última vítima foi Ernesto Canozzi, filho de imigrantes italianos de Veranópolis, que residia em Porto Alegre e atuava como representante comercial, vendendo produtos da casa Almeida & Ltda em toda a serra gaúcha e catarinense.

Nesta época a imigração italiana era assistida por diversas entidades, entre as quais alguns jornais que divulgam os acontecimentos nas colônias, a situação das famílias e os problemas de integração social, além é claro, de fornecer notícias da Itália. O jornal Stella d’Italia, de Porto Alegre, dirigido por Adelchi Colnachi assume a causa do assassinato de Canozzi e não mede esforços para que os autores sejam descobertos e levados as barras da justiça. A casa Almeida & Cia oferece prêmio para quem possa achar o assassino.

A princípio os assassinos são detidos para averiguações, e como felizmente não vigia o estatuto da liberdade do réu até o fim do julgamento, o processo vai sendo montado e as descobertas sobre os antecedentes dos réus deixando claro que estavam envolvidos em outros crimes. A ficha cai, e por trás de um assassinato descobrimos uma história de charlatanismo e vigarice, de contrafação e truculência que Crispim Mira soube reconstruir com sua maestria de jornalista investigativo.

O livro pode ser obtido gratuitamente solicitando nos comentários abaixo, em PDF ou EPUB.


sábado, 30 de maio de 2020

A Insondável Matéria do Esquecimento — O Santo Tanso e o Pomposo Psicopompo

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Nada pode ser tão ruim que não possa piorar

No começo do milênio, o acaso de uma herança, o leilão de um prédio e a obstinação de um brasileiro forjado pelo sucesso do business americano o impulsionam a criar seu próprio HOTEL no Brasil — que termina virando palco do governo em exercício para formar alianças espúrias e envolver o país em uma malha de corrupção que lhe permita a perpetuação no poder via eleitoral.

Um intelectual irreverente, sardônico, com ideias fora dos padrões nacionais, age como desconcertante desmistificador do mofo ideológico revelado pelas principais figuras públicas nos eventos convocados pela situação e oposição dentro do hotel, conduzindo o romance para suas variantes hilárias, no debate que se trava entre representantes da esquerda jurássica (O Santo Tanso) e da direita naftalina (O Pomposo Psicopompo).

Em paralelo, o contraste entre esse homem que retorna ao Brasil esbanjando otimismo, e uma mulher descontente que jura deixar o Brasil a qualquer custo, cria surpreendentes situações psicológicas entre pessoas cuja mentalidade política degenerada pela corrupção em nada se assemelha ao racionalismo do cotidiano daqueles que não participam do poder. As pessoas cujas preocupações estão focadas nas tarefas do trabalho, assumem o perfil de seriedade condicionado pela imposição ética das relações sociais no respeito as normas. Do outro lado, aqueles cuja sobrevivência está deformada pelo privilégio de benefícios oligárquicos e com um comportamento marcado pela bajulação ardilosa, pela malevolência capciosa. Esta diferença define a paisagem humana em que se move o romance.

O autor recria episódios da vida nacional com sua própria nomenclatura, sempre citando nomes fictícios para personagens reais, permitindo assim botar na boca de seus personagens as palavras que caracterizam o perfil psicológico que conhecemos da mídia.

Mas o que é realmente a “insondável matéria do esquecimento?” Ao apresentar episódios da vida nacional totalmente esquecidos pela academia e mídia, o romance tem como background nosso descaso com o Brasil na medida em que nos dedicamos a imitação do exterior e sequer imaginamos o fecundo conteúdo de nossa identidade abandonada. Para provar isso, o autor dedica alguns capítulos para reaviar nossa memória com obras de personalidades importantíssimas da nossa história que são uma lição para estes tempos bicudos.

Se o lado oficial das práticas governamentais consiste em mudar tudo de tempos em tempos: nomes de instituições, órgãos reguladores, impostos, ministérios, departamentos e até a sintaxe da língua, que o autor chama de operações proteiformes, a causa invisível é a necessidade de fazer de conta que se muda, e ao mesmo tempo, conservar os males existentes que são as causas da necessidade de mudança. Se o Brasil fosse o guardião das regras do futebol, a cada dois anos haveria modificação nas regras pelo simples desacordo constante entre clubes e federações. E hoje o jogo seria disputado por equipes com o dobro de jogadores de cada lado, com substituição obrigatória para atender aos requisitos dos diretores dos clubes, as traves seriam maiores, o tamanho do campo também e a duração da partida não haveria de ficar no convencional. E as faltas? Bota aí uma nova diretriz. Mudem-se os pênaltis, e assim por diante. Esta ideofrenia pela mudança das convenções comumente é comandada por pessoas que se dizem conservadoras. Não sobra ao escritor outro recurso senão a sátira demolidora, o humor lampejante capaz de iluminar o conhecimento de nós mesmos.

Sabendo que é muita coisa para um volume só, o autor já deu início ao segundo volume.

O livro pode ser obtido em papel através da editora neste link.


segunda-feira, 25 de maio de 2020

Ópios e Rodopios nos Trópicos

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O Último Barroco

Um grupo de estudantes gravitando em torno de uma república chamada Amarelinha tem na irreverência a agregação potencializadora de expectativas que buscam a satisfação de conflitos existenciais.

Em linguagem ornamental, o livro vai revelando o autor como "o último barroco” por ressuscitar um passado parnasiano perdido na correria do progresso, extraviado em meio à comunicação verbal direta e sem brilhantismo que segue as transformações tecnológicas impostas pela agilidade do viver.

Em um mundo de mensagens abreviadas, de manchetes e chamadas curtas, faz algum sentido retomar o exercício da fala rebuscada e erudita? O livro mostra que não pode haver erudição em literatura sem que a própria linguagem seja sua expressão vibrante.

Inicialmente, um texto tão prolífico pode causar estranheza, mas o leitor logo percebe que o exagero associado à exuberância existencial é próprio de quem leva o inconformismo para a realidade do agir e sentir.

Que tipo de inconformismo se pode esperar de uma sociedade arcaica senão reagindo com violência verbal? Na atmosfera asfixiante do regime militar de então, o único recurso era a retórica debochada, o riso sarcástico, a ironia sardônica.

A busca do novo, a vontade de ser outro, de estar longe, com outra gente, e valores diferentes dos convencionais, foram o substrato de toda aquela geração universitária.

O conflito entre o indivíduo e uma sociedade medíocre, que reduz a inteligência a cinzas, a fugas de alívio e contentamento — arte culinária e prostituição, música clássica e jazz, álcool e cigarros, repressão e medo, boemia alucinada —, atravessa o livro com extravagância até desembocar no romance entre uma pintora e um estudante que se envolvem num rodopio de paixão instantânea, seguido de solidão e desencontro.

A ausência se traduz em amor na solidão, no desejo do reencontro, no fim de curso, de época, de um tempo que nunca mais voltará.

A busca do novo, a vontade de ser outro, de estar em outro lugar com outra gente, com outros valores diferentes dos convencionais são o substrato de toda uma geração universitária.

Estamos vivendo uma época que vai repetindo o passado assombrosamente. Vivemos de fracasso em fracasso, como cantava Nelson Gonçalves na canção de Mário Lago. Nela, o fracasso é não poder se esquecer de um amor — "fracasso por compreender que devo esquecer / fracasso porque já sei que não esquecerei / fracasso, fracasso, fracasso, fracasso afinal / por te querer tanto bem e me fazer tanto mal". Em nosso momento histórico, por esquecer o que passou e nos querer tanto mal a ponto de repetir os mesmos erros.


sábado, 23 de maio de 2020

Pró-Pátria

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As meias-verdades sobre o primeiro ciclo da borracha (1827-1912)


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Pode-se pensar que uma intelligentsia mostre sinais de impotência provocados por algum princípio mensurador da decadência de um país. Mas também podemos atribuir a nossa vocação para o fracasso intelectual a um estranho fenômeno tropical, a uma deficiência que nos mantém no círculo vicioso de uma escolástica motivada pelas mesmas interpretações.

O ciclo da borracha no Brasil constitui um desses exemplos em que a falta de lógica, a ausência de pergun­tas, a incapacidade para ver além das aparências, nos prendem a uma interpretação que não seria singular se não fosse um exemplo revelador da doença do espírito que nos abrasa como uma malária, e que nos incapacita de enxergar além dos lugares comuns do vitimismo. Mas tudo não passa de falsificações de uma verdade que não se quer ver, e cu­jos resultados não se quer calcular — uma aversão congênita à verdade, e uma impotência ao raciocínio frio do cálculo.

Pouco se pode fazer contra uma montanha de asni­ces, exceto resistir com a evidência dos fatos descobertos pela metodologia intuitiva do pesquisador. Nossos historia­dores repetem à exaustão de que o ciclo de navegação portuguesa foi motivado pela busca de especiarias, e o po­bre adolescente engole esta estória na sala de aula como se, na Idade Média, o povo tivesse uma compulsão misterio­sa para se encher de pimenta, cravo, canela e sabe-se lá o que mais para arder seus gorgomilos febricitantes de condi­mentos extravagantes.

E, na verdade, a mais banal das ligações entre causa e efeito, é que a dita pimenta da Índia era também um con­servante dos alimentos dos navegadores, que metiam as carnes assadas em barricas, cobriam-nas com banha de porco e, sobre a superfície distribuída em alguns centímetros, colocavam sua porção de pimenta para evitar a deterioração. E, assim, o que era uma necessidade logística passa a ser uma questão de condimentar a sociedade em proporções rabeleaisianas, na ausência de explicações de autores que leem outros e passam a macaquear sem se fazer perguntas, e, muito menos, sem chegar às verdadeiras razões dos atos mais ordinários da vida cotidiana de uma época.

Com a borracha, ocorre algo semelhante. Entre tan­tas falsificações, podemos começar didaticamente mostrando como a realidade tão evidente, é, ao mesmo tempo, tão banal. Uma parábola sobre o distributivismo tal­vez possa iluminar alguma coisa para quem não costuma buscar na história um elenco de explicações lógicas para seus acontecimentos.

Suponhamos que “alguém” ganhe um milhão por mês, e a sociedade, assolada pela febre de populismo em nosso país, ache que ele deveria distribuir 40% e ainda as­sim viver como um rico. Consulta-se a opinião pública e esta logo se declara favorável a que esse Midas egoísta e desu­mano distribua seu milhão: 400 mil para 100 pessoas, resultando numa renda per capita de 4 mil, e 600 mil para o nosso Midas. Agora, parece implantado o socialismo, e tudo se acomoda na boa consciência da justiça social realizada.

Porém, uma investigação mais apurada constata que esse Midas que fatura 1 milhão não é uma pessoa, mas uma empresa que recebe 100 reais por mês pelos produtos que vende a 100 mil pessoas. Como empresas têm obrigações sociais, tudo parece pacificado. Mas, se perguntado às 100 mil se preferiam gastar só 60 reais, reservando os outros 40 reais para gastar em outras coisas, a resposta seria óbvia.

Mas até aí morreu o Neves, e acabou o distributivis­mo. É pre­ciso dizer que os 100 premiados com uma renda de 4 mil mensais são funcionários inúteis, para aproximar a parábola ao nosso Brasil? E que os 100 mil que pagaram são nada menos do que a nossa classe trabalhadora — tão fartamente defendida pelo estrabismo distributi­vista, mas, na prática, tão vilipendiada pelas ideologias que pressupõem representá-la?

Estendendo a parábola a outras paragens, verifica­mos, com o passar do tempo, quais são as consequências para essa empresa. Se, a despeito de ser tungada em 40% de sua receita, ela consegue sobre­viver, significa que uma empresa estrangeira, não submetida a semelhante abuso tributário, poderia acabar com a nossa empresa, especial­mente quando esta produz para o mercado internacional. Portanto, um país pode acabar com a produção de outro se for o comprador de sua matéria-prima e, ao mesmo tempo, for capaz de produzi-la mais barato.

Este é o caso revelado pelo 'Pró-Pátria', de Carlos de Vasconcelos, em uma vibrante narrativa barroca escrita aos 26 anos de idade. Amigo de Euclydes da Cunha e de Alberto Rangel, foi um dos mais exuberantes narradores de nossa realidade amazônica na época da hévea brasiliensis.

Carlos Carneiro Leão de Vasconcelos nasceu em 1881 no Ceará, estudou em Recife, onde se formou como enge­nheiro operacional e topógrafo. Depois de formado, foi para o Amazonas trabalhar na demarcação do rio Purus. Passados 2 anos, veio para o Rio, onde concluiu o curso de engenharia civil em 1901. Voltou ao Amazonas para a demarcação do rio Iaco e do alto Purus, situados no Acre, então território habitado majoritariamente por cearenses extratores da “seringa”. Depois de 2 anos, de volta ao Rio de Janeiro, participou ativamente do debate sobre a anexação do Acre. Como outros de sua geração, estudou o espetacular desenvolvimento americano do século XIX e, entusiasmado com o fenômeno “América”, viajou à Europa e aos EUA, de onde escreveu este livro ao Ministro de Obras de Afonso Pena, mostrando a insanidade dos anos que antecederam à crise que haveria de cortar nossas exportações de borracha abruptamente, em apenas 3 anos. Teria sido uma premoni­ção não fosse uma simples operação lógica reservada à sua familiaridade com a ciência. Faleceu em 1923 no RJ, em consequência da explosão de uma caldeira.

O que ele nos conta é o resultado de duas forças atu­antes na sociedade da época: o donatário ou concessionário do negócio e a política fiscal do estado brasileiro. Quanto à exploração impiedosa da escravidão do seringueiro, temos literatura abundante em nossas universidade. Mas, salvo al­gumas passagens sobre mineração, pouco se fala sobre a exploração fiscal — assunto dado como irrelevante, sendo, no entanto, a explicação mais contundente para o fracasso brasileiro na produção do látex.

A exploração fiscal deveria nos levar a refletir sobre todos os nossos ciclos produtivos: do açúcar ao café, do gado à soja, da mineração à borracha, para descobrir por que nosso PIB encolheu em, no mínimo, 6 trilhões de dóla­res. E o que se vai demonstrar nas páginas de 'Pró-Pátria' é o que foi perdido apenas na cultura da borracha, que nos fez passar da opulência de décadas ao colapso, em apenas 3 anos.

Neste ponto entra Carlos de Vasconcelos com seu Pró-Pátria para irrigar a nossa história econômica: os custos da borracha brasileira na Bolsa de Londres tornaram-se, no início do século XX, mais altos do que os custos da borracha da Malásia, transportada de uma distância maior, de menor qualidade elástica porém mais pura.

O leitor talvez não esteja acostumado a importar pro­dutos pela Internet. No Brasil, em pleno século XXI, a um produto importado que custe 100, aplica-se o ICMs de 18%, saltando para 118. Depois, aplica-se a tarifa de importação de 60%, obrigando o comprador a pagar 70,08 para a adua­na, isto é, 70% efetivos sobre sua compra com imposto sobre imposto em cascata.

O mesmo aconteceu com a exportação da hileia: numa escalada voraginosa de sobretributação, na base de 23%, que poderia subir para até 40%, imposto que era distribuído entre as prefeituras, os governos dos estados e o governo federal. Isto significa que o imposto era regiamente apropriado pela classe política, de cuja abundância se permitiam os luxos ostentatórios da época, compartilhados com os barões da borracha. Mas, como se verá, havia ainda outros tributos, que ao final inviabilizaram a produção. Caso espetacular a ser citado em nossas salas de aulas — se o país tivesse se encontrado consigo mesmo e não vivesse sob a alienação do vitimismo —, como exemplo em que tri­butação produz miséria, em vez de progresso.

Como o governo inglês cobrava a tarifa de 6% sobre a exportação de sua borracha da Malásia, o leitor pode en­tender facilmente as causas pelas quais o Brasil perdeu o que tinha de mais valioso do ponto de vista de sua exclusi­vidade econômica à época.

E como a ditadura fiscal nunca foi demolida, e age incontrolá­vel e independentemente sobre a nação como se fosse um poder separado, o ciclo que poderia ter permitido o desenvolvimento de uma infraestrutura espetacular, o nascimento de grandes cidades, a construção de portos, es­colas, hospitais, murchou repentinamente em 1912, quatro anos depois da edição de Pró-Pátria, e nunca mais se recu­perou totalmente, porque ninguém muda a estrutura tributária moldada para manter a oligarquia política que du­rante 500 anos manda e desmanda no país.

Para se ter uma ideia do descalabro tributário, de acordo com IBPT (Instituto Brasileiro de Planejamento Tribu­tário), em 25 anos (1988-2013) foram editadas 309,1 mil normas tributárias, uma mé­dia de 31 por dia nos três níveis de governança do país.

O que fica para ser calculado é o quanto perdemos em riqueza. Se no futuro alguém examinar as tabelas de produção da borracha natural, talvez possa transformar em cifra toda a produção de um século: eis aí uma pista para calcular o que seria nosso PIB se não fossem nossas institui­ções totalmente refratárias ao capitalismo clássico. Por exemplo, em 2012, a produção mundial da borracha natural foi de 11 milhões de toneladas, das quais o Brasil IMPORTOU da Malásia 22.600 toneladas (ver International Rubber Study Group).

O Brasil poderá retomar o cultivo da hileia e se tornar novamente exportador, bastando para isso que o cultivo se caracterize como uma atividade do agronegócio, nos moldes das demais explorações florestais. Sabemos que, desde 1992, começamos a cultivar a seringueira, mas ainda existe a necessidade de novas técnicas para que o passado seja deixado para trás e possamos voltar a ter os benefícios de nossa própria natureza. O livro de Carlos de Vasconcelos tem a singular importância de nos apontar os erros que se eternizaram ao longo do século XX. Sem conhecê-los, não sairemos da crise que nos acomete como uma doença incu­rável.

Carlos U Pozzobon

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domingo, 2 de fevereiro de 2020

Um Dia na Vida o Diabo Duvida

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo

Um dia na vida o diabo duvida

Livro em Português
KINDLE e PAPEL da Amazon
Autor: Carlos Umberto Pozzobon
Palavras: 50.725

A expansão do estatismo no Brasil, construída em torno de um pacto social em que se abrigam os velhos dirigentes da oligarquia política capitaneados pelo PT, favorecidos pela musculatura econômica da entrada em cena dos países asiáticos e do alto preço das commodities no mercado mundial, permitiu a expansão do fascismo benevolente em proporções avassaladoras na história brasileira. Demonstrando que as origens do totalitarismo transcende a política, e que uma sociedade dependente do Estado sempre estará inclinada a aceitá-lo para manter seus privilégios, o autor procura discutir as possibilidades desse fascismo benevolente migrar para o totalitarismo. E mostra através de um engenhoso sistema, como uma reforma política poderia alterar o quadro institucional do Brasil partindo de premissas corretivas do próprio sistema.

Índice

Primeira parte: A marcha ao totalitarismo
Os fatores totalitários
O totalitarismo na versão socialista
O totalitarismo na versão liberal
As bases intelectuais do totalitarismo
O sistema de ensino e o totalitarismo de cátedra
A crise da universidade
O pacto social midiático
A base de apoio
A mente totalitária
A metodologia do totalitarismo
O petismo 2.0
A inversão fundamental do totalitarismo
A reforma política totalitária
A reforma política necessária
Nosso atraso intelectual: nacionalismo e marxismo
O nacionalismo retrógrado
O marxismo devastador
Segunda Parte: As causas da confusão estrutural
Subcapitalismo brasileiro
A matação
Ideologias de suporte
Dois pesos e duas medidas
Semicapitalismo brasileiro
Estabilidade no emprego
Garantia de direitos exclusivos
1. Modelo de autoridade
2. Estilo de monopólio
3. Ideologia da diferença
4. Modelo de representação
Capitalismo high-tec
Elixir dos deuses
Tecnologia e sociedade
Gradualismo
As dificuldades da ciência no Brasil
Posfácio: Pequenas razões para grandes equívocos


Esquerda Caviar

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo

O livro Esquerda Caviar de Rodrigo Constantino saiu poucas semanas depois de A Civilização do Espetáculo de Vargas Llosa, ambos tratando de temas da conjuntura cultural internacional, embora sob diferentes enfoques.

Enquanto Vargas Llosa aborda o declínio da cultura erudita, em favor da cultura da frivolidade, um fenômeno que não é novo, porém turbinado pela era da Internet, Rodrigo Constantino se limita ao comportamento humano naquilo que se chama de politicamente correto e, sobretudo, do desastre ideológico contemporâneo na gênese da reorganização do marxismo sebento em bolivarismo fraudulento.
Se Vargas Llosa enxerga a situação atual com pessimismo, fruto da vigarice intelectual, da midiatização da fraude em nome da arte, Rodrigo Constantino a vê como uma manifestação ideológica, fruto da personalidade oportunista. Ele confessa sua perplexidade com líderes culturais que preferem defender abertamente ditadores e ditaduras, enquanto se banqueteiam com as benesses do capitalismo avançado. Comenta a falácia de líderes ambientalistas que se valem de jatos particulares para viajar mundo afora e fazer propaganda do aquecimento global.

Analisa, dentro das esquerdas engomadinhas, as bandeiras do antiamericanismo, o culto ao multiculturalismo, o guevarismo messiânico, a justiça social e o utopismo juvenil. Em um capítulo chamado Sem Preconceitos, que talvez seja o melhor do livro, aborda um tema pouco divulgado nas mídias sociais, o da impossibilidade de não haver preconceitos na esfera de apreensão humana das questões cujas aparências necessariamente devem servir de alerta para todos nós. A criação do estereótipo é tão importante quanto o cuidado que se deve ter para não discriminar pessoas somente pela aparência.

Exceto este capítulo, o livro é apenas um apanhado do que circula na Internet. Sendo Constantino um dos representantes mais influentes da nova geração liberal, seu livro denota uma quase total ausência de conhecimento sobre o legado das gerações liberais brasileiras anteriores, tal como Emil Farhat.

Esta perda de elo com o passado dos nossos analistas sociais é um dado que abre um precedente perigoso, na medida em que as novas mídias, não podendo substituir o repertório acumulado, relegam ao esquecimento todo o esforço intelectual do passado.
Um exemplo típico disso são as atenções da nova geração liberal relativas aos fenômenos contemporâneos: quando da crise americana das hipotecas de 2008, o surto de keynesianismo do governo Obama foi combatido no Brasil com a publicação da trilogia de Ayn Rand, chamada A Revolta de Atlas, o que produziu uma quantidade apreciável de leitores em todo o país. Entretanto, quando da vitória do PT em 2002, ninguém desta geração percebeu que era urgente reeditar O País dos Coitadinhos, seguido de O Paraíso do Vira-bosta, a propósito do populismo magistralmente analisado por Emil Farhat, nos anos 60.

O que se passou no Brasil desde a vitória do PT, em termos de dissolução moral e institucional, merecia uma reflexão mais atenta dos liberais desta nova geração, pois afinal todo populismo carrega os mesmos vermes destruidores em qualquer época, e está se repetindo nos dias atuais, com seu economicídio apenas atenuado pelo crescimento espetacular das exportações de commodities até 2010. A crítica liberal não aconteceu porque houve este descolamento da cultura nacional em favor da globalização, que acaba atuando como uma Wikipédia de reminiscências históricas, sem deter-se no testemunho do momento histórico revelado pelos analistas contemporâneos.
A Wikipédia pode ser um guia geral para orientação, mas quando se está em confronto com uma realidade nacional em que as palavras funcionam como jabuticabas, é preciso ter cuidado, pois vivemos um momento de incontáveis mistificações semânticas levadas a cabo por uma ideologia claudicante que não mede esforços para se apropriar das palavras para a consolidação de seu discurso de inversões. Todos nós sabemos que a palavra democracia tem sido usada até para denominar países socialistas. O duplipensar utiliza um conjunto semântico realmente grande, e como toda a esquerda se organiza em um discurso, os liberais não podem fazer concessões sob o risco de serem escanteados para sempre do poder, pois quem não tem escrúpulos para a moralidade republicana, não os terá para usar as mesmas ideias e expressões.

É o caso de reacionário que se lê na p. 91: “quando me deparo com essa agenda cultural esquerdista, onde 'vale tudo', onde o único ser bizarro é o heterossexual fiel e cavalheiro, educado e atencioso, confesso que sinto vontade de ser um carola, moralista, puritano, conservador e reacionário, algo que, definitivamente, não sou. Nelson Rodrigues até aceitava o rótulo de reacionário, pois dizia que, de fato, reagia contra tudo aquilo que não prestasse. Neste aspecto, sim, sou um 'reacionário' também”.

Conta Wilson Martins, em seu monumental História da Inteligência Brasileira, que foi Jackson de Figueiredo quem deu sentido à palavra reacionário. A palavra passou a ser aceita pelo “pensamento católico para definir-lhe (sic) a posição: os inimigos a abater eram a 'democracia liberal' e a 'corrupção burguesa', plataforma em que se irmanaram católicos e comunistas, anarquistas e tenentes; Hamilton Nogueira chegava a afirmar que os liberais eram as desgraças do Brasil”. (Vol. VI, p. 364)

Isto ocorreu ainda nos anos 20, quando a turbulenta República, assaltada por rebeliões, viria a ser perturbada pela crise do café, ressuscitando as ideias de Antonio Torres, que havia apontado no liberalismo a culpa pela crise endêmica das nossas instituições. Para Antonio Torres, somente um estado forte seria capaz de livrar o país da penúria econômica, e a crise foi o suficiente para que os intelectuais como Plínio Salgado, Olbiano Melo, Miguel Reale, Alceu Amoroso Lima e Azevedo Amaral se alinhassem com as novas ideias corporativistas, e mais tarde integralistas. Este último acusava a democracia liberal como causadora da desordem nacional. Pela primeira vez foi feita a distinção entre regimes autoritários e totalitários, termos que seriam usados recorrentemente pelo regime militar de 64.

Obiano Melo escreveu um livro em 1929 contendo o esboço de um estado sindical corporativo a que daria o nome de República Sindicalista dos Estados Unidos do Brasil. Esta mentalidade não durou muito, mas foi o suficiente para causar o estrago da Era Vargas, cujo pesadelo durou até 1945, embora o populismo subsequente viesse ressuscitar o fantasma do reacionário.

A nova fase de insurgência do reacionário foi no pré-64. O populismo vinha destruindo o país com os constantes déficits orçamentários de duas grandes corporações: os ferroviários e os portuários. As legislações trabalhistas criaram tal sorte de privilégios, a perda de autoridade chegou a tal ponto entre os trabalhadores, que se criaram leis obrigando nossos navios costeiros a navegar com uma tripulação oito vezes maior do que os cargueiros internacionais. Os custos portuários foram subindo em níveis tais, que o país ficou incapacitado de utilizar seus portos e ferrovias para o escoamento da produção nacional.

Quando o populismo se transfigura em eleitoralismo, em concessionismo incontrolável, qualquer reivindicação de grupos organizados passa a ser aceita imediatamente por tantos partidos políticos quantos disputem o poder. Desaparecem os freios ideológicos e todos os candidatos se arremessam em promessas encantatórias e mirabolantes.

Com o país paralisado em seus meios de transporte, com uma inflação galopante ano a ano, eis que um ministro do governo Jango bolou uma ideia que haveria de trazer ao vocabulário nacional novamente o espantalho do reacionário: as reformas de base, entendidas como a reforma agrária, a reforma urbana e a reforma educacional. Aquilo que o populismo destruía em ação política, agora seria saneado pelo salvacionismo das reformas de base. E quem se manifestasse contra, logo era tachado de reacionário.

A nova conspiração nos é revelada por Emil Farhat, em seu O País dos Coitadinhos. Os grupos que gravitavam em torno do PCB, procuravam hostilizar todos os dirigentes “burgueses” com suas ideias torpes e ações coordenadas. “A qualquer atitude ou medida mais decisiva dos seus 'orientados', contra a demagogia ou a favor da livre iniciativa, eles faziam uma careta, entre amuados e superiores, e aplicavam a 'chave' do terror intelectual: 'cuidado, chefe. Cuidado para não o chamarem de reacionário!... Olhe o seu futuro político junto às massas...” (p. 35)

O temor era generalizado. Ninguém recuava diante de uma proposta de privilégios a uma categoria estatal, ninguém protestava contra um projeto de lei que inviabilizasse um setor da indústria em favor de interesses do corporativismo. Assim ocorreu com a remessa de lucros, o bode expiatório utilizado para explicar o pagamento dos empréstimos para a construção de Brasília. Como a indústria automobilística havia sido implantada poucos anos antes, as remessas eram mais do que naturais, não fosse o fato de as despesas com a Nova Capital terem secado o caixa do governo.

O reacionário passou a ser todo aquele que ia contra o mainstream do populismo. Neste momento entra em cena a figura de Nelson Rodrigues, um intelectual que não tratava de temas políticos e que, em determinado momento, explode de ira contra a burrice nacional e resolve enfrentar o 'mar de estupidez'. Em entrevista a um colega jornalista, afirma que resolveu deixar de ser covarde. E o resultado foi o contrário do que se poderia supor. Ele começou a ganhar notoriedade com suas polêmicas e receber apoio de uma parte da sociedade acuada e envergonhada com a situação nacional.

Depois que Alceu Amoroso Lima elogiou a revolução cubana, com sua máquina de propaganda castrista, um fenômeno que os intelectuais deste país aderiram até perceberem seu erro, já que os campos de concentração cubanos só apareceram em 1967, Nelson Rodrigues explode em ira e passa a vaticinar contra a adesão ao comunismo, mantendo o mesmo perfil de polemista e crítico social de sempre. Este é o único sentido para sua observação: “sou reacionário porque reajo contra tudo o que não presta.” Mas a observação não tem nenhum sentido filosófico, já que não permite caracterizar exatamente “o que não presta”.

Rodrigo Constantino percebe que o reacionarismo, além de se caracterizar por um 'passadismo retranca', se opõe a uma evidência comprovada em matéria social. Por isso ajusta os ponteiros de sua bússola quando fala (p. 170) de uma “esquerda carnívora”, mais reacionária do que todas, que ainda consegue pregar o socialismo depois de seu vergonhoso fracasso. A esquerda carnívora é aquela que sente atração por caudilhos como Hugo Chávez. Por outro lado, ele sabe pela experiência que existe uma “esquerda vegetariana” que ainda aceita certos postulados da economia de mercado. Ora, como seria uma esquerda que não postulasse a intervenção do estado? Como seria essa esquerda que não postulasse um governo onipotente para resolver os problemas da humanidade?

Talvez estivesse no escorregamento semântico do liberalismo em esquerdismo nos EUA. Mas a mesma coisa aconteceu com o progressismo. Nos tempos de Theodore Roosevelt, o progressismo era conservador e totalmente diferente da apropriação que mais tarde foi feita em seu nome por movimentos contrários a única condição que produz o progresso: o livre mercado e a livre empresa no ambiente competitivo.
A força da esquerda não provém apenas de uma doutrina transfigurada em profecia, porém do fato de se apropriar da mobilização popular de dezenas de reivindicações espontâneas dentro da armadura enferrujada da luta de classes. Não é mais possível um encontro de moradores em um salão paroquial para reivindicar uma linha de ônibus para seu bairro, sem que isto não seja uma “etapa da luta popular revolucionária”.

Os três mandatos dos governos petistas mostraram que não se trata de um partido voltado para a ação, para a governança, mas para o poder, isto é, para organizar um discurso em que a realidade passa a ser aquilo que é enunciado e não o que os fatos possam comprovar. Tarso Genro falou claramente em artigo recente, que os réus do mensalão foram condenados devido a opinião da imprensa contrária a eles. O discurso passa a ser a realidade e os fatos se enquadram ao discurso: isto é o totalitarismo nu e cru.

Por isso, esta nova geração de liberais precisa manter a guarda alerta contra o surto de ortodoxia que lhe cerca, cuja estreiteza mental consiste em jogar as pérolas aos porcos, especialmente legitimando à esquerda a apropriação semântica que ela não tem e não pode oferecer: a democracia e o progresso.

Quem viveu a atordoante revolução tecnológica que se iniciou com a digitalização das redes de telecom há cerca de quarenta anos, passou por incontáveis torturas semânticas. Termos e expressões usados em um ano, passaram a ter significado diverso no ano seguinte. Palavras que tinham um significado único, de repente começaram a incorporar outros sinônimos e, a cada nova geração de equipamentos, vinha um glossário de termos novos ou antigos recauchutados para expressar a nova tecnologia. Isto atenuou com a “maturidade” das novas tecnologias, mas logo novas descobertas vão tirar nosso sossego com os “velhos” vocábulos.

O livro Esquerda Caviar sugere ao leitor a pergunta de saber se nos demais países totalitários, e especialmente na China, não existe um espelhismo em relação ao Ocidente. Em outras palavras, se a penetração da tecnologia do Ocidente e seu way of life, não produziria por acaso um Liberalismo Cavalar na classe ilustrada e cosmopolita da sociedade chinesa, algo como que um reconhecimento e admiração da superioridade da democracia ocidental ainda que com um discurso bem disfarçado nos mitos e sectarismos do marxista. A resposta é seguramente positiva, mas sua análise seria um outro livro.


Viva o Povo Brasileiro

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Quevedo

Aos poucos vai se tornando um clássico da literatura brasileira. A ambição de João Ubaldo foi traçar a saga da formação do povo brasileiro através da gênese da miscigenação racial no período colonial. Iniciando na Independência do Brasil, na figura do alferes Brandão Galvão, amaldiçoado pela família, que mata um escravo para se cobrir de sangue, e que o utiliza para fazer os emplastros dissimuladores de ferimentos enquanto aguarda escondido o desfecho da batalha, e que se associa às forças vitoriosas para ser condecorado como herói da Independência.

A história começa com uma farsa. Ubaldo nos apresenta a construção de um país pari passu com a acumulação de riqueza através da falcatrua, da negociata, do esbulho e da corrupção. Tudo isso poderia fazer com que a obra não saísse de um romance convencional, não fosse o fato de Ubaldo apresentar uma narrativa que está impregnada com as lantejoulas de nosso barroco verbal precioso, há muito tempo abandonado pela influência preguiçosa da literatura norte-americana.

A contrapartida da fraude institucionalizada transparece na natureza do caráter do brasileiro bem-sucedido da sociedade colonial, em um mundo onde tudo é possível: a lei só existe para os mais fracos e as disputas são resolvidas nas maquinações ardilosas. O alferes Brandão Galvão se apossa dos bens da família, expulsa do país os fiéis do império para Portugal, e coloca sua máquina de produção de açúcar em movimento, contratando para isso um contador, que ardilosamente vai desviando capital para si e que, ao fim, irá dilapidar seus bens através de fraude contábil, e se apossar de sua fortuna quando da morte do alferes, construindo uma nova dinastia de senhores de engenho e negociantes, cujos três descendentes se dedicam ao mundo das finanças, ao clero e à vida militar na figura do general Macário, combatente e herói da guerra do Paraguai.

No plano do povo, temos a saga dos escravos, a história de personagens extraordinários, como o nego Budião, que luta como voluntário na revolução farroupilha, convocado por uma organização semiclandestina chamada justamente Povo Brasileiro. Do estupro do Alferes Brandão com uma escrava, nasce uma menina que anos depois assistirá sua mãe ser assassinada ao se defender de uma tentativa de estupro com um borzeguim, e deste choque se tornará a líder do povo que haverá de resistir às injustiças e lutar pelo fim da escravidão. Maria da Fé é assim uma personagem mítica e real, misteriosa e portadora das aspirações de um povo esquecido em uma sociedade incapaz de conseguir um lugar para a ilustração e o iluminismo que sacodem o mundo no século XIX. Coagulados no mundo colonial mercantil e oligárquico, os personagens de Ubaldo Ribeiro são envolvidos em uma saga pelos meandros da história brasileira do século XIX, e vão intercalando episódios datados em um vaivém cronológico onde são retomados a cada conjuntura, permitindo tramar a história como seres atuantes nos destinos do Brasil.

A Irmandade do Povo Brasileiro avança até Canudos, ápice final do século XIX e ponto de inflexão acerca de nossa crise vazia de princípios, impotente em traçar destinos que não seja o do estado ordenador e ao mesmo tempo excludente. Ubaldo não aceita a teoria comum de que o sertanejo (termo que ele não usa, pois seu ponto de irradiação é a ilha de Itaparica e sua cultura litorânea) seja um povo imerso em uma cultura de misticismo e superstição, que por si só seria capaz de criar somente uma figura profética como elemento de aglutinação, mas jamais um caudilho político revolucionário e ilustrado. Prefere mostrar que o sertanejo é um povo que, não obstante sua exploração e desmandos, ainda mantém intato um discernimento racional sobre seu papel e destino. Tese duvidosa, pois a natureza da infindável crise brasileira está justamente em recusar a modernidade em troca da opção ilusória por uma sociedade onde o mundo colonial possa permanecer intato, bastando para isso que o estado seja redistributivo e assistencialista.

O horror à mudança pode estar fantasiado no desejo de mudar, principalmente naquelas condições lampedusianas onde não se sabe o caminho a traçar, as etapas a serem cumpridas, uma vez que as sociedades evoluídas se distanciaram do Brasil também por caminhos empíricos, embora cristalizadas em princípios da liberdade proporcionada pela luta contra a hierarquização da Contrarreforma que acabou tendo seu alvo dirigido contra o estado.

Nada disso ocorreu por aqui. Passamos do colonial ao marxismo, e os valores liberais ficaram sepultados na demonstração satírica eloquente de Joaquim Manoel de Macedo que, em 1868, reescreveu Dom Quixote ao estilo brasileiro em seu livro: 'Memórias do Sobrinho de Meu Tio'. O gênio do compadre Paciência em Macedo se reflete no general Macário de João Ubaldo Ribeiro: personagens que entendem o Brasil e nada podem fazer por ele, pois se agigantam as forças do atraso de forma tal que o progresso não tem lugar em qualquer perspectiva que não seja a de manter o veneno estatal jorrando intocado.

O livro de Ubaldo deveria encerrar no capítulo XVIII, quando os episódios do século XIX se encerraram. Mas Ubaldo resolve avançar para o século XX em apenas 1/9 de sua narrativa, criando 3 episódios que poderiam servir para um novo volume: quem sabe uma trilogia se dividisse ainda mais, posto que aí já estamos na página 612, e os dois capítulos subsequentes são riquíssimos no entendimento da projeção do século XIX no século XX com apenas 60 páginas. Talvez este último volume já não pudesse mais conter o mesmo título do primeiro, onde o “Viva” teria de ser substituído pelo “Abaixo”.


A Civilização do Espetáculo

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Quevedo

Mario Vargas Llosa – Ed. Objetiva, 2013, 208 p.


Todos temos falado na exclusão social como sinônimo de pobreza e carência de oportunidades para as pessoas ascenderem a um padrão de vida digno no mundo em que vivemos, mas raramente tomamos a questão pelo lado oposto, especialmente a exclusão da elite cultural que, a cada dia encontra espaços mais estreitos para cultivar sua cultura nos meios de informação disponíveis. Parece um paradoxo intransponível que pessoas, cuja vida intelectual seja sua preocupação imediata, sintam-se excluídas socialmente em mundo onde 60 canais de TV transmitem filmes ou programas de pouco interesse; onde as revistas divulguem apenas mexe­ricos; os rádios se prendam ao mesmo repertório musical horrível, e os jornais a falar do governo e­ da política como se fossem o suprassumo da honorabilidade.

Vargas Llosa, que vem escrevendo sobre este assunto há duas décadas, reuniu alguns artigos em 'A Civilização do Espetáculo' para nos brindar com uma ampla e variada abordagem de questões que vão da filosofia às artes plásticas, e da literatura à música. Ele denuncia a epidemia de frivolidades que tomou conta do mundo. A febre de banalidades não atinge um campo específico das artes plásticas, mas a totalidade do mundo contemporâneo, pois se espalha da filosofia às artes, e da literatura até ao modo de vida da civilização high-tec.

Em meu livro 'Um dia na vida o diabo duvida', transcrevo parte de um artigo dos anos 70 de Vargas Llosa sobre a crise da Universidade. O mal acadêmico, que ele vislumbra como uma ameaça à civilização, assume formas concretas na expressão da cultura por sucessivas gerações intoxicadas pela crise moral, política, intelectual e humanística do ensino não só no Peru, mas em todo o mundo.

Não pretendo comentar todos os assuntos que Vargas Llosa aborda em seu livro. Não obstante a importância dos fatos apontados por ele, o foco de minha análise são as mudanças contemporâneas que as novas tecnologias digitais estão operando sobre a cultura.
Como todas as pessoas que se criaram e se formaram no mundo analógico, aquele das bibliotecas, teatros, cinemas e museus, Vargas Llosa pergunta-se até que ponto a Internet não está na iminência de destruir toda uma cultura milenar, com uma proposta capaz de emburrecer ainda mais as pessoas em vez de ilustrá-las.

Citando os exemplos de diversos críticos que se detiveram neste assunto, seu desconforto com a trivialidade das mídias sociais e com o aparato online de informações termina no mesmo lamento de todos aqueles desiludidos com a avalanche de futilidades que entopem as mídias a tal ponto de sufocar a sensibilidade mais aguçada para as questões espirituais humanas.

Mas isto não quer dizer que a revolução tecnológica tenha relação com as mudanças no caráter humano e nas formas de melhorar sua capacidade de reflexão e tirocínio. Quando Gutemberg inventou os tipos móveis de impressão, colocando um fim na longa era dos livros manuscritos, a percepção da época era a de que a ignorância iria acabar e, com ela, a desconfiança e a má-fé que acompanham o homem desprovido de lustros intelectuais. Os acontecimentos posteriores provaram que não existe uma relação direta entre a invenção e as mudanças morais na humanidade. O mesmo se pode dizer da presente era de livros digitais (e-readers e tablets), que permitem o armazenamento de uma biblioteca muito maior do que a capacidade de um ser humano ler em toda a sua vida. E, além disso, coloca em crise um enorme setor da economia que, pela natureza de seus produtos, agia discricionariamente sobre a sociedade, impondo seus gostos e sua versão de boa literatura e estilo.

Refiro-me, naturalmente, ao setor livreiro. Quando analisamos os critérios pelos quais as editoras trabalham, ficamos perplexos com as limitações que o mercado impõe sobre os autores, e com as dificuldades de um autor estreante ter seu livro publicado e valorizado pela comunidade de apreciadores e críticos de literatura. Estas dificuldades “eram” (uso as aspas porque vou provar que a tecnologia do e-reader rompeu definitivamente com a barreira) tais que muitos desistiam no meio do caminho, e talentos se perdiam para sempre pelo fato de, por seus temperamentos ou ocupações, estarem fora dos círculos jornalísticos, acadêmicos ou institucionais da literatura.

Os Estados Unidos são o epifenômeno castrador da invenção formal. As grandes casas editoriais norte-americanas são o exemplo mais perfeito que conhecemos sobre a moldagem de um estilo de comercialização seguido pelos demais países. Não por acaso James Joyce ou Beckett foram autores que pouco influenciaram os escritores americanos. Na verdade, não se trata de Joyce ou Beckett serem seguidos por aprendizes, mas das oportunidades incertas que estes teriam com semelhantes arrojos formais. Como a literatura americana se condicionou comercialmente a ser apenas um reflexo do jornalismo, o padrão imposto pelas grandes casas editoriais não pôde ficar fora da sintaxe do bom jornalismo. Portanto, ser escritor nos EUA está diretamente relacionado com a atividade de imprensa. Um bom livro precisa da distribuição de cerca de 200 exemplares entre os grandes jornais e críticos para obter as indispensáveis recomendações que garantam sua difusão em massa. Na verdade, a maioria dos clássicos norte-americanos faz uma literatura que na forma não passa de um jornalismo dialogado. Em tal contexto literário, não seria possível o aparecimento de um barroco como o cubano Lezama Lima, de um crítico como o mexicano Octavio Paz, e nem mesmo de Borges, argentino reconhecido e admirado nos meios intelectuais acadêmicos.
Mesmo em casas editoriais que se dedicaram a publicar (com sucesso) autores da avant-garde europeia, como a Grove Weidenfeld de Nova Iorque, que publicou um escritor americano tão caribenho e fora do mainstream como John Kennedy Toole (A Confederacy of Dunces), o congelamento no estilo dos grandes romancistas do século XIX permaneceu para os grandes incensos literários, abrindo espaço para uma renovação apenas com a ruptura causada pela Internet.

Com o advento do portal virtual Amazon (e sites como Goodreads) é possível publicar pessoalmente um livro e disponibilizá-lo nos formatos e-book e em papel, pelo procedimento de impressão sob demanda. Esta revolução na arte da publicação não garante a difusão nem o sucesso de um autor rejeitado pelas casas editoriais, mas certamente sugere novos caminhos para o futuro do livro, como a organização de grupos online para a promoção, leitura e divulgação de livros de leitores identificados com um autor ou obra. Isto certamente está provocando a adesão (ainda não generalizada) de editoras e livrarias ao processo de promoção de autores. Podemos perceber que as grandes livrarias estão se tornando uma espécie de promotoras de eventos. Não é difícil imaginar que as livrarias serão as casas pelas quais os autores vão passar não para vender os seus livros com exclusividade (isso também não acontecia nem na época analógica), mas para aproximar fisicamente leitores de autores em um formato que deverá evoluir da simples dedicatória para formas diferentes de contatos pessoais. Isto significa que deverá haver transferência das despesas de impressão para empresas de marketing livreiro, encarregadas de promover e difundir um autor e sua obra em canais especialmente arranjados para esta finalidade.

Não existe possibilidade de o livro em papel desaparecer, apenas poderá ser menos utilizado, pois eu mesmo preferiria ter lido “A Civilização do Espetáculo” em e-book, para não sofrer com o tamanho das fontes da edição nacional, as quais, no e-book, podemos adaptar a um tamanho confortável à leitura. Para não falar do conforto de ler língua estrangeira em e-readers, onde se pode consultar o dicionário simplesmente apertando o dedo sobre a palavra que queremos traduzir. Como comparar essa eficiência com um livro em papel, onde a consulta ao dicionário requer a paciente busca alfabética da palavra? No e-reader, ainda temos a facilidade de fazer anotações (e até postá-las nas redes sociais) e de desfrutar tantos outros serviços, o que indica que os e-readers serão cada vez mais preferidos pelos leitores, e que vieram para provocar uma reorganização social ― sem demérito do livro impresso, que sempre existirá, mas em menor proporção.

Por tudo isso, as apreensões com o futuro do livro são muito maiores para o setor livreiro e para escritores bem-sucedidos no mercado do livro impresso, como é o caso de Vargas Llosa, do que para os novos autores deste mercado mais complexo e desafiador das novas mídias em constante mutação de sistemas e dispositivos de leitura.

No tempo de Cervantes, a novela de cavalaria atingira sua fama e se havia vulgarizado a tal ponto que Cervantes reagiu com uma resposta aos leitores dessas novelas com o Dom Quixote. A vulgaridade está sempre acontecendo ― aparece permeando os produtos culturais em qualquer período histórico. Tendemos a esquecê-la porque nossa juventude está perto de nós nas recordações das boas coisas que nos impressionaram: e isto é a vitória do erudito sobre o vulgar, do permanente sobre o descartável. É difícil julgar a revolução tecnológica do nosso tempo simplesmente porque ela ainda está em curso ― pode ser até que esteja apenas começando. Um paradigma da liberdade é não termos segurança sobre o que vem pela frente. E isso não significa que os produtos culturais do presente estarão descartados, pois as transformações sociais a que o mundo vivenciou não apagaram o passado, mesmo aquelas que se dedicaram a isto.

Vargas Llosa tem razão em apontar o espetáculo como instrumento de mídia para a proliferação do rebotalho artístico e intelectual: fetos de animais conservados em substâncias especiais e apresentados em caixas de acrílico como se fossem objetos de arte e arrematados em leilões milionários; lixo humano organizado em “instalações” nos festivais de artes plásticas de todo o mundo; grupos teatrais apresentando cenas excrementícias para chocar a plateia; literatura dedicada à pornografia exaltada; programas de TV cuja breguice e jequice são os padrões de exploração da curiosidade alheia. Por todo o lado, a sociedade mostra que não tem mais elites dirigentes, e que o bom gosto e a alta cultura são desfrutados por uma parcela minoritária desvinculada dos mecanismos de poder. Com semelhante avalanche de vulgaridades, não resta dúvida que o futuro é preocupante. Tudo indica que os países avançados cada vez mais viverão do passado ― como a Itália ―, como única forma de o espírito sensível buscar inspiração e satisfação em uma cultura, já que o presente parece condenado a hordas de consumidores frenéticos de frivolidades excitantes. Certamente não faltarão os Paulo Coelho e os Dan Brown para entreter os contemporâneos em qualquer época. Mas Vargas Llosa pode ficar tranquilo ― por absoluta incompetência de seus descendentes em reproduzir a singularidade de seu tempo, ele sempre terá leitores.


quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Ensaio Sobre a Liberdade

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y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo

John Stuart Mill - Ensaio Sobre a Liberdade -

Seleção de texto sobre liberdade e burocracia

A terceira e mais irrefutável de todas as objeções para restringir a interferência do governo, é o grande mal de acrescentar funções desnecessariamente a seu poder. Toda função acrescida a mais àquela já exercida pelo governo torna sua influência sobre esperanças e temores ser mais amplamente difundida e converte, cada vez mais, a parte ativa e ambiciosa do público em carrasco do governo ou em partidos que almejam tornar-se governo.

Se as estradas, as ferrovias, os bancos, as seguradoras, as grandes companhias de sociedade anônima, as universidades e as obras assistenciais públicas, fossem todas ramificações do governo; se, além disso, as corporações municipais e ministérios locais, com tudo aquilo que agora recai sobre elas, se tornassem departamentos da administração central; se os empregados de todas essas empresas diferentes fossem designados e pagos pelo governo e confiassem no governo para qualquer promoção na vida, nem toda a liberdade de imprensa e constituição popular da legislatura fariam deste ou de qualquer outro país, um país livre a não ser no nome.

E o mal seria maior, quanto mais eficiente e cientificamente a máquina administrativa tenha sido construída – quanto mais habilidosas as providências para obter as melhores mãos e cabeças com quais trabalhar.

Na Inglaterra tem sido ultimamente proposto que todos os membros do serviço civil do governo devam ser selecionados através de exame competitivo, para obter para tais empregos, as pessoas mais inteligentes e instruídas que se possa obter; e muito tem sido dito e escrito a favor e contra essa proposta.

Um dos argumentos em que seus oponentes mais insistem é que a ocupação de um funcionário permanente e oficial do Estado não detém suficientes aspectos de competição e importância para atrair os mais elevados talentos, que sempre poderão encontrar uma carreira mais convidativa nas profissões ou no serviço de companhias e outros órgãos públicos. Ninguém se surpreenderia se este argumento tivesse sido usado pelos amigos da proposição como uma resposta à sua principal dificuldade. Vindo dos oponentes, é bastante estranho.

O que é realçado como uma objeção é a válvula de escape do sistema proposto. Se realmente todo o talento do país pudesse ser levado para o serviço do governo, uma proposta que pretenda provocar tal resultado poderá inspirar inquietude. Se toda parte do trabalho da sociedade que exigiu união organizada, ou visões grandes e abrangentes, estivesse nas mãos do governo e, se os escritórios do governo estivessem cheios de homens mais capazes, toda cultura expandida e inteligência praticada no país, exceto a puramente especulativa, estaria concentrada em uma burocracia numerosa, a quem o resto da comunidade procuraria por todas as coisas: a multiplicidade de direção e preceito em tudo o que eles têm que fazer; a capacidade e ambição de progresso pessoal.

Para ser admitido nas classificações desta burocracia: e quando admitidos, para ascender nesse sentido, seriam os únicos objetos de ambição.

Sob este regime, não apenas o público exterior mal qualificado, por falta de experiência prática para criticar ou checar o modo de operação da burocracia, mas mesmo se os acidentes do trabalho despótico ou natural de instituições populares ocasionalmente eleve ao poder um governante ou governantes de tendências reformadoras, nenhuma reforma poderá ser efetuada que seja contrária ao interesse da burocracia.

Essa é a condição melancólica do império russo, como mostrado nas considerações daqueles que têm tido oportunidade suficiente de observação. O próprio Czar é impotente contra a burocracia; ele pode enviar qualquer um deles para a Sibéria, mas não pode governar sem eles, ou contra sua vontade.

Em todos os seus decretos, eles têm um veto tácito, simplesmente para restringir de levá-lo a efeito. Em países de civilização mais avançada e um espírito de maior insurreição, o público acostumado a esperar que tudo seja feito para eles pelo Estado ou pelo menos a não fazer nada por si sós sem solicitar ao Estado, não apenas para que ele o faça, mas mesmo como deve ser feito, naturalmente faz do Estado responsável por todo mal que recai sobre eles e quando o mal excede sua quantidade de paciência, eles se revoltam contra o governo e fazem o que se chama de revolução; em consequência do que alguém, com ou sem autoridade legítima da nação, salta na cadeira, dá suas ordens à burocracia, e tudo continua como antes; isso porque a burocracia é imutável e ninguém mais é capaz de tomar seu lugar. Um espetáculo muito diferente é exibido entre as pessoas acostumadas a realizar suas próprias tarefas.

Na França, uma grande parte das pessoas tendo se alistado no serviço militar, muitas receberam pelo menos a classificação de oficiais subalternos; há em toda insurreição popular várias pessoas competentes para tomar a liderança e improvisar algum plano de ação aceitável.

O que os franceses são nos assuntos militares, os americanos são em todo tipo de negócio civil; deixe-os sem um governo, todo americano será capaz de improvisar um e realizar aquele ou qualquer outro negócio público com suficiente quantidade de inteligência, ordem e decisão.

Isto é o que todo povo livre deveria ser; um povo capaz disso certamente será livre; e nunca se deixará escravizar por qualquer homem ou grupos de homens porque esses são capazes de tomar as rédeas da administração central.

Nenhuma burocracia pode esperar forçar os povos a isso ou passar por qualquer coisa que não gostem. Mas onde tudo é feito através da burocracia, nada ao qual a burocracia seja adversa pode ser feito absolutamente. A constituição desses países é uma organização da experiência e habilidade prática da nação, em um corpo disciplinado com o propósito de governar o resto; e por mais perfeita que essa organização seja em si, quanto mais bem sucedida em atrair para si mesma e educar para si mesma as pessoas de maior capacidade de todas as classes da comunidade, mais completa será a dependência de todos, inclusive os membros da própria burocracia. Pois os governantes são tanto escravos de sua organização e disciplina, quanto os governados são dos governantes.


Não se deve esquecer também que a absorção de toda a principal habilidade do país dentro do corpo do governo é fatal, mais cedo ou mais tarde, para a atividade mental e caráter progressivo do próprio corpo. Ligados como estão - trabalhando um sistema que, como todos os sistemas, necessariamente se instaura em grande parte por meio de regras fixas - o corpo oficial está sob a constante tentação de se afundar na rotina indolente, ou, se ocasionalmente abandonam aquela roda de moinho, de precipitar-se em crueza considerada pela metade que tivesse atingido a imaginação de algum membro líder da corporação: e a única verificação para essas tendências intimamente aliadas, embora aparentemente opostas do único estímulo que pode manter a habilidade do próprio corpo em um padrão elevado, é a responsabilidade com a crítica atenta de igual habilidade fora do corpo.

É indispensável, portanto, que os meios devam existir, independentemente do governo para formar tal habilidade e fornecê-la com as oportunidades e experiência necessária para um correto julgamento dos grandes assuntos práticos. Se possuíssemos permanentemente um corpo habilidoso e eficiente de funcionários – acima de tudo, um corpo capaz de produzir e desejoso de adotar melhorias; se não tivéssemos nossa burocracia degenerada em uma "pedantocracia", esse corpo não deveria se apoderar de todas as ocupações que formam e cultivam as faculdades requeridas para o governo da humanidade.

Determinar o ponto em que os males, tão temíveis para a liberdade e o progresso humanos, começam, ou antes em que eles começam a predominar sobre os benefícios que atendem a aplicação coletiva da força da sociedade, sob seus chefes reconhecidos, para a remoção dos obstáculos que se colocam no caminho de seu bem-estar; para assegurar o máximo das vantagens de poder e inteligência centralizados, sem que uma grande proporção da atividade geral seja transformada em canais governamentais – é uma das mais difíceis e complicadas questões na arte do governo.

É, em grande parte, uma questão de detalhe, na qual muitas e várias considerações devem ser mantidas à vista e nenhuma regra absoluta pode ser formulada.
Mas acredito que o princípio prático no qual reside a segurança, o ideal é manter à vista o padrão pelo qual se deve testar todas as providências planejadas para superar a dificuldade, pode ser afirmado nestas palavras: a maior disseminação de poder consistente com a eficiência; mas a maior centralização possível de informação e difusão desta a partir do centro.

Dessa forma, na administração municipal haveria, como nos Estados da Nova Inglaterra, uma minúscula divisão entre os funcionários públicos separados, escolhidos pelas localidades, de todo o trabalho que não seria melhor deixá-lo para as pessoas diretamente interessadas; mas, além disso, haveria, em cada departamento de assuntos locais, uma superintendência central, formando uma ramificação do governo geral.

O órgão dessa superintendência concentraria, como em um foco, a variedade de informação e experiência originadas da conduta daquela ramificação de negócios públicos em todas as localidades, a partir de todas as coisas análogas que são feitas em países estrangeiros e a partir dos princípios gerais da ciência política.

Esse órgão central deveria ter o direito de conhecer tudo o que é feito e sua tarefa especial seria aquela de fazer com que o conhecimento fosse adquirido em um Jugar disponível para outros.

terça-feira, 22 de outubro de 2019

SURVIVING THE FUTURE

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo

ARNOLD TOYMBEE – SURVIVING THE FUTURE – Oxford University Press – 1971

Conservo o título original porque a tradução do texto é minha

Pg. 7: A vida do ser humano é uma constante luta entre o lado racional e o irracional da natureza humana. Nós estamos sempre tentando conquistar um pouco mais da nossa natureza para a razão da emoção cega, e estamos frequentemente perdendo terreno, quando então o irracional ganha do racional. No meu ponto de vista, o conjunto da vida humana é uma luta para tornar a razão predominante.

Pg. 57: O motivo da curiosidade intelectual não é utilitário, mas é desinteressado. Por isso, penso que não é sem propósito. A curiosidade sem propósito é desorientada e insensata. O propósito que inspira a curiosidade pode não estar continuamente presente na mente do inquiridor, e algumas cabeças talvez nunca estejam conscientes deste propósito.

O propósito básico da curiosidade, sendo consciente no momento ou não, é a aquisição do conhecimento e entendimento para o propósito da ação: e ação que é o objetivo último da curiosidade humana é, creio, ação para ganhar um contato íntimo com a presença espiritual além do universo, em ordem de entrarmos em comunhão com ele e levar nossos seres efêmeros em grande harmonia com ele.

Pg. 61: O homem é parte integral da natureza, embora ele é um pouco mais. A natureza humana e a natureza não-humana tem uma relação idêntica com a presença espiritual além do universo. Para ambas, o significado e valor da existência deve ser encontrado em entrar em harmonia com a presença espiritual que é a última realidade... Seres não-humanos, certamente fazem isso inconsciente e instintivamente; seres humanos pretendem fazer isso consciente e deliberadamente.

O homem primitivo não teve dificuldade em sentir respeito pela natureza. Aliás, ele esteve em admiração da natureza, porque estava à mercê da natureza. O culto da natureza era assim a mais antiga forma de religião humana.

Pg. 65: Falando sobe o rápido declínio do Império Prussiano: ‘Aqui, a deificação do poder humano requer a devoção do estado deificado em sacrifício de suas vidas, e talvez sua honra também para o benefício desse ídolo.

Pg. 79-80: UTOPIA

Uma das formas das tentativas de beneficiar-se das lições da experiência algumas vezes se revela na imaginação de Sociedades Utópicas. Isto começou na Grécia Antiga, e deve ser notado que os gregos começaram a escrever relatos de sociedades ideais e imaginárias depois de sentirem que o pico de sua civilização tinha passado. Antigas utopias gregas formam cópias de projetos para parar e inverter o declínio da civilização, relevando-a ao nível de seu zênite passado. Um pouco por isso, as utopias gregas foram projetadas para prender a civilização no seu presente nível, na esperança de salvá-la de afundar ainda mais. As utopias gregas eram de um semblante atrasado, conservadoras e reacionárias. Isto é verdade especialmente no filósofo ateniense Platão. O mais famoso de seus diálogos, no qual esboça uma sociedade imaginária, é A República, mas em idade avançada escreveu um outro diálogo mais longo chamado As Leis. A sociedade imaginária descrita nas Leis é mais na terra que a sociedade no A República, e é também mais reacionária, social e politicamente. É de fato, uma sociedade fascista, ou pode-se dizer uma sociedade cristã medieval, na qual os heréticos são postos a morrer se eles recusarem confessar e renegar os seus erros.

... A palavra utopia não foi inventada pelos gregos; era desconhecida deles, embora seja uma palavra grega artificial. ‘U’ significa ‘não’, ‘topos’ significa ‘lugar’. Utopia significa ‘não-lugar’, ‘um lugar que não existe’, um local imaginário.

Pg. 97: Foi uma grande decepção para a unidade do mundo ocidental que o latim cessou de ser a linguagem internacional do Ocidente.

Pgs. 97-98: As línguas artificiais (Esperanto) são paralíticas por duas razões. Elas não tem uma literatura e não tem associações emocionais.....

O hebreu foi, por séculos, usado somente como língua litúrgica. A língua franca da diáspora judaica tornou-se o Yiddish (um dialeto germânico escrito em alfabeto hebreu).
... O incentivo (para a criação das línguas Irlandesa, Norueguesa e Hebraica) foi o sentimento nacional, e no caso judaico foi reforçado por sentimentos religiosos, desde que para os Judeus, nacionalidade e religião são inseparáveis.

Desde 1920 e poucos, os turcos passaram a usar a língua árabe escrita com caracteres latinos e no Vietnam, o vietnamita substituiu seus ideogramas chineses pela escrita com caracteres latinos.

Pg. 107: nós também esperávamos que o progresso da ciência e da tecnologia fizesse a humanidade mais rica, e que o aumento da riqueza gradualmente passasse de uma minoria para uma maioria.

Em 1971 o mundo é muito menos humano do que em 1913. Nós temos que encarar a possibilidade do mundo se tornar ainda mais inumano no final do presente século. Pelo ano de 1700 no mundo Ocidental, a guerra tornou-se uma disputa entre exércitos profissionais. Foi uma disputa de governos e não mais uma luta entre os povos.

Esta condição de aumento de anarquia social me parece ser incompatível com as demandas da tecnologia, porque a tecnologia requer uma crescente arregimentação da vida, um crescente grau de ordem e regularidade.

Pg. 116: as multidões que foram induzidas ou compelidas a drenar e irrigar os pântanos e florestas do antigo Iraque e Egito, que formam os berços das duas principais civilizações, devem ter sido previamente condicionadas. Eu acho que a religião (o que chamamos de ‘baixa’ religião do nacionalismo) é também o primeiro condicionante que permite ao ‘establishment’ transformar homens em soldados e treiná-los para matar seus semelhantes sem animosidade pessoal e sem compunção.

Pg. 136: Sobre a questão do programa de exploração espacial ser bom ou ruim, importante no momento ou postergável: ‘Decisões sobre prioridades são sempre decisões éticas: o que deve vir corretamente em primeiro ou por último do ponto de vista do que é bom e justo para a humanidade?’

Pg. 138: Não é o programa espacial moralmente ofensivo na sua presente alta prioridade como as construções das Pirâmides e a construção do Palácio de Versalhes? Eu sinto que o programa espacial é moralmente indefensável, não em si mesmo, mas porque ele tem recebido prioridade sobre alimentação, vestuário e habitação para a maioria pobre da raça humana. Sinto que essa gritante necessidade deve ter o primeiro apelo nos recursos humanos, energia, e habilidade. Também suspeito que o governo dos Estados Unidos e União Soviética não deveriam gastar nos programas espaciais os enormes recursos que realmente gastam se não tivessem que competir entre si para a ascendência política e militar do planeta. Considero a competição infantilismo em si mesma, é imoral numa época em que a maioria da humanidade é pobre, e criminosa numa época em que as grandes potências competidoras estão armadas de armas atômicas.

[Resumo elaborado entre 1982 e 1984. Comentário de 2011: Um historiador que não entendeu que as forças da competição mudaram a história só pode ser um turista inglês passeando pela história, como disse Ortega de Toymbee].


THE DEATH OF PROGRESS

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THE DEATH OF PROGRESS – Bernard James – Alfred A. Knopf – 1973:

Conservo o título original porque a tradução do texto é minha

Pg. 15: A ideia fundamental no pensamento de Charles Sanders Pierce é que o ‘real’ é separado daquilo que acreditamos dele. É aquilo ‘cujos caracteres são independentes do que se pode pensar ser’. É independente, entretanto, ‘não necessariamente do pensamento em geral, mas somente do que você ou eu ou um número finito de homens pensam dele’ (real). A objetividade tem sua cota de subjetividade, inevitavelmente uma coisa pública. Não podemos simplesmente considerar que a realidade é aquilo que cada um de nós produz ou que aquilo que é verdade para você pode não ser para mim. O ‘real’ está indubitavelmente ‘além’, separado daquilo que o indivíduo pode crer dele’...

‘Uma vez dada a noção de que o real e aquilo que nós pensamos são coisas distintas, uma teoria de sentido diz que o que dá utilidade a uma opinião é o grau daquilo que ela corresponde a realidade. O uso implica, ou fornece um contexto para a ideia, e esse contexto são as consequências que lhe seguem’... ‘Assim, o significado de uma ideia ou opinião, ou hábito – que é uma ideia em nossa rotina – depende da concordância dela com a realidade, e sua verificação pelo uso. O peso que podemos botar numa ideia, uma opinião, varia como resultado do número de testes na qual ela está exposta. Ou, como Hans Reichembach coloca, ‘peso é aquilo que o grau de probabilidade fornece se ela é aplicada num simples caso’. Entretanto, verdade absoluta, peso absoluto, seria o mesmo que uma predição sem erro. Não chegamos a esta condição, embora nos aproximamos assintomaticamente quanto mais expomos uma ideia ao uso e a verificamos. Mas desde que uma ideia pode ser derrotada por investigação posterior, o peso é sempre relacionado com a frequência de testes.

Pg. 18: O gênio dos ingleses foi sua percepção intuitiva de que nos assuntos humanos muito mais é decidido por acidente e inépcia que por intenção.

Pg 26: Conclui que organizações centralizadas tendem a fazer menos porém maiores erros que organizações descentralizadas.

Pg. 31 – Cita exemplos de como a Ideologia do Progresso cria algo e seu efeito nocivo na natureza e na saúde humana. Podendo ser efeitos colaterais de primeira, segunda, terceira, quarta ou quinta ordem de grandeza. ‘Se a distância entre cada boa intenção e seu efeito colateral aumenta, a predicabilidade diminui’... Mas a diferença entre um efeito colateral vantajoso e um desvantajoso é que podemos sobreviver por sorte’.

Pg. 43: Algo mais acontece para fazer o mundo da ciência e tecnologia num ‘novo’ fenômeno. A especialização fragmenta a experiência em ‘dados’ e a quantificação achata a experiência onde um ‘fato’ é tão importante como qualquer outro ‘fato’. O mundo torna-se uma caricatura nominalista, um borrifo de eventos, cada qual desconectado do outro, cada qual sem contexto, como contas caindo de seu rosário. A quantificação destrói a coesão ideológica da experiência, e o conhecimento torna-se uma coisa perversa e vazia; e logo se torna impossível determinar que cientista está fazendo algo significante e qual algo trivial. Ela nivela a distinção entre homens ordinários e excepcionais. É por isso que a ciência e a tecnologia tornaram-se singular expressão da cultura do homem-massa moderno, capaz de absorver milhares – de fato dezenas de milhares – de homens de talento limitado, bem como de crua sensibilidade ética, ao mesmo tempo que eles exibem a arrogância peculiar de especialistas, a arrogância do ‘ignorante ilustrado’, como Ortega y Gasset chamou-o’.

Pg. 47: Em 1229, quando estudantes na Universidade de Paris revoltaram-se em protesto contra o custo de vida, bem como da qualidade do vinho das tabernas, o Papa Gregório IX lançou uma bula concedendo aos estudantes a liberdade de regularem seus assuntos próprios, incluindo o direito de suspender as aulas.

Mas quando olhamos as universidades como sistemas naturais percebemos que elas estão com a maioria das boas posições ocupadas por multidões de especialistas, e que as relações desses especialistas com outros são meticulosamente reguladas por uma teia complexa de regras simbióticas de comensais e convidados-parasitas.

Pg. 65: Muitos escritores comentaram a tendência para a abstração nas artes. Em 1906, Wilhelm Worringer observou que a tendência para a abstração parece ser motiva pelas ansiedades da vida incerta, e que entre os povos primitivos formas abstratas e motivos decorativos são usados para ‘estabelecer um mundo estável além do mundo das aparências’, para reduzir o ‘tormento da percepção’. Num ambiente agreste e incerto, ele sugere, os homens produzem formas abstratas, e num ambiente mais benigno eles se voltam para formas naturais e uma empatia com a natureza, e produzem ‘auto-deleite objetivo’.

Pg. 73: O recuo da consciência segue o colapso da crença central da nossa era, a crença no progresso infinito. Mas não podemos recuar para valores e crenças tradicionais, para tempos que exalam dissensão e decadência. Devemos inventar novos deuses e levantar novos templos.

Pg. 85: Há numerosos testemunhos em antropologia para indicar que em muitas culturas tradicionais e primitivas existem crenças que restringem a taxa de mudança cultural e, procedendo assim, protegem o relacionamento da cultura com o meio ambiente. Os aborígenes australianos, por exemplo, que definiam um passado mítico, usavam como referência para determinar as mudanças que na cultura viva poderiam ser toleradas. O efeito era minimizar mudanças e maximizar a estabilidade. As crenças animistas tinham influências de controle similar. Quando os espíritos acreditaram-se habitar os rios, montanhas, plantas e animais, a resposta do meio-ambiente será diferente daquela do moderno construtor de casas.

Pg. 98: Sócrates argumenta se é melhor ser um porco feliz do que um homem infeliz.

Pg. 100: Se nós pensamos sobre a nossa auto-imagem como pensamos ser, e de nossa auto-imagem-refletida como nós pensamos que os outros pensam quem somos, nós podemos medir a necessidade de mudança de personalidade como a tensão entre as duas.

Pg 102-103: Jean Paul Sartre diz que a diferença entre o mentiroso e o auto-impostor é que o mentiroso é capaz de ficar distinto do objeto da mentira, e assim permanecer consciente de sua falsidade. Durante o auto-engano, uma conspiração entre o ‘Eu’ e o ‘Outro’, age e a distinção Eu-Outro entra em colapso. O Eu aprende a pretender que ele não pode reconhecer o que o Eu refletido espera dele....

O resultado da conspiração do auto-engano é um rebaixamento da consciência – até da parte desmembrada da personalidade – e sua redução a uma coisa que não pode fazer suas inexoráveis demandas sobre nossa probidade. Quando um indivíduo ‘se entrega’ a uma causa, por outro lado, ele reduz sua consciência da mesma forma.

O processo de auto-engano, como Sartre aponta na Psicanálise Existencial e Kierkegaard ilustra no ensaio Shadowgraphs (Either/Or) não é uma coisa estática. É um contínuo jogo de esconde-e-procura, um regresso sem fim de encarar e iludir o que se vê. Isto significa que o ‘inconsciente’, como ordinariamente entendemos o termo, para descrever o que não estamos cientes e por isso não responsáveis por, é em si mesmo auto-enganador. Pois, como Sartre insiste, um censor psicológico deve saber o que censurar se ele é capaz de censurar. O auto-engano é sempre algo mais perverso, algo mais deliberado, como uma mentira, uma conspiração contra o Eu, contra a consciência – um pecado contra o Espírito Santo, como os teologistas dizem, por sua própria natureza imperdoável.

Pg. 104: Sabendo de sua derrota por Charles XII da Suécia na batalha de Narva, Pedro o Grande mandou estrangular o mensageiro. Durante o final da II Guerra Mundial, Hitler acolhia as más notícias de forma similar, como fazia Stalin. Todas as organizações (lembrem-se da Union Carbide) enfrenta o mesmo problema de comunicar más notícias. Quando somente boas notícias são bem-vindas, os subordinados rapidamente se ajustam para serem sicofantas, e enquanto o líder orgulha-se de si mesmo, as disparidades entre o que ele pensa e o que os outros pensam podem crescer para proporções explosivas.

Em certo grau, todos nós temos problemas em face de fatos desagradáveis, e podemos desenvolver perigosas ilusões para evitar a dor de assim proceder.

Pg. 105: É possível todo um povo enganar-se a si mesmo, esconder-se atrás da opinião pública, procurando segurança em números. A intolerância que se mascara como ‘fina tradição antiga’ no sul dos EUA, tradição que não são finas nem velhas, é um exemplo.

Pg. 128-129-130-131: Wallace indica que os movimentos de revitalização movem-se através de fases distintas. Um período inicial no qual prevalece uma estabilidade relativa; uma segunda fase na qual o stress se desenvolve; uma terceira na qual o stress coletivo atinge níveis intoleráveis e uma quarta no qual aparecem os oradores de uma nova ordem, um novo equilíbrio social ou condição estacionária. Como uma ou outra ‘solução’ é selecionada e ganha aceitação, a vida social novamente passa para as regras de formas institucionais e a necessidade de outros messias declina.

O primeiro estágio é a condição de equilíbrio dinâmico entre a cultura e seu ambiente. A cultura encontra as necessidades do povo; o stress é limitado e a tensão tolerável. Deus está no céu, os pregadores em seus altares, os celeiros estão cheios e as mesas são servidas com abundância. As coisas cotidianas da vida estão bem a mão.

O acréscimo de stress dentro da cultura, o segundo estágio do processo, aparece imperceptivelmente. Pouco a pouco, a malha entre as partes institucionais da cultura piora e a cultura torna-se menos confiável em analogia com o ambiente externo. Seus valores preditivos e capacidade adaptativa começam a declinar. Há um crescente nível de conflito moral no sistema quando a diferença entre o que as pessoas fazem e o que professam aumenta. O elo entre o comportamento mais frequente e o comportamento mais desejável se distancia. Um dos sinais errados que aparecem, em outras palavras, é a hipocrisia social.

A terceira fase do processo é o que Wallace chama um período de ‘distorção cultural’. É uma versão exacerbada da segunda fase. A cultura cada vez mais falha em satisfazer as necessidades básicas. Um elevado nível de ansiedade pública desenvolve-se e expressa-se num amplo conjunto de respostas, semelhantes aquela do indivíduo psiquiatricamente perturbado. Interpretações romantizadas dos ‘velhos bons tempos’ podem aparecer junto com o mais rançoso cinismo – Adolf Hitler proclamando ‘quando ouço Wagner, me parece que ouço ritmos de um mundo passado’, mesmo quando projeta a mais covarde carnificina.... Poderão haver francos esforços de difundir pronunciamentos políticos banais como ‘Mein Kampf’ ou o livro vermelho de Mao, como força mística e grande significância. Resposta do tipo bodes expiatórios são também frequentes, dirigidas, conforme o caso, para judeus, capitalistas, revisionistas ou anarquistas. Subversivos são visto despontando por trás de qualquer macega. Uma variedade de respostas retraídas podem ocorrer, políticas exteriores isolacionistas, ou movimentos boêmios baseados em interpretações meio-cozidas do pensamento asiático. Em outras palavras, a era é marcada por selvagem oscilação na disposição pública e sentidos e por comportamentos de perseguição compulsivos.

Manias seguem manias, cultos deslocam movimentos, movimentos se revertem em coqueluches. O período é caracterizado por dúvidas, dúvidas representando, como apontou Pierce tão bem, não hábitos, mas ‘privação de hábitos’. A decadência das velhas formas desnuda os indivíduos de guias sociais e os expõe aos azares dos valores solitários.

Grandes acontecimentos podem trazer problemas nessa época. Mudanças climáticas básicas podem afetar a agricultura e os meios de subsistência. Métodos agrícolas podem exaurir o solo, forçando o conjunto do sistema ao desequilíbrio e declínio. Isso parece ter acontecido no declínio das grandes culturas Mayas da Península do Yucatán. Ou populações podem crescer e aumentar a pressão no fornecimento de alimentos. A fome pode colocar a mão de cada homem contra seu semelhante numa primitiva batalha para a sobrevivência diária. Ou epidemias podem varrer a terra, ou o desemprego em massa. Derrotas militares podem causar o colapso do regime político e liquidar com o timão das instituições públicas. Ou mudanças tecnológicas – por exemplo a industrialização – podem desmoronar as relações de classes; descobertas científicas podem botar no esgoto as amarras dos valores religiosos. O resultado pode ser uma série de ondas de choque, colisões, guerra civil.

Durante este período, frequentemente há um excedente de ‘soluções’ disponíveis, e é durante este tempo que toda espécie de líder auto-eleito, messias, charlatão e Grande Homem pode aparecer com sua solução para o problema.

Um notável aspecto dos períodos de intensa difusão cultural, durante o período de distorção cultural, como Wallace o chama, é que os longos caminhos institucionais do hábito tendem a enfraquecer ou rebentar, de tal forma que o sistema se acomoda nos modos de ação, passando de coletivos para mais individualistas. Pequenos e mais flexíveis grupos sociais tornam-se assim a sementeira para os messias e por isso é que os messias primeiro aparecem como líderes de gangues e grupos formados ao redor de experiências pessoais de simples indivíduos, muitos dos quais podem ter uma natureza alucinatória.

Pg. 132: Como Sartre apontou; gênio não é um ‘dom, mas uma maneira que se inventa em casos desesperados’.