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segunda-feira, 3 de abril de 2023

A Insondável Matéria do Esquecimento 2 — O Espadachim de Chinelo

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo

O Segundo Ato da Comédia Brasileira

O fracasso do Santo Tanso e seu partido produziu a vertiginosa ascensão do Espadachim de Chinelo que, ao fim, pelo próprio fracasso, e com o confinamento causado pela Pandemia, abre espaço para a reorganização orgânica da Corrupção, produzindo a erosão dos valores conquistados com a Lava Jato e o retorno do Santo Tanso ao poder.

De 2018 a 2022 o Brasil viveu sob a agonia da disjunção social que o volume 2 desta coleção aborda com o Espadachim de Chinelo.

O Volume 1, publicado em 2019, com o título 'O Santo Tanso e o Pomposo Psicopompo', contextualiza o cotidiano do Hotel La Sereníssima. Alex (Alex Bourgnignon), proprietário do Hotel, fizera uma carreira em hotelaria, nos Estados Unidos, e, com suas economias, investiu numa Winery em Miami, de onde teve de retornar, com a morte de seu pai, um pecuarista de Campo Grande.

Filho único de pai viúvo, Alex vendeu a fazenda que herdara de seu pai, e com o dinheiro arrematou em um leilão, um imóvel localizado próximo à Avenida Paulista, e o transformou no Hotel La Sereníssima.

Montou uma equipe em que se destacaram duas pessoas: Zuzu (Zuleika Maria Ficher) e Aldus (Adroaldo), ex-colega de faculdade. Zuzu era relações públicas e promotora de eventos. Tornou-se amante de Alex, que vivia no último andar do Hotel em um acesso oculto a que chamava de bunker. Zuzu ocupava um apartamento no quinto andar. Aldus fazia a ponte na organização de eventos.

Pela fama, o Hotel hospedava lideranças políticas, desde sindicalistas a deputados e senadores, incluindo um certo presidente da República, pessoas da sociedade, jornalistas e intelectuais. Esses personagens recriam o ambiente social e político do Brasil no período, e que o leitor certamente saberá identificar.

O Santo Tanso e o Pomposo Psicopompo (Volume I) é uma paródia das duas personalidades brasileiras mais importantes do período descrito pelo livro: Pancrácio e Belisário. O primeiro, considerado o maior líder populista do Brasil, alcunhado de Pancrácio, e o segundo, um filósofo autodidata e ex-astrólogo que leva o adjetivo de psicopompo por analogia com um personagem mitológico grego que conduzia seus seguidores para o submundo dos mortos – onde o autor prognosticou que a direita iria morrer –, na novela, chamado de Belisário. Esses personagens de La Sereníssima reaparecem apenas na segunda parte deste Volume 2, exceto na apresentação do capítulo 1. Todo o resto trata da nova governança do país depois de 2018, enquanto o volume 1, das lideranças que o precederam.

O título geral A Insondável Matéria do Esquecimento não é arbitrário. No volume 1, chamo a atenção para três casos típicos de nossa cultura da corrupção descritos nos ensaios dos livros de Muniz (Moniz) de Souza, no início do século XIX, e de Afrânio do Amaral, nos anos 1930, completando com uma descrição sobre a tragédia moral e material do empreendedor petrolífero Edson Cordeiro, também nos anos 1930. Foram exemplos de combatentes que nos legaram uma análise lúcida de um Brasil em que a corrupção está “materializada” em práticas e costumes de coesão social dos poderes estatais e governamentais desde nossa formação histórica – e que permanecem associadas ao caráter hegemônico do Poder Nacional, capazes de expelir as resistências racionais que eventualmente se levantam contra essa substância filogenética chamada corrupção, como demonstrou o desmanche da Operação Lava Jato.

Assim, o primeiro volume intercala análise social, crítica de costumes e sátira política. Uma forma cada vez mais comum de representar a literatura no mundo globalizado, em que a ficção e ensaio se combinam ao mundo subjetivo dos personagens, e se relacionam com as reverberações sociais de uma sociedade em crise, onde a corrupção material e moral, política e instrumental, é o fio condutor da atividade das elites. O mesmo ocorre no Espadachim de Chinelo. Neste livro, a primeira parte trata da gênese do capitão Gansolero, desde sua expulsão do exército até a tomada do poder e sua mazzaropiana gestão. Na segunda parte, entra em tela a pandemia e suas aflições sobre a vida de Alex, Zuzu e Aldus, com desdobramentos que levam ao salve-se quem puder do colapso econômico, social e moral do país que todos presenciamos perplexos e humilhados.

O Espadachim de Chinelo pode ser obtido em papel na editora online neste link.


terça-feira, 7 de dezembro de 2021

Aníbal Machado - Telegrama de Ataxerxes

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo

O TELEGRAMA DE ATAXERXES

a José Paulo Moreira da Fonseca

[Texto original digitalizado da edição em papel de A Morte da Porta Estandarte e outras histórias de Aníbal Machado. Meus comentários seguem entre colchetes com destaque. O objetivo da publicação neste blog é a didática da construção literária e a perspicácia do tema relativamente a realidade brasileira do poder].

ALTAS horas de uma noite nublada de dezembro. Ataxerxes lembrou-se de uma coisa e começou a caminhar agitado pelo quarto. Pisava forte, esbarrava nos objetos, rasgava estrepitosamente os jornais; mas sua mulher, exausta pela trabalheira do dia — consertos de estacas, irrigação de plantas — nunca mais voltava de seu sono de camponesa.

Tinha pressa Ataxerxes em dar-lhe a notícia naquele instante mesmo. Receando aborrecê-la com um apelo direto, esperava despertá-la com os barulhos que promovia. Escancarou a janela, deixou entrar o vento; abriu a torneira, fez jorrar a água. Já os cães latiam, as galinhas cacarejavam assustadas. Nos vales próximos, ouvia-se a resposta de outros bichos. A casinha de Ataxerxes animava-se toda. Como dorme Esmeralda! No quarto vizinho, Juanita acordava.

[Nestes dois parágrafos, o texto introduz o leitor para a realidade social de Ataxerxes e família: a vida rural].

— Que foi, pai? Alguma desgraça?
— Nada; tua mãe que dorme.
— Que queria você que ela fizesse?
— Que acordasse.
— Que ideia. Para quê?
— Uma notícia.
— Boa?
— Maravilhosa.

Juanita se ergueu num salto lesto.

— Diga, pai, diga depressa. A gente fica neste fim do mundo esperando toda vida uma notícia! E você disse que a sua é maravilhosa. Conte, pai, conte logo....
— Espera que tua mãe acorde. Esmeralda! Esmeralda! — gritou. A mulher se mexe ronronando. — Uma notícia sensacional para nós!
— Sorte grande? pergunta ela numa voz empapada de sono. Fecha primeiro essa janela, homem de Deus.
— Quase, Esmeralda... Um achado.
— Diamante? — tornou ela de novo, com mal definido toque de sarcasmo, virando-se contra a parede.
— Escuta, Esmeralda, escuta... Nossa vida vai mudar. Olha para mim... E prosseguiu, enfático: — Acabo de descobrir que o Chefe da Nação foi meu colega! Colega de colégio. Estamos feitos na vida. Era Zito o apelido dele. Meu Deus, como é que só agora pude me lembrar! Deixa eu te abraçar... Iremos para o Rio. Vamos viver agora!

Salvo Esmeralda, nenhum ser vivo dormiu mais aquela noite no pequeno sítio.

E enquanto Ataxerxes traçava planos para o futuro, Juanita, no corredor, dançava de alegria, pensando no mar e na grande cidade que ia ver pela primeira vez.

[Está lançado o argumento do conto. Também fica esboçado o perfil interiorano dos personagens, mas ainda não temos a dimensão temporal da história].

Sete dias depois, desciam os três as rampas da Mantiqueira e da Serra do Mar, rumo ao litoral.

Ataxerxes pensava no esboço do telegrama que ia endereçar ao presidente; Juanita, à janela, esperava as curvas em que a locomotiva se exibia de corpo inteiro, a puxar o seu comboio; Esmeralda, o nariz esmagado na vidraça, olhava para as colinas pontilhadas de reses e se lastimava, cheia de apreensões: "ah, justamente agora o milho estava granando, três vacas esperando bezerro!..."

O marido interrompeu-a: — Nem sei, Alda, como explicar: aquilo me bateu de repente na cabeça, e eu acordei com a imagem de Zito!...

A noite, já o expresso deslizava entre praças e ruas iluminadas. Cruzava outros trens, apitava. Esmeralda assustando-se com o estrépito louco nos viadutos e pontilhões.

Juanita observava tudo com avidez. Desde que entrara no carro até àquela hora, não deixara um instante de acompanhar as mutações da paisagem, o pitoresco das estações e lugarejos. Intimamente, foi-se fazendo amiga do trem que a conduzia. Um sonho tudo aquilo.

[Temos uma viagem de trem longa e sabemos, pela construção das paisagens, quão distante a capital estava da vida dos personagens].

Ruas apinhadas, bondes, a campainha dos cinemas de subúrbio, as moças de roupas coloridas; amanhã mesmo será uma delas a andar pelas ruas. Ataxerxes chega à janela, comovido. A grande metrópole vai aparecendo grandiosa e feia. Nela, o trono de Zito.

A cidade sorri pelas miríades de janelas de seu casario aceso. Faróis, anúncios luminosos. Dali o Chefe da Nação irradiava o seu poder, mandava e desmandava. Ataxerxes será um dos favoritos de sua corte.

O amigo retardatário do presidente prepara-se para desembarcar. Está pálido. Esmeralda persigna-se, guarda o rosário. O trem vai perdendo as energias e se deixando morrer na plataforma. Logo depois, pela janela do vagão, saem sacos, cestos e velhas malas da fazenda. Em seguida, pela porta de trás, os Ataxerxes.

[A intenção de Ataxerxes é revelada: ser um dos favoritos da corte do presidente. E o azáfama da cidade grande é criado na sua impessoalidade].


À janela da pensão Estrela do Norte, onde se instalaram, Juanita ficou até altas horas a contemplar a metrópole. Como começar? A que apelos atender, em que mistérios se iniciar? Mas onde estaria mesmo a cidade? Ali é apenas um trecho lívido e deserto de quarteirão, escondendo o crime, escondendo o amor.

Põe-se a imaginar no homem desconhecido que atravessará a sua vida. Ele chega, quer abraçá-la, ela foge. — "Mas por quê, meu bem? Olha para o jardim... Cada árvore tem debaixo um casal se abraçando. A nossa… — Não te conheço, vai-te embora. — O meu abraço te informará de mim… — Não; tu és um estranho... não posso. — Para que vieste então? Não sei como vim... Nem sei se vim a teu chamado. Vai-te embora. — Por que então estás chorando?..."

Mas logo se interrompe o colóquio, a imagem do namorado fantasma se dissipa. E longo calafrio passa pelo corpo de Juanita.

Vultos lá embaixo se distinguem à luz dos combustores; chega de longe um barulho difuso, e Juanita imagina que a hora de o mar espraiar a sua alma pelo céu da cidade... De baixo sobe um cheiro nauseante da cozinha. Cessou a discussão nos fundos de uma casa ao lado. A moça continua debruçada à janela e sente envolver-se numa nuvem de melancolia. Depois se agita. Faz menção de descer e mergulhar nas ruas mais próximas, curiosa de saber onde elas iam acabar.

— Vai-te deitar, Juanita. Isso são horas, menina? — grita-lhe a mãe.

Ela se assusta e obedece. "Amanhã! amanhã!" disse consigo, metendo-se debaixo dos lençóis.

No dia seguinte, ao grito das buzinas, pregão dos vendedores, e ao rascar das portas de aço se abrindo — a cidade fazia pressão nas janelas de Juanita, entrava-lhe pelas frestas com os raios do sol e um cheiro desconhecido. Veste-se num minuto e sai a descobri-la, enquanto a mãe procura a igreja mais próxima.

A moça vai sem direção, como que embriagada. Entre cubos de cimento o sol se despejava.

Juanita caminha... Quando suas pernas a conduzem para os pontos mais quietos, fica aflita por encontrar os de maior movimento. Que cidade é essa que tanto se assemelha à que vai surgindo do fundo de sua memória?

Estaria pisando alguma calçada de rua do Oriente onde o seus antepassados paternos negociaram, ou realmente no Rio de Janeiro com que sempre sonhara? Juanita caminha... E aparecem as praças. Pára extasiada a vê-las encher-se da multidão que deságua de todos os quadrantes. Para onde se dirige essa gente? E que vai fazer com tamanha pressa?

Era esbelta de linhas e rija de corpo. Se não fosse tão ligeira, não se sabe o que seria dela aquele dia ante a ameaça de tantos veículos.

Perambulou por todos os cantos, até exaurir-se. Entrou tarde. Esmeralda não sabia como começar a repreendê-la. Acenou para o marido, a pedir reforço.

[À medida que desenha o azáfama da cidade grande, penetra no olhar de Juanita e sua reação ante a vida social do ambiente, seu provincianismo púdico ante o comportamento cosmopolita, apontando uma origem étnica da família].

Ataxerxes fazia modificações no telegrama. — Larga esse papel, Xerxes. Vê se isso é hora de nossa filha chegar!

Mas o contentamento de reencontrar Juanita, que supunha perdida ou morta, encheu-lhe os olhos de lágrimas. Não podendo ralhar, abraçou-a.

— Cuidado com a cidade, minha filha. Quase morri de aflição. Nunca mais repitas isso. Estás suada, cansada.

E Juanita, o rosto febril, as olheiras acusadas, responde: — Mamãe, é uma maravilha! Já aprendi quase tudo (citava as avenidas e praças principais). Iremos juntas agora. Acho que mexeram muito comigo, mas eu fui passando. O que não encontrei ainda foi o Palácio onde está o amigo de papai.

A essas palavras, Ataxerxes estremece. Sabe que daquela pensão reles ao Palácio a que acaba de referir-se a filha, seria a distância encurtada por um telegrama. Era justamente do que estava tratando. O telegrama capital de sua vida. Já o vinha concebendo desde a noite da revelação, no sítio de Pedra Branca.

Ao sinal do jantar, a família desce para a sala de refeições. Esmeralda caminha de má vontade para aquela experiência difícil.

Os hóspedes eram gente indistinta, pessoas em geral de meia idade, algumas crianças — e um tipo estranho na mesa do fundo, a ler os crimes, em frente à sopa fria. A comida devia ter o mau gosto do cheiro que trescalava. E como todos pareciam enjoados dela, Esmeralda pensa que é por hostilidade aos recém-chegados. Juanita se escandaliza com a lepra da ferrugem que roía os espelhos. Ataxerxes põe os óculos e começa a percorrer o menu. O papel manuscrito que levara ficou-lhe ao lado do copo. Esmeralda sente-se mal vestida. Não sabe que prato escolher, parece que todo mundo os observa. Exaspera-se na indecisão. Acha que a luz devia apagar-se ou, pelo menos, ser reduzida. Todos irão vê-la comer.

— Xerxes, eu queria que você me arranjasse uns óculos escuros. Me sentirei mais à vontade atrás deles.

[Fica esboçado o ambiente da pensão pelos primeiros personagens e a natureza da refeição].

O garçom, ao lado, baixa os olhos ao papel. Não tinha intenção de lê-lo. Mas o vai percorrendo distraidamente, aos pedaços. Deve ser a minuta de algum telegrama. Os termos são afetuosos. Dá com o endereço, e como que acordando do estado de torpor, arregala os olhos. O Chefe da Nação! Aquele freguês estava se dirigindo ao Chefe da Nação!... E em termos da maior intimidade!

Alguns minutos depois, quase toda a sala olhava para a mesa dos Ataxerxes. À porta reponta o rosto, cheio de espanto, da dona da pensão; depois é o do marido que surge, ainda mais espantado.

João Ataxerxes fitava o retrato do Presidente colocado em destaque na parede, ao lado da gravura de uma odalisca a sair do banho. Comentava qualquer cousa a respeito, movimentando as mãos gravemente. Que estaria dizendo? Ficam intrigados os hóspedes. O garçom é quem devia estar ouvindo as palavras correspondentes àquela gesticulação. Era para produzir efeito em todos e ser ouvido pelo garçom que Ataxerxes discreteava sobre a infância do Presidente, em face mesmo de seu retrato.

Agora, é a dona da pensão que vem em pessoa servir a sobremesa. Não passou despercebida aos demais hóspedes a significação daquela gentileza.

[Subitamente Ataxerxes se torna importante e reverenciado pelo simples expediente de se dizer amigo do presidente. O autor coloca em ação a instrumentalização da realidade social brasileira através do paternalismo político e da pistolagem disfarçada em meritocracia que vai desenvolver no conto].

Dona Cacilda começa a sorrir para eles, como que pedindo entrada na conversa. Acaba tomando parte nela:

— Ah, então o senhor o conhecia?
— Pois se fomos companheiros de infância, minha senhora!
— Ahn! exclamou boquiaberta.

Dentro em pouco, outros hóspedes foram se avizinhando da mesa, e, ao café, estavam todos ouvindo Ataxerxes, enquanto a mulher e a filha saíam para o hall. Dois casais, além dos donos e a filha, um rapaz vistoso e alguns senhores de fisionomia abatida bebiam-lhe as palavras:

— Desde menino se revelara de uma inteligência peregrina. Falava pouco, usava um casaco de lã que nós invejávamos muito... Oh, há quantos anos isto! Parece que o estou vendo ainda, a correr atrás da bola, no futebol de nosso tempo!…

Às vezes, passava horas inteiras num mutismo misterioso, afastado dos colegas, como se pressentisse a responsabilidade do futuro. O Zito!... O Zito!... Vivia perdendo a escova de dentes. Uma vez, escorregou no banheiro e fraturou o braço. Sempre magro. Nesse ponto, o retrato não confere com o tipo da criança. Nossas camas eram quase pegadas. Hoje está calvo, mas possuía bela cabeleira.

Esses detalhes, sobretudo o da escova de dentes e o do banheiro, davam aos ouvintes a sensação de que também eles estavam entrando na intimidade do Presidente. — Não acha melhor irmos aqui para a sala? propôs uma senhora, entusiasmada com a conversa.

— Seus olhos, prosseguia Ataxerxes sem atender, eram de um castanho-claro, sei que agora estão completamente azuis, naturalmente com a idade e o exercício do poder tudo isto vai mudando…

E todos contemplavam o retrato a que o homem se reportava a cada momento, como um professor de geografia que recorre ao mapa.

— Aquele ombro de lá, o esquerdo, do lado da odalisca, sempre foi um pouco caído, mas, como veem, é um físico de chefe!

Com desagrado de todos, um chamado de Juanita interrompeu a palestra.

— E que coração! disse Ataxerxes em voz alta, ao retirar-se. E já na soleira da porta: — Com o tempo lhes contarei outros episódios, prometeu despedindo-se. Acompanhando a mulher e a filha, saiu a passear pelas ruas iluminadas. Havia muitos anos que não vinha ao Rio. Esmeralda e Juanita, era a primeira vez.

[A súbita promoção pessoal de Ataxerxes eleva sua autoestima a medida que fala dos tempos de amizade colegial com o presidente. A sociedade ao seu redor lhe confere a importância com que pode tirar de um homem que, desfrutando da intimidade do poder, pode premiar aos que consigam cair na admiração do amigo para obtenção de um privilégio. Esta é a dinâmica do conto].

Ataxerxes foi-lhes explicando as transformações da Capital. Estava muito diferente. — É o cimento armado, Esmeralda: o cimento armado é um demônio!

Sentiu uma ânsia de incorporar-se imediatamente à cidade, ser alguém naquele turbilhão. Falou no telegrama, esperava conclui-lo dentro de poucos dias. — Que é de Juanita?... Menina! — gritou-lhe o pai — você vai logo correndo e se desgarrando da gente. E para a mulher, baixinho: — Não sei o que dá nela; fica aflita a querer dançar na frente dos outros. — Sempre foi assim, Xerxes, respondeu Esmeralda. Você não se lembra, no sítio, aquela mania de imitar o movimento das bananeiras?

Antes que voltasse à Esmeralda a evocação de Pedra Branca, o marido chamou-lhe a atenção para as vitrinas e para a multidão que acorria às diversões: — Imagine você que é sempre assim, Esmeralda. Todas as noites essa animação. E nós perdendo isso!

— Não sei como não se cansam e não enlouquecem, observou a mulher friamente. — Meu Deus, lá vai Juanita fugindo outra vez! Gritou: — Juanita! Juanita!…


Sonhavam os donos da pensão com um empréstimo na Caixa Econômica. Não era apenas o interesse material de transformarem a Estrela do Norte num luxuoso hotel com elevadores e jardim de inverno; era sobretudo por questão de capricho: Pietro Zamboni, cunhado de D. Cacilda, tivera também uma pensão reles como a Estrela do Norte; de repente prosperara. Entre os irmãos Zamboni havia velha rivalidade que D. Cacilda, mulher temperamental, transformava em ódio de família. Miguel acusava Pietro de gatuno e aventureiro; afirmava ser seu hotel um antro de contrabandistas e mulheres suspeitas. Por sua vez, Pietro e a mulher telefonavam aos hóspedes de Estrela do Norte, recomendando-lhes que se acautelassem com a comida: muita gente saíra, ali, da mesa de refeições para a do necrotério. Presentemente, Pietro quase não dava sinal de si. Instalado no último apartamento do arranha-céu que possui em Copacabana, com terraço de onde contempla de binóculo o oceano, já não se preocupava em perseguir Miguel, mas este, incitado pela mulher, sonha vingar-se à altura e vê a sua vingança concretizar-se em vários andares de cimento armado subindo, subindo, até que ele possa, do último, cuspir no terraço de Pietro. Para isso, seria necessário fazer um empréstimo. Ataxerxes caíra-lhe do céu: com o prestígio de íntimo do Presidente, seria fácil o negócio.

[O autor descreve a rivalidade entre dois irmãos, donos de pensão, sendo que um deles obtivera o sucesso empresarial por conta de um empréstimo no mesmo ramo de hospedagem do Miguel Zamboni, dono da pensão Estrela do Norte. A rivalidade entre os dois é importante para assinalar a atmosfera de desdém e desprezo que permeia as relações sociais entre os mais e os menos favorecidos].

— Vou arranjar-lhe um aposento melhor do lado do sol —, veio dizer a dona da pensão a Ataxerxes. — Não pagará mais por isto. Ataxerxes, apoiado o cotovelo na mesa da sala de espera, a mão na testa, não queria ser interrompido no momento. Seu telegrama já devia ter seguido e ainda estava em elaboração, o papel todo riscado. Era penosa a procura de alguns adjetivos; os advérbios chegavam com dificuldade, as frases não se articulavam direito. O telegrama precisava ser redigido de forma a produzir efeito fulminante na alma do Presidente...

Pela primeira vez Ataxerxes experimenta a sensação física das palavras. Pena não ser como esses escritores famosos que lidam com elas e sabem manipular todos os sentimentos. Agora, por exemplo, precisava suscitar no Presidente uma impressão de volta à infância; em seguida, de poder pessoal — o que seria fácil; depois, de piedade pelos fracassados da vida; aí então, já na fase final, o coração do Presidente estaria preparado a receber a semente do pedido. Mas as palavras resistiam; às vezes vinham dóceis, como que minando do papel, e Ataxerxes se alegrava. Seu esforço agora era mais de artista do que de candidato a emprego. Lembrou-se, porém, de que D. Cacilda ainda se achava ali perto, imóvel, à espera da resposta e do agradecimento: — Pois não, disse com atraso, pode fazer a mudança.

Não conseguiu mais escrever. A gentileza da dona interceptara-lhe a inspiração. Atrapalhou-se. Enquanto isto, o vento do corredor ia levando as folhas manuscritas para a porta da rua. Ataxerxes corre, inclina-se para apanhá-las; mas o vento veio de novo, as folhas escapuliram. Uma delas pousou no asfalto úmido, a outra ficou adejando entre as mesas de um café em frente. Ataxerxes entra no café, recolhe o telegrama ainda no ar, depois de atropelar os fregueses e virar duas mesas; quando ia apanhar a outra folha, apareceu um caminhão veloz, a roda passou por cima e foi levando-a colada ao pneumático para os lados da Rua Larga.

Ataxerxes disparou aos gritos: — É o meu telegrama! Pára! pára!...

Mas era tarde. Quedou-se desesperançado... Parecia-lhe que naquela roda que fugia com o telegrama, fugia também o seu ideal.

Volta desconsolado para o hotelzinho. Narra o sucedido à mulher que procura consolá-lo: — Para que se amofinar? Você fará de novo a outra parte.

— Isso é o menos, Esmeralda. E se a cidade vem a conhecer certos detalhes privados, o apelido, as antigas manias do Chefe da Nação?! Passava a mão na cabeleira, aflito: — Quando penso que todas essas cousas íntimas estão rolando agora pelas ruas, parece que traí o meu amigo. Fui colega dele na infância; sou alguma cousa, portanto; devo honrar esta amizade. Você já pensou bem, Esmeralda, o que é ter sido colega do mais alto magistrado de um país?!
— Mas o papel desaparece, Xerxes, vai parar no lixo...
— É um engano! Vai parar nas mãos de alguém, é o que você devia dizer. De algum aventureiro... Parece até que o estou vendo; apanha o rascunho, completa-o, faz um pedido, assina depois o nome... Ah, o impostor... Vai ter uma alta colocação!

Olha para a chuva, através da vidraça: — Talvez a que me estava destinada...

Esmeralda encarou-o condoída. E como se advertisse a uma criança: — Xerxes, estamos velhos demais para recomeçar a vida. Vamos voltar, vamos!

Tudo poderia passar pela cabeça do marido; aquele pensamento, não, Voltar!... Tinha graça...

— Oh, Esmeralda, o telegrama nem seguiu e você já cuida em voltar, gritou-lhe o marido, depois de uma pausa de espanto. Nesse momento, entrava Juanita, de fisionomia murcha.

[Um incidente com o telegrama inicia uma atmosfera de paranoia e desconfiança com os propósitos de sua missão. Agora o autor reverte a situação de otimismo de Ataxerxes para a de um homem aflito].

— Ah, papai, hoje eu vi o mar de perto!
— Por que então esse ar triste?
— Tive uma decepção. Não é o que eu esperava...
— Como querias que o mar fosse, minha filha?
— Diferente da água sem vida que partia de meus pés. Oh... aquela extensão calada! Nunca supus...

Pai e mãe interrogam a filha com o olhar, sem compreendê-la.

— Queria que ele se mexesse, mamãe; que fosse mais soberbo!

Dona Cacilda apareceu com a empregada. Vinha fazer a mudança para um apartamento mais condigno. Era a primeira homenagem prestada a um amigo do Presidente.


A vida começava a sorrir para os Ataxerxes. Hóspedes e donos cercavam-nos de atenções. Esmeralda parecia indiferente. Metida sempre na igreja, rezava para que o marido fosse bem sucedido, para que a filha não se desencaminhasse. — "Juanita parece querer fugir de minhas mãos, pensava; o pai não quer trabalhar, só confia no acaso, já esqueceu Pedra Branca. Esta cidade é cheia de tentações. Que nela não se perca a minha Juanita."

Foi descendo os degraus lentamente. Contemplava o panorama do alto da escadaria. A cidade cinzenta pontilhava-se de luzes. Do Arsenal de Marinha espalhavam-se centenas de marinheiros, como de um colégio ao fim das aulas. As ilhas semelhavam capões de mato no chapadão da baía.

Com o tempo, cresceu a roda de Ataxerxes. De toda parte apareciam-lhe amigos, Caras novas. Figuras vorazes, rápidas, de olhos ardentes. Alguns o levavam aos cassinos onde travava conhecimento com homens prósperos e ativos, pessoas amáveis propondo negócios que não entendia bem, devido ao barulho do jazz e ao esplendor das girls. Pagavam-lhe a ceia, conduziam-no de carro até a porta da pensão. Eram cavalheiros obsequiosos, corretamente vestidos, todos muito apressados. Alguns tinham ciúmes dos outros.

Meses assim viveu Ataxerxes à sombra do telegrama, esperando resposta. Tê-lo-ia passado?... A dúvida inesperada fez refluir-lhe o sangue ao rosto, Sensação aflitiva de quem esquece o próprio nome ou o ano em que vive.

[Fica consignado o transcorrer do tempo, ao mesmo tempo em que começa um processo de confusão mental em Ataxerxes: ele não sabe mais distinguir com clareza se mandou o telegrama ou não. Isto é importante para não permitir uma decisão precipitada de sua parte e indicativo da perseverança no propósito que o trouxe à capital].

Cada vez que chegava pela madrugada, lamentava o tempo perdido na província. Olhava-se ao espelho, sentia-se grisalho e ruguento. Dava depois com o vulto da mulher dormindo, achava-a ridícula nessas horas. Fora de Pedra Branca, Esmeralda como que murchava. "É esquisito: lá eu gostava dela, aqui é um estorvo." E pondo-se a fumar na cadeira, donde a apreciava, descobria no corpo imóvel da companheira as linhas rígidas de um cadáver. Sacudia a cabeça para espantar o mau presságio; mas, quando adormecia, a mesma imagem voltava, cercado agora de uma ronda de girls seminuas que acendiam círios. Despertava agitado, a consciência doída.

— Alda! Alda! — acordava-a, com o sol já inundando o quarto. — Estive pensando que "magnânimo" fica melhor que "bondoso", não é? "Magnânimo" tem mais dignidade, qualquer coisa de romano; vai bem para um chefe. Bondoso sugere fraqueza. Vou botar "magnânimo".

— Não entendo, Xerxes...
— Estou dizendo que em vez de chamar o Presidente de "bondoso", resolvi botar...
— O quê! exclamou Esmeralda, o telegrama ainda não seguiu?!

Ataxerxes tem receio de dizer-lhe que não. Permanece indeciso, envergonhado. Não sabe como, foi deixando correr o tempo sem que mandasse o tal telegrama. Ou passou?!... Está na dúvida... Lembra-se de que havia entrado mais de uma vez nos Telégrafos. Ah, mas fora para um telegrama de felicitações pelo aniversário do Zito. E estava meio bêbedo. Pouco antes havia tomado a defesa dele e brigado.

Põe-se a puxar pela memória. Tudo nublado. "Gente, será que ainda não fiz seguir o tal telegrama? Já o havia relido a vários conhecidos, disso se recorda bem. Orgulhava-se de poder mostrá-lo aos outros. Parecia que só essa demonstração de prestigio lhe bastava. Tê-lo-ia esquecido nalgum café?

Ergueu-se febril, vasculhou os bolsos do casaco. Ah, lá estava ele! O seu telegrama, o seu destino! Mentiu cinicamente à mulher: — Este é o segundo, Esmeralda; mais completo...

Saiu à rua. Estava quase convencido agora de que não passara nenhum telegrama. Fora até melhor; terá ocasião de fazer ainda algumas modificações. Mas será mesmo necessário? pensou. Já se sentia criatura da casa do Presidente.

Nos bares, na pensão, na polícia, quando ali fora regularizar os papéis, em toda parte — era tratado e reconhecido como pessoa "chegada ao Catete". Cicios agradáveis o lisonjeavam. Para que telegrama? Se já foi, bem; se não, talvez nem seja preciso. O Chefe da Nação já devia ter conhecimento de sua estada na capital. Qualquer dia o chamaria.

Vai caminhando embriagado pela vida borbulhante das ruas. Subitamente para diante de uma vitrina. Gravatas! Quantas gravatas, meu Deus! E não só gravatas. Muitos objetos de toilette, caprichados, bons de pegar. E malas. Viajar! Decide ampliar sua ambição. Ao invés de inspetor de qualquer cousa ou chefe de repartição — ministro no Estrangeiro! Era das malas que vinha este apelo.

[A fantasia do poder é importante para a construção do conto, sem a qual Ataxerxes jamais adquiriria a exata dimensão que o autor quer estabelecer. Para isso criou o episódio da vitrine de gravatas].

Sua alma viaja... O vapor atracando, apitos, lenços acenando, cabecinhas louras no cais, música, uniformes... — Monsieur Ataxerxes! Mister Ataxerxes... o novo representante do Brasil, etc., etc.

Enquanto seu espírito desembarca no país estrangeiro, os olhos se voltam para as gravatas e mergulham nelas como num mar de sargaços. Algumas pendem como serpentes do galho de metal; outras parecem armar o bote aos transeuntes; outras se estiram no chão de veludo, como raparigas em repouso, numa alcova; outras circulam como peixes. Todas coloridas, maliciosas, oferecendo-se... Trêmulo de emoção, Ataxerxes compra uma. Segura-a como a um objeto mágico. Em suas mãos a gravata perde o fascínio; quer devolvê-la à zona hipnótica da vitrina. Mas já está paga. Sai.

O dia é belo, esplende ao sol a baía, os aviões rumorejam, passam mulheres perfumadas. Delicioso mundo, para que esta guerra? Como é bom ser amigo do rei...

[Agora a dimensão temporal se completa: o Brasil está envolvido em uma guerra e já se sabe portanto quem é o presidente invocado pelo conto].

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domingo, 21 de junho de 2020

Muniz de Souza

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo

Oblitus Heros (Herói esquecido)

“Não sendo o único fito das minhas trabalhosas viagens colher unicamente os produtos dos três reinos da Natureza, mas sim indagar também as causas que obstam a felicidade do Brasil, e descobrir meios profícuos para os seus progressos, creio que como Brasileiro me cumpre o dever de manifestar à Assembleia tudo quanto vi a este respeito, para que ela tome as medidas que julgar convenientes. É triste para os amigos da civilização e prosperidade do Brasil, o reconhecer que a Capital do Império, a qual muitos julgam isenta, ao menos da maior parte dos males que vexam as outras Províncias, está infelizmente tão oprimida como elas”.

Nossos historiadores costumam se debruçar sobre os visitantes que desde o século XVIII passaram pelo Brasil e narraram as curiosidades que interessavam à Europa, deixando testemunhos importantes sobre nossa gente e nossos costumes.

Nesta lista estão La Condamine, Schlishdorf, Saint-Hilaire, Marcoy, Spinx, Richard Burton, Antonil, Darwin, Agassis, Ave-Lalemand. Todos apontaram o exotismo brasileiro, mas nenhum foi mais importante do que Antonio Muniz de Souza. Que ele seja esquecido na nossa historiografia comprova apenas como nos tratamos mal uns aos outros, como desprezamos nossos homens empíricos e também o quanto somos capazes de abafar os testemunhos incômodos do nosso passado.

Antônio Muniz de Souza nasceu no interior rural, na vizinhança da Vila do Lagarto, pertencente então à Província da Bahia, e hoje ao Estado de Sergipe. Seus pais, também naturais do mesmo lugar, viviam da criação de gado “sem outro horizonte que o do lugar do nascimento, sem outra esfera intelectual que a superstição religiosa e política daquela época”. Suas viagens descrevem o período de andanças pelo Brasil de 1812 a 1840. As aventuras vitoriosas do jovem Muniz começam ainda antes no sertão onde se engaja como voluntário para defender o Reino de Portugal, então invadido pelos franceses em 1807. No entanto, a embarcação em que ia junto com os demais voluntários naufragou na costa de Itamaracá, ao norte de Recife, tendo se ferido em um calcanhar e ficado incapacitado para o serviço militar.

Partiu para o Rio de Janeiro para se tratar e acabou interno no Convento de Santo Antonio como leigo aprendiz que, vestindo o hábito, se dedica a todas as obrigações da Ordem Religiosa. De sua experiência no Convento consta uma viagem a São Paulo com duração de 9 meses onde adquiriu um reumatismo que quase lhe deixou aleijado. Regressou ao Rio de Janeiro e começou o tratamento de saúde que iria definir o seu destino. Não necessitando estar de cama, nos três meses em que foi medicado trabalhou como enfermeiro e preparador de unguentos na botica do Convento, passando a estudar botânica com os livros franqueados por Frei Marianno, seu amigo e instrutor.

A decepção com a vida conventual veio com a proibição de parte de seus confrades que o importunavam por ler semelhantes livros, o repreendiam e confiscavam, fornecendo em seu lugar volumes de temas místicos. Muniz compreendeu então que o fascínio que a fitoterapia lhe produzia não podia ser exercido no Convento e se despediu da vida religiosa. Partiu para a Bahia em 1812 numa viagem de seis dias e, não tendo recursos para sobreviver, adentrou-se nas matas do recôncavo para observar os "produtos da natureza" e "colher alguma Ipicacoanha para vender", subsistir com o lucro, e assim passou a fornecedor dos médicos e boticários de Salvador.

Seu destino de explorador medicinal estava traçado. Dedicou o resto de sua vida à pesquisa, e a medida que avançava em peregrinações pelo interior, tinha de tratar as próprias moléstias que ia adquirindo.

Isso implicava em longos períodos de ociosidade nas capitais, onde discutia assuntos de farmacologia com as autoridades locais que sempre o recebiam muito bem. Com poucas exceções, em que reclama de embromação por parte de médicos, Muniz sempre foi muito estimado pelos resultados que trazia das viagens.



Revoluções e consequências

"Saí em Novembro de 1820 para o Norte, com intenção de percorrer todas as Províncias até o Pará, de donde pretendia voltar pelo centro até o Rio de Janeiro; porém mal pude chegar em Julho de 1822 à Província das Alagoas, e entrar nos Sertões de Pernambuco: querendo investigar os seus Sertões depois de despachado para isso, jamais o pude fazer por causa da revolução do Brasil na Época da Independência e pela insubordinação em que se achavam os povos, pelos quais eu era a cada passo atacado, violentado e roubado".

"Os ataques e insultos, que a cada instante eu sofria dos povos da Província das Alagoas, eram praticados por aquela qualidade de gente que sempre está pronta a concorrer para a desonra de sua Pátria; ao mesmo passo que daquelas pessoas, que fazem a honra e felicidade dela, recebi sempre alguns socorros e hospitalidades". Não poderia haver um testemunho mais candente do que este para um povo que, visto dos dias atuais, não parece estar formado.


"Além de que me faltou a primeira educação, que é a base fundamental da sabedoria, tem-me faltado o auxílio do Estado; e sem altos socorros de uma e outra coisa, não pode haver viajante completo; mas eu, além de sofrer estas consideráveis faltas, tenho sido estorvado por repetidas secas, revoluções, roubos e diversas enfermidades e naufrágios de rios, bem como no de S. Francisco e Jequitinhonha.

A empresa de vir por terra da Bahia ao Rio de Janeiro pela beira mar, teria espantado qualquer figurão de posse de todos os meios que a riqueza e a autoridade fornecem para superar o montão de dificuldades que ela apresenta, e até pareceria insensata da parte de quem lutava contra a penúria, e cuja subsistência diária dependia do acaso, porém não há nada impossível para uma vontade firme, uma paciência incansável, e uma vocação persistente.


E escreve sobre si mesmo:

"Verdade é que ele recebeu bom acolhimento daquela porção dos seus patrícios, que sabem avaliar o merecimento, e prezam os atos de devoção ao país natalício. A patriótica, e estudiosa mocidade da Corte, esperança do Brasil, ficou encantada da singeleza, e bom senso do viajante Sergipano, e pôs-lhe o apelido de Filósofo da Natureza Brasileira: a mesma Câmara tomou em consideração as suas descobertas e requerimentos a bem de vários povos que visitara; promoveu-se uma subscrição para impressão das suas interessantes e verídicas peregrinações. Porém o desleixo e a delonga, indigentes neste país, e que presidem a todas as ações dos particulares e do Governo, obstaram a que este negócio avançasse; de mais a mais as revoluções vieram desviar a atenção de tudo quanto não tinha imediata relação com a política e o jogo das facções; em uma palavra, seis anos já decorreram e ainda a primeira folha desta obra está por imprimir, e o Autor lutando com paciência heroica contra a má fortuna, o indiferentismo, e os obstáculos de toda espécie, não se queixa senão da ociosidade forçada que lhe não permite prosseguir nas suas viagens e indagações dos produtos, e naturais tesouros das Províncias, que ainda não visitou".

O ócio

Na Descrição dos Usos e Costumes do Brasil, Muniz ataca em primeiro lugar o mal do ócio. "A ociosidade no Brasil é o tronco de todos os vícios". Mas não se trata dos homens ricos da corte ou de uma consequência da escravidão. Ao contrário, os ociosos são o caçador e pescador, que não se limitam ao sustento, porém têm prazer na destruição da natureza. Fala dos pescadores que jogam timbós nos rios provocando uma mortandade de peixes que envenenam as águas e produzem enfermidades nos ribeirinhos. Fala da queima gratuita dos campos e relvados pelos viajantes. Outro tipo é o cavaleiro armado itinerante que viaja sempre em busca de uma oportunidade para vender o seu serviço de assassino de aluguel. Os pândegos e boêmios, que vivem do jogo de cartas e das noites de farra são detestáveis pelo seu desregramento, e constituem um tipo ocioso com muito poucos registros.

Antecedendo em um século o Jeca Tatu, Muniz de Souza já identificara o tipo característico de pobre ocioso dos sertões: o jogador de cartas que vive em uma palhoça, com uma esteira fazendo as vezes de mesa, uma rede, um facão, um machado, uma colher de pau, alguns instrumentos de osso e que vive de uma rocinha de mandioca e do roubo de cultivos dos fazendeiros à sua volta.

Outro tipo ocioso é o pastor de gado que vende seus serviços aos patrões, mas que nada possui e vive a cavalo pelos sertões, roubando animais ou forçando-os para perambeiras tais que provocam suas mortes acidentais para se apoderar da carne.

Para quem fazia das viagens um modo de vida, o flagelo do Brasil do início do século XIX eram os salteadores de estrada. Bandos de falsos fidalgos, negros fugidios e quilombolas, todos especializados em assaltar e despojar as vítimas de todos os seus pertences. As memórias das viagens pelos sertões em busca de conhecimentos fitoterápicos terminam sendo um relicário de considerações sobre a mentalidade brasileira de seu tempo. E não eram apenas fatos negativos sobre o Brasil Colônia, mas também das pessoas extraordinárias com quem manteve contatos em toda a sua vida de todos os níveis sociais, desde os vendeiros que ofereciam abrigo nas estradas, até as elites médicas e políticas dos estados em que transitava.

Índios e escravos

Sua maior hostilidade vai para o índio, ao qual atribui todos os vícios da perversão do caráter, da traição e da recusa sistemática de adotar os valores cristãos. Embora abra uma exceção para a palavra dos filósofos a respeito do estado de natureza do índio, sua razão não o impede de sentir um fosso intransponível entre o mundo colonial e o indígena. O comportamento do índio lhe é repugnante: admite que os escravos trazidos da África conseguem poupar dinheiro para algum dia comprar a liberdade, enquanto o índio não se importa com nada nesta vida, vivendo como um pândego.


A escravidão apresentava uma realidade que transcendia a compreensão humana sobre seus verdadeiros propósitos. Não se podia entender que uma força de trabalho pudesse ser economicamente relevante para a Colônia e ao mesmo tempo ser tratada com tamanho desprezo pela preservação do próprio escravo.

O estudo da história de Portugal e da Espanha revela em todos os tempos uma perda abissal de capital humano. A península que chegou a dispor dos melhores artesãos, financistas, comerciantes, homens do mar, legisladores, nunca conseguiu inserir suas elites em um vetor que baseado no mérito buscasse o desenvolvimento constante de suas instituições. Ou sofria a intervenção desastrada da Corte, ou o papel socialmente desestruturante da Igreja com seu fundamentalismo persecutório, ou a visão estereotipada do papel do homem econômico na sociedade, produzindo acumulação intensa e, simultaneamente, desperdícios suntuosos – uma bipolaridade de caráter também presente nas grandes fazendas do Brasil. Muniz de Souza mostra um quadro estatístico aterrador de suas viagens pelo interior no tocante à escravidão:

Retrato da fome

"Suponhamos que entre as Províncias da Bahia , Sergipe, Alagoas e Pernambuco, hajam quatrocentos Proprietários. Dentre eles há dez, que dão a cada um de seus escravos três partes da porção do sustento, que se deve dar para a subsistência de um homem no espaço de um dia; há quinze que dão a metade; cem dão um quarto, outros tantos dão a oitava parte, e outros cem dão o dia de sábado de cada semana sem mais nada. Ora os que dão a metade são felizes, porque o escravo com suas agências, passa bem, tem mais forças, duplica o trabalho, e por consequência não morrem tantos; os que dão três partes, são felicíssimos, os demais são desgraçados, e os últimos desgraçadíssimos. Assim gemem os pobres homens africanos, cujos senhores a cada passo lhes infligem rigorosos castigos, eles com poucas forças para o pesadíssimo serviço de dia e de noite, ao sol e à chuva, faltando-lhes todo o necessário para a vida, sobrando-lhes unicamente o rigoroso castigo; que desumanidade se observa nestes tiranos senhores!"

Para Muniz de Souza, a felicidade humana está na temperança do caráter, na justeza do tratamento aos iguais e subordinados, na recompensa colhida pela reciprocidade do bem. Ele não conseguia conviver moralmente indiferente em uma realidade em que o escravo era tratado como um animal, imposto aos maiores sofrimentos e sujeito a retaliações por parte dos patrões. Por isso fugiam, roubavam e, em alguns casos, chegavam a matar o próprio patrão. Este jogo de servidão excessiva, em que o açoite era o corretivo para os doentes que morriam ressequidos pela fome, pela exaustão do trabalho, pelo regime sem folga e de punição para os doentes. A tolerância era tão curta que antes de o escravo se curar já estava no regime exaustivo que o faria adoecer outra vez e letalmente, indicando uma relação estranha entre a produção e o caráter, como se o descontentamento das elites fosse uma constante sufocada da própria conjuntura autocrática absolutista, cujos recalques transferia para os mais fracos. Para um teórico da felicidade humana, a descrição que faz é das infelicidades. As crônicas dos sofrimentos observados ao longo de vinte anos de andanças pelo interior do Brasil deixam o leitor pasmo com tamanha disjunção social, e se perguntando se esta característica não tem sido uma constante a cujo despotismo o Brasil vem se adaptando sem perder sua índole para o mal.


Violência e desagregação social

Outras figuras igualmente detestáveis eram os bandos de cavaleiros, que Muniz chama de ciganos, armados de bacamartes, fuzis, pistolas, facas e todos os instrumentos necessários para assaltar os pacíficos agricultores, roubar-lhes as filhas, depenar os viajantes e cometer todo o tipo de atrocidades. Se, por um lado, trata-se de uma característica do século XIX em todas as Américas, resultado da dificuldade de impor a lei no vasto território dos sertões, por outro lado, representa um ultraje ao país porque, "por mais que roubem e matem covardemente, jamais são perseguidos pelas Justiças", diz Muniz usando o plural. E acrescenta que a impunidade gera um efeito replicativo do mal: "os seus malvados costumes e procedimentos têm passado a outras pessoas de diferentes qualidades, de que já se conta um grande número."

Assim, se a impunidade é a escolinha do mal, e se uma sociedade persevera em garantir impunidade a uma parte de seus membros, ela ao mesmo tempo se torna a geradora dos piores elementos.

Não menos maléficos foram os recrutamentos forçados. Feitos para atender às revoluções constantes de chefes políticos locais, em pleno exercício de seu coronelismo a serviço do poder pessoal, Muniz via aí uma das causas da dissolução da sociedade: "Que desordem se observa com o recrutamento pelas Vilas de fora! Tudo se paralisa, a agricultura sofre, o comércio padece, os homens desamparam as moradas, as povoações, e vão viver no mais recôndito das matas, uns para não serem recrutados e outros para não serem obrigados a seguir contra os seus mesmos amigos e parentes. E que desgraças não acontecem de tiros, facadas e mortes? Um pranto continuado é o que se ouve, de Pais por filhos, de irmãos por irmãos, de mulher por marido, e finalmente tudo é confusão, tudo consternação. Quantos infelizes não têm ficados doidos, por verem seus inocentes filhos a ferros marcharem para a Praça?"

E o que dizer do funcionário público dos tempos coloniais? "Dois extremos há nos empregados da justiça: o primeiro é quando acontece qualquer homem probo e arranjado cometer um pequeno delito, tendo muitas vezes bastante razão para o fazer, imediatamente lhe caem em cima os justiceiros que o deixam desgraçado; e o segundo é que quando os malvados e revoltosos fazem ou cometem algum delito por mais grave que ele seja, ficam impunes, e o malvado jamais é perseguido; e só é se com o crime que fez ofendeu a alguma pessoa de bons sentimentos, que o persegue por meio da mesma justiça, gastando por isso avultadas somas".

"Em minha pátria, tem havido muitas mortes, perpetradas pela maior parte por homens malvados, que pouco depois fazem outra, e nem devassa se tira. A falta de caráter nos empregados públicos, parece até ser quase uma regra geral, pois em todas as províncias, vilas, etc vejo serem reputados por tais."

A crônica de abuso de poder se confunde com o próprio poder. O poder abusivo está em toda a parte. Os capitães-mór – autoridades locais responsáveis pelo recrutamento, pela coleta dos dízimos e dos impostos reais – eram ao mesmo tempo os principais negociantes de suas localidades, submetendo seus súditos a mais vexaminosa exploração. Eram homens que enriqueciam pela arbitrariedade com que empobreciam os povos locais. Os pecuaristas eram obrigados a lhes vender seus gados, pelo preço que eles estipulavam, bem como comprar as mercadorias que detinham como monopólio. Com semelhante organização econômica, não se poderia esperar prosperidade em um país que era uma terra de Canaã em promessas, e um inferno em realizações.


"Muitos empregados públicos orgulhosos, logo que saem das Praças para as Vilas de fora, tornam-se os maiores impostores de todo o Universo: se eles são ajudantes se autodenominam Coronel; se são Majores ostentam a autoridade General; e se são Coronéis julgam-se logo absolutos Imperadores em poder; de donde se pode concluir, que tais Empregados destituídos dos requisitos necessários para bem ocuparem seus empregos, tornam-se imediatamente os maiores déspotas, pechincheiros; atrasam os povoados, e para melhor poderem desfrutar exigem dos homens alistados um serviço ativo, como se fossem de primeira Linha, sem atender ao grande prejuízo que sofre aquela pobríssima gente. Estes empregados só querem saber de sua comodidade..."

A calamidade do judiciário

Na ordem social, o judiciário não deixa de ser o poder desagregador que no mundo colonial se encarregou de arruinar produtores e se apossar de bens em nome de inventários.
"Prescindindo dos Magistrados, que merecem atenção por caráter firme, e bons procedimentos (que poucos se encontraram destes), todos os mais, segundo o geral queixume que escuto em todos os povoados por onde tenho viajado, é que em vez de fazerem a felicidade do país que governam e de seus habitantes, são os mesmos que suscitam questões, promovem intrigas e arruínam famílias, com o sinistro fim de fazerem interesse por um meio tão ilícito e ignominioso, ao mesmo tempo que deixam impunes imensos agressores e assassinos, com notável prejuízo do Público..."

Com esta análise, Muniz passa a citar alguns casos de confiscos praticados pelos juízes de fora e ouvidores, sempre com o argumento de que no lugar de promoverem a felicidade, se engajam na destruição do patrimônio coletivo em benefício próprio.

Se no Brasil do período havia a profissão de tropeiro, se viajar pelo interior era hábito de negociantes, garimpeiros, bandeirantes e exploradores dos nossos sertões, nenhum deles deixou mais impressões sobre a sociedade brasileira do que Muniz de Souza. Suas observações sobre a mulher do povo deveriam inspirar movimentos feministas, se não fosse um herói esquecido:

As mulheres

"Julgo do meu dever referir que as mulheres no Brasil não fazem parte da sociedade; e a exceção de um pequeno número das que há em algumas cidades maiores, como Bahia, Pernambuco, Rio de Janeiro, etc., em todas as outras menos ilustradas, são tratadas como escravas. Elas não vão à mesa de seus pães, e menos à de seus maridos, e só se servem dos restos daqueles; não aprendem a ler, e principalmente entre o povo do centro para quem é crime uma mulher saber ler e escrever; e o motivo é, dizem eles, porque uma mulher sabendo ler está habilitada para receber cartas de namoro e a ter correspondência de amores, bem se vê que este modo de pensar é de homens faltos de toda a educação necessária."

"Quanto melhor não fora receber uma mulher cartas desta natureza, do que um recado por pessoa da mais vil condição?!! Entre os povos do centro é proibido às mulheres aquele cortejo, com que naturalmente nos saudamos, inspirando-lhes desta forma seus pais e maridos, a malícia. Coitados! Elas nestes lugares são umas criaturas criminosas que apenas ouvem dizer aí vem um homem, precipitadamente correm, indo encerrar-se no mais recôndito de suas casas, e quanto mais de bem é o homem, que por ali aparece, tanto mais elas se escondem. Tais procedimentos deixam bem conhecer a maldade dos homens que as dominam os quais não são mais nem menos do que um selvagem bem semelhantes aos gentios do sul da Bahia, só com a diferença destes andarem nus; mas assim mesmo não escondem as mulheres. Para o centro das províncias são as mulheres a gente que merece o pregão da fama pelo excessivo fervor, com que se entregam ao trabalho; enquanto os homens madraços e frouxos, embalando-se nas redes por elas manufaturadas, levam dias inteiros entregues nos braços de Morfeu. São elas que sustentam e mantém os maridos, principalmente nas províncias da Bahia, Sergipe e Alagoas, e segundo notícias tenho, o mesmo acontece para as províncias do Norte."

"Isto se entende com aquelas pessoas que compõem a populaça, e nunca com homens de educação e sentimentos. Os homens, de que trato, nada possuem: apenas chegam a idade de quinze a vinte anos, casam-se pobrissimamente e o interesse que tem no casamento é adquirir por esse meio uma escrava para seu serviço; eles vivem na ociosidade, e elas cuidadosamente se empregam nas manufaturas dos algodões, fiam e tecem panos, cobertas, redes, toalhas, fustões: e manufaturam também suas tinturas; outras fazem rendas, cozem, bordão, e algumas até chegam a fazer grandes roças, e plantá-las; e sobretudo são muito verdadeiras. Os homens são como umas espécies de zangões, que só vivem para fecundar: dizer que o homem deve fiar e tecer, é na opinião deles um ataque que se lhes faz; e assentam que empregando-se neste útil e interessante trabalho perdem o ser de homens e por isso vivem ociosos, entregam-se aos vícios, ao orgulho, ao roubo e à alcovitice, e tornam-se o flagelo dos homens de bem, dos cidadãos úteis. Que prejuízo! Quanto melhor seria empregarem-se estes homens nas manufaturas dos algodões, antes que viverem no ócio, reproduzindo-se em maldades!"

"Não poderiam eles sustentar ao menos a metade do peso da família, ajudando suas mulheres, principalmente no oficio de tecer, por ser pesado para estas, que de ordinário ou estão pejadas ou criando, e quantas não tenho eu visto morrerem esfalfadas por tecerem ao mesmo tempo que estão criando, além dos mais serviços, de que são sobrecarregadas, como carregar água e lenha, o trabalho da cozinha, e os mais serviços caseiros, não lhe faltando a rixa diária que lhes buscam os maridos, chegando até as vias de fato?! Esta qualidade de homens são verdadeiros verdugos de suas mulheres, as quais desgraçadamente nada representam na ordem social."

Os dois partidos

Na opinião de Muniz, o Brasil se achava dividido em dois partidos. O dos bons e o dos maus: "um sempre é composto dos melhores habitantes; e o outro é de gente inferior; este conserva o sistema de ocupar os Empregos Públicos para facilmente fazer o seu interesse, usurpando para isso a Fazenda Pública, aos órfãos, aos ausentes, e aos honrados lavradores, tudo quanto podem, e se impondo para com estes últimos como grandes sábios, o mais é que este partido imoral às vezes leva vantagem ao partido dos homens de bem, porque estes com o desempenho de suas obrigações se esquecem de vigiar sobre as intenções dos malvados, os quais ganham nestas distrações, e às vezes chegam a oprimir em grande parte o partido superior, por terem os empregados públicos a seu favor o representarem aleivosamente contra o bom partido, ou dos homens bons."

"Estes partidos chegam às vezes a tamanho auge de intriga que são a causa da ruína total de muitas casas e famílias; e quando o partido ínfimo sai perdido, ele mesmo é o culpado, porque as arguições falsas, que faz contra o bom partido, fazem reviver as suas mesmas culpas e crimes."

Impressiona Muniz ter percebido que a conspiração ardilosa contra os homens bons consistia em lhes atribuir os mesmos crimes ou vícios que carregavam, um mau exemplo que se propagou por todos os despotismos que se seguiram ao longo de duzentos anos no mundo Ocidental. E vai exemplificando com seu próprio testemunho os muitos casos que presenciou:

"A vista disto assento que para rebater o partido dos malvados, deve haver o dos homens bons até mesmo porque estes livram a muitos pobres da opressão, que lhes tecem os malvados, os quais com sinistros meios sabem procurar os cargos públicos, com que encapam de seus crimes. No ano de 1818 viajei pela vila do Lagarto, minha pátria; e nesse tempo o partido dos maus tinha dominado o partido dos homens bons, tanto pela pouca prática destes, como porque os empregos Públicos eram exercidos pelo partido contrário, assim como também eram arrematantes de todos os direitos Nacionais. Senti não me achar na ocasião em circunstâncias de poder desmanchar semelhante conluio, cuja dissolução era difícil por encerrar-se nela toda a governicha. Porém o que mais custa a crer é eles roubarem e atropelarem os povos, e ainda em cima se imporem de homens de bem: e os povos rústicos sempre prontos a beijar a mão que os oprime".

Este depoimento comprova que o problema da corrupção é muito mais grave em nível local do que estadual ou federal. Dentro de um município ou povoado, o exercício do poder com o objetivo exclusivamente patrimonialista impede a acumulação de bens necessária ao progresso social, uma vez que os órgãos públicos se dedicam exclusivamente à rapinagem dos menos favorecidos.

Se no século XIX a pilhagem ainda era o resquício agonizante da ordem feudal, podemos entender a causa de o capitalismo industrial não ter se desenvolvido no nordeste, onde a acumulação ficava reservada exclusivamente à vinculação com o poder político, originando tanto o coronelismo, como o burocratismo legal. Este último uma caixa de coleta do funcionalismo dedicado a fiscalização, cobrança de impostos, taxas e dízimos, todos eles atropelando a poupança privada.

Educação

Sobre a educação, Muniz tem um depoimento contundente que deve ser ressaltado: "É incalculável o prejuízo que sem recurso sofrem todos os povos dos países por onde tenho viajado, tanto do centro, como de beira mar, a exceção das grandes vilas, ou cidades. É desgraçada coisa ver as aulas das povoações e vilas pequenas preenchidas pela maior parte por homens foragidos e até facinorosos, que apenas conhecem os caracteres do nosso alfabeto, homens néscios, fanáticos, carcomidos de mil prejuízos, e finalmente homens mais capazes de viciar e corromper que de esclarecer, e dilucidar as ideias da mocidade! Faz lástima ver o seu comportamento para com os discípulos: só o seu aspecto os horroriza; e sobre tudo o péssimo estilo que eles adotam de educar a mocidade à força de pancadas e rigorosos castigos, faz com que esta aterrada não só conceba grande ódio às letras, mas também se precipite, fuja e até prefira antes morrer do que aprender com semelhantes Pedagogos, cruéis e estúpidos". "É isto o que se deve esperar de homens sem princípios e sem educação; e infelizmente acontece o mesmo na maior parte das aulas Públicas, porque também nunca são exercidas por pessoas dignas de ocupar um tão melindroso emprego; e qual será o homem educado que se sujeite por cento e vinte, ou cento e cinquenta mil réis de ordenado, que não chega para a sua subsistência, e muito menos para a da família que deve ter todo o homem, a tão honroso encargo? É este justamente por este motivo que se encontram em todas as grandes povoações do Brasil, por onde tenho viajado, mais aulas particulares do que públicas; isto foi o que observei na vila de S. Salvador com Francisco Marcos Molêdo, mestre de primeiras letras, em cuja casa morei; o qual só de aluguel de casa pagava anualmente cento e vinte mil réis; e como substituiria a cadeira no caso de ser público este professor, despendendo só em aluguel de casa todo o ordenado? De certo que morreria à fome."

"Enquanto aos castigos físicos nas aulas, assento que só deve haver no caso de insubordinação porém sempre com prudência e doçura, afim de evitar-se que fiquem (como tenho tido a magoa de ver), os meninos aleijados pelos rigorosos castigos dos mestres". Indagando os mestres desta pedagogia sádica, Muniz ouviu a seguinte resposta: "eles dizem que as letras devem entrar com o sangue."

E por fim arremata:

"No Rio de Janeiro vi um menino sem uma mão, pedindo esmolas na Portaria do Convento de Santo Antônio, e soube que aquele aleijão procedera de um semelhante abuso." Muniz combate o luxo e maneiras opulentas como uma peste que se abateu sobre a Colônia. "Eu vi moças incapazes de pronunciar uma só palavra acertada, e muitas outras pessoas ainda mais baixas, envolvidas em seda, dos pés até a cabeça, e por conseguinte até a pessoa mais ignóbil do centro parece que nasce entre as sedas, e o mesmo acontece com os homens." Ele achava que o simples fato de o governo imperial lucrar com a Alfândega provocava a sangria dos recursos do país para o supérfluo, em vez do investimento direto na produção de bens e melhorias na infraestrutura.

Realidade ecológica

Na questão ecológica, atribui aos caçadores a responsabilidade pela destruição das matas e não ao agricultor. O maldito costume de atear fogo à mata para "limpeza", herdado do índio, produzia perda total de recursos, entre os quais ele vivenciou a perda da população de abelhas, que em vez de serem extraídas apenas o mel para a preservação da espécie, tinham as colmeias totalmente destruídas.

"Esse grande número de homens que só trabalham na destruição do Brasil, maquinam dia e noite a maneira de aumentar o dano que fazem. Vão no tempo do estio lançar fogo às frondosas matas para se divertirem com o incêndio, e outros para na limpa que o fogo faz plantar alguns pés de abóboras e cabaças, trocando destarte o que vale milhões pelo que nada vale. É doloroso ver reduzir à cinzas léguas de matas aformoseadas de preciosos troncos, tornando os fecundos terrenos ornados daquelas, a vis charnecas, e a péssimas mondas."

As superstições de uma população devassada pela crença sobrenatural na sorte, no destino, na fortuna ou fatalismo, somente produzem ociosidade. Ouvir as lamentações do povo lhe causava perplexidade. As pessoas utilizavam argumentos grotescos para explicar os eventos cotidianos, como o de achar que um a doença teria se originado da quebra da relíquia, isto é, da promessa de não fazer sexo em um período religioso, a causa da enfermidade. "Aqueles que possuídos destas ideias dizem "o que for meu às mãos me há de vir, e mais vale quem Deus ajuda, do que quem cedo madruga"."

"Animados por tão escandalosa crença, entregam-se ao ócio à espera que do céu lhes venha o sustento; e dizem que a 'quem Deus prometeu um tostão, de seis vinténs não passa, por mais diligência que faça': e o mais é que quem se atreve a querer destruir tão perniciosa crença é por eles taxado de libertino."

O comerciante não podia ficar sem sua reprimenda. Discorre sobre a honestidade e cita casos até de comerciantes que atulham a entrada de suas portas para o estabelecimento ficar com pouca luz e assim vender tecidos de qualidade inferior com preço de primeira linha. O mau caráter do comércio, baseado no lucro da esperteza, era para Muniz de Souza uma consequência do modelo de sociedade.

Muniz propõe a criação de Caixas para a proteção dos agricultores dos juros extorsivos – uma praga que acompanhou o Império Português desde sempre –, ao estilo dos bancos de financiamento público, com juros de 5% ao ano para alavancar investimentos na produção agrícola, garantindo com isso os meios de capitais que viriam a ser adotados muitas décadas depois.

No entanto, o que ele observa é: "quando eles vêm à praça tratar com o negociante daquilo que se lhes faz preciso, como levam fiado são forçados a dar duzentos pelo que vale cem, além do prêmio de dois e dois e meio por cento mensalmente... motivo de viverem sempre mergulhados na miséria, e sem terem jamais prosperidade".

Sua conclusão não é alvissareira: "a corrompida Corte Portuguesa só substituiu o falso ao verdadeiro; deixou- nos o luxo, em vez de pontes, canais e estradas, prejuízos estes que há de custar bem a arrancar e destruir".

Ele não perdoa nem mesmo o Imperador: "O luxo desregrado e a imoralidade são os únicos funestos presentes que esta mimosa porção da Terra, tão bem aquinhoada pela benfazeja mão da Natureza, tem merecido de um monarca, que pouco escrupuloso no cumprimento de seus deveres, e destituído de todas as qualidades que podem fazer suportável a pessoa de um rei, marca cada dia do seu reinado com um novo flagelo dos Povos que haviam lhe dado um cetro, e uma coroa."

Pode estar aí um dos motivos do esquecimento de Muniz de Souza. Ele não perdoa um monarca que retira os jovens da lavoura para recrutá-los ao serviço militar durante três anos e, ao final, em vez de devolvê-los às suas famílias, os mantêm arregimentados por oito anos, descumprindo a palavra.

Afastado dos centros urbanos por suas longas peregrinações no interior, Muniz de Souza decide ir à capital representar perante o imperador os dilemas dos pequenos agricultores do Brasil e propor as soluções para a "felicidade" geral do nosso povo. Qual não foi sua surpresa ao encontrar no Rio de Janeiro uma situação tão avessa a qualquer iniciativa que se sentiu abatido e impotente para a sua empresa. Como podem os coronéis tratar de outra forma os lavradores se o próprio monarca é o inspirador de semelhante tratamento?

Mesmo assim, resolve escrever uma representação aos senadores pedindo misericórdia para o homem do campo, impossibilitado de investir nas propriedades que foram griladas por não permitirem seu cultivo senão por tempo determinado, forçando-os a perder todos os investimentos feitos em pastagem para a criação de animais de tração, benfeitorias próprias para a residência, armazenagem e assim por diante. Trata-se de um manifesto patético esgrimindo os males de um Brasil paralisado pela avareza de homens que com meia légua de terra conseguem registrar até 20 vezes mais território, para repassar a outros grileiros que os repassam adiante, expulsando os lavradores e produzindo o terrível espetáculo de um país de proporções continentais com enormes fazendas sem cultivo e uma massa de agricultores sem terra.

Constitui uma das primeiras análises sobre a questão agrícola no Brasil escrita em 1832 sob a forma de um manifesto, que deveria ser objeto de estudo em todos os cursos de ciências humanas, se não estivessem nossas academias de costas para o Brasil.

Muniz escreve como se estivesse em missão oficial. Seu livro parece um relatório de inspeção, mas é um relicário literário. A descrição sobre a vida dos escravos é um depoimento patético:

O escravo

"Os escravos em Campos (de Goytacazes) são chamados para o serviço às duas horas da manhã, outros às três, e bem poucos as quatro, amanhecem no trabalho e ali mesmo se lhes leva o diminuto e mal pronto almoço, e alguns nem isso tem, porque lhes dão o dia de sábado para a subsistência de toda a semana; ao meio dia nada de comida, e só as duas horas se lhes leva o vergonhoso jantar, e sem mais descanso continuam no serviço; anoitece e continuam no serviço, no malvado serão; em que trabalham os de senhores mais prudentes até as dez horas , outros até meia noite , durante este mal entendido serão, mais trabalha o chicote encastoado em um pau puxado com duas mãos, do que os mesmos escravos por que é impossível que eles possam resistir a tanto; findo então retiram-se aqueles infelizes todos dilacerados, e examines para as tristes senzalas, onde sem se lavarem, nem procurarem mais ceia, porque o cansaço e sonolência que trazem é superior a tudo, se atiram no chão para com o descanso da noite se pagarem de tantas fadigas, e apenas vão principiando a repousar são imediatamente despertados para o serviço do dia seguinte, e neste moto de laborioso e excessivo trabalho vivem desgostosos e tristes, adquirem mil enfermidades, e preferem antes a morte do que a existência. Que lastima!!!"

Enfim, que consequências causam tão desumano tratamento à sociedade, a que conclusões se pode chegar a tal comportamento por depoimento tão contundente? Muniz oferece a resposta: "Com efeito, o estúpido não é capaz de nada. Os estúpidos senhores daqueles infelizes, não sabem que é impossível um homem existir tratado por semelhante forma? Estes homens seriam tão obtusos que não conhecem que serviço feito por esta forma só serve de matar a escravatura, e que não pode prosperar? E como há de prosperar se em lugar de terem os seus escravos sadios, robustos e fortes, eles são os que os adoecem, e são os verdugos de seus próprios escravos?! Assento que é muito melhor trabalhar nas horas próprias com gente forte, do que trabalhar sucessivamente de noite e de dia com aleijados, opilados, e cheios de cansaço, moléstia que devora grande parte da escravatura do Brasil, introduzida pelos mesmos senhores. Semelhantes senhores devem ser olhados como monstros na sociedade, inimigos de si e do Brasil porque eles têm desviado o Brasil de uma riqueza exuberante com o mau trato dos escravos, e a não ser o referido mau trato, o Brasil estaria hoje muito mais povoado, e contaria maior número de casas muito mais ricas."

"Ora, o homem sábio alcança ao longe esta verdade, mas os obtusos hão de condenar-me porque digo que os maus tratos que se dá à escravatura tem desviado o Brasil de maior grandeza; e o caso é porque eles mal pensam, que até o presente as colunas do Brasil estão firmadas sobre esta base, isto é sobre os ombros dos Africanos; e que quanto maior fosse o número destes e mais forte, quanto mais poderoso seria o Brasil. Pelo menos estou persuadido que se eles conhecessem isto, não deteriorariam incessantemente a base sobre que se tem até o presente firmado a sua Pátria; e o mais é que tenho tido a desdita de ouvir a muitos destes homens obtusos dizerem que o escravo depois de comprado em trabalhando duas safras de cana, pode morrer, porque já tem pago o seu custo: ora isto é até onde pode chegar a estupidez e atrocidade".

Em uma análise sobre a baixa produtividade dos cultivos no Brasil, desabafa: "Que desleixo! que vergonha, tudo quanto há de bom ou mau em um povo ao Governo é devido". Aqui temos a expressão de uma ideia que é mais um sentimento de nossa ancestralidade lusitana. Muniz confessa que os males do Brasil são devidos ao governo, acreditando que a virtude do governo seria capaz de remediar as mazelas sociais, algo que também está presente em nosso pensamento sociológico de formação acadêmica.

Ao mesmo tempo em que Muniz insiste no baixo nível de instrução das elites, vitupera contra a estupidez do governo, pretendendo demonstrar que sem iniciativa do governo a sociedade está fadada a repetir os mesmos comportamentos.

Este atavismo pode ser entendido como o a tradição antiliberal que viria a forjar as correntes políticas do futuro, em especial o socialismo, que credita ao governo o destino virtuoso da nação.


O costume de nossa academia de citar somente os viajantes estrangeiros do Brasil, a maior fonte de pesquisa de nossa historiografia, também é criticado por Muniz de Souza: "Causa vergonha que as notícias que temos da nossa terra sejam dadas por estrangeiros, e que os nossos patrícios, ou inertes, ou só ativos para discutirem questões puramente políticas, se conservem em uma apatia vergonhosa, sem que lhe cause emulação verem que são os estrangeiros os que cruzam as terras Brasileiras, e os únicos que tiram a gloria que de tais explorações resultam".

De fato, Muniz nunca ganhou um prêmio pelas contribuições de suas pesquisas em fitoterapia e análise social. O costume brasileiro de tratar os estrangeiros de braços abertos e os brasileiros com desdém reflete claramente de sua pena, mesmo contando com um grupo expressivo de amigos na corte e na sociedade médica de então.

A medicina

Seu diagnóstico sobre a cultura medicinal dos sertões não é menos azedo:

"A Medicina, que devia ser exercida por homens versados nesta ciência divina, está entregue à pessoas inteiramente desconhecedoras dela; assim fora das Cidades não se encontram senão mezinheiros, que aplicam uma droga para todas as enfermidades, ou fazem o enfermo armazém de drogas. As Boticas são depósitos de ervas podres, exóticas, que talvez ainda boas não produzam um efeito tão bom como as indígenas. As nossas riquezas dimanando de produtos naturais, necessitam de preparações químicas, esta ciência que tem tanto suavizado os trabalhos da vida humana, e a quem tanto devem as Nações cultas, levaria a um alto grau de perfeição; e entretanto nós vemos esses trabalhos iguais à escravatura Africana".


Imigrantes e nativos

A baixa produtividade brasileira, resultante do caráter de um povo supersticioso e ignorante, é descrita comparativamente com uma colônia de imigrantes alemães:

"Exemplo do que tenho afirmado vou buscar na Comarca de Porto Seguro, na Província da Bahia. Aí foi estabelecida há poucos anos uma colônia de Alemães, cujos fundadores são naturalistas; o estado prodigioso desta colônia está a cima de tudo que se possa dizer. O arranjo, a limpeza, a economia, o verdadeiro método de agricultores civilizados, a boa ordem é por esta gente posta em prática. Suas casas bem repartidas, e mobiliadas, as mobílias são por eles mesmos feitas, suas hortas são abundantes de toda hortaliça; grandes pomares; eles usam de máquinas que suavizam o trabalho, cultivam os frutos do Brasil; porém o café é o seu forte: seus escravos são mais felizes que a mor parte de seus vizinhos livres que sem hábito do trabalho jazem na miséria. Seus vizinhos em lugar de imitar seu sistema, invejosos lhe fazem toda a guerra, dizendo que os Alemães estão tomando toda a terra, sem se lembrarem que todo o atraso do país, é haver muita terra e poucos cultivadores, entretanto os referidos vizinhos, que são os da Vila Viçosa entregues a preguiça e ao desleixo, ao jogo, e ao fado, vivem em miséria, e os colonos na abundância, possuindo já embarcações em que fazem as exportações de seus gêneros para a Bahia, e Rio de Janeiro.

"… Suponhamos que no Brasil temos um milhão de lavradores, e se em lugar desse milhão tivéssemos quinhentos mil como os da colônia Leopoldina, teríamos com esta metade o triplo ou o quádruplo dos gêneros que temos com o milhão."

Esta é a triste realidade de uma cultura estruturada para a economia dirigida, como a brasileira, que não é outra senão a produção da pobreza.


Em seu segundo livro, Máximas e Pensamentos, Muniz expõe sua teoria sobre a ética comportamental frente às terríveis adversidades de sua época do ponto de vista do viajante. Creio que esta obra nunca foi avaliado nas faculdades de Filosofia.

Sua insistência na preservação dos recursos naturais valeu-lhe o título de O Homem da Natureza na imprensa e nos círculos médicos.

Muniz lamenta que, para se obter um favor, um emprego ou uma distinção, seja necessário dedicar-se à bajulação e à intriga ou ao charlatanismo e que "o merecimento modesto e dedicado deve se reputar feliz quando olvidam de o perseguir".

Em 1828 apresentou-se a um Ministro do Império em busca de ajuda. Ficou perplexo com a recepção: "ele olhou para mim com negra e estranhável indiferença e eu olhei para ele como um ente nulo na ordem da criação, admirando-me de que da sua pessoa pudesse depender a sorte de alguns milhões de homens".

Os estrangeiros que visitavam o Brasil, ou que aqui viviam, admiravam seu trabalho a ponto de lhe fornecer a subsistência que o governo negara. Ele encerra seu relato contando a história de um português chamado Bento Lourenço, de Diamantina, que era sargento de milícias e garimpeiro. Por conta de seu ofício, embrenhou-se na cordilheira que vai da Bahia até Campos de Goytacases, habitadas por selvagens, mas achando mais fácil sair pelo litoral do que descer pela margem do rio Mucury, saiu na Vila de mesmo nome chamada na época de Ponto Alegre, onde obteve um atestado de uma autoridade local de que teria varado aquela impenetrável cordilheira. Chegou à Corte do Rio de Janeiro, onde foi recebido com aplausos pelo governo português, e de Sargento passou a Coronel, com o soldo de 400$000 réis, e ainda obteve o hábito de Cristo! "Eu que percorri a dita cordilheira oito vezes, nada consegui, nem ao menos mereci a atenção do ministro do Império Brasileiro".

Ao final da vida, entregou sua coleção de botânica para um dos ministérios em caixas de madeira para compor o acervo de estudos de nossa flora. Ao contrário de Saint-Hilaire e Marcoy, dois franceses que fizeram o mesmo e valeu-lhes emprego no interior da França em museu de História Natural, o material ficou rolando 5 anos em um depósito, e quando foi aberto estava corroído pelas pragas. Foi jogado no lixo. Seus livros foram publicados pelos amigos e a memória de Muniz de Souza desapareceu no nosso deserto institucional.


Para entender por que critico o mundo acadêmico, compare este resumo com a completa ausência de referência da obra de Muniz em um trabalho de mestrado. A autora da tese, limita-se às pesquisas sobre documentação relativa às correspondências oficiais, às diversas fontes em que o autor é citado, mas absolutamente nada além de um parágrafo ou dois de sua obra. Eu me pergunto se um país pode algum dia esperar cicatrizar suas chagas morais com um corpo acadêmico direcionado para omitir o núcleo principal daquilo que examina.


quinta-feira, 4 de junho de 2020

Contos de Perplexidade e Êxtase

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo


Contos de Perplexidade e Êxtase

Livro em Português

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Autor: Marcel Schwob
Palavras: 30.709
Tradução: Carlos U. Pozzobon


Para este escritor de vida breve (1867-1905), o paradoxo é a própria essência da vida, em cujo desenrolar o destino humano encontra seu fim na auto-aniquilação produzida pela alucinação de uma ideia, de um desejo, de um sonho. Para Schwob, que foi estudioso das culturas greco-romana e medieval, a literatura se confunde com a natureza dos homens incapazes de deter um pensamento, uma obsessão, que podem ser tanto o desejo de encarnar um deus, ou a danação de sucumbir a uma paixão incontrolável.

Em cada conto, consegue com uma maestria peculiar de umas poucas frases criar o personagem que irá seguir seu destino de crueldade ou santidade, de fanatismo ou de profecia. Talvez porque as dicotomias que compõem a razão humana se assemelhem em algum momento. Não sabem onde começa o sonho e onde termina a realidade. O destino quase sempre é infame, mas ele traz uma revelação que o personagem não consegue duvidar.

Esta característica dual está na raiz dos contos de Schwob. Ele foi um dos predecessores de Borges, e não por acaso o argentino prefaciou a edição espanhola de seu livro A Cruzada dos Meninos. Neste conto, o resgate efetuado por Schwob vai muito além da mera perplexidade: faz parte daqueles momentos em que a humanidade parece tomada por uma histeria coletiva: "o fato é que durante 2 séculos a paixão de resgatar o santo sepulcro dominou as nações do Ocidente, não sem maravilha, talvez, de sua própria razão... No princípio do século XIII, partiram da Alemanha e da França duas expedições (cruzadas) de meninos. Acreditavam poder atravessar de pé enxuto os mares. Não os autorizavam e protegiam as palavras do Evangelho deixai vir a mim os pequeninos e não os impedis (Lucas, 18:16) ?; não havia declarado o Senhor que basta a fé para mover uma montanha (Mateus 17:20)?", pergunta Borges. A coluna de meninos peregrinos foi engrossando por todos os vilarejos por onde passava. A adesão de outros meninos à causa era tão esmagadora que as estradas se encheram de pequenos peregrinos. A coluna se dividiu, uma indo em direção à Marselha e outra à Gênova. Fora mandada aos mares para aliviar a pressão das cidades tomadas de meninos. O destino desses garotos é contado magistralmente por Schwob usando a voz de diversos narradores. E a missão, naturalmente, termina na mesma perplexidade com que havia começado.

Assim são os Contos de Perplexidade e Êxtase que a Pzz Editora selecionou das obras de Marcel Schwob. A cada nova história, um mergulho no abismo e ao mesmo tempo, uma estranha impressão de que o homem é o mesmo em qualquer época, que todos os exemplares humanos se repetem em outros lugares como se uma estranha programação do universo forçasse os homens para fazer aquilo que só entrevemos nos sonhos, e muito mais, nos pesadelos.



Índice

Prefácio: A Cruzada dos Meninos (1896)
Descrição do Goliardo
Descrição do Leproso
Descrição do Papa Inocêncio III
Descrição dos Três Pequeninos
Descrição de Francisco Longuejoue, Clérigo
Descrição do Qalandar
Descrição da Pequena Allys
Descrição do Papa Gregório IX
O Rei da Máscara de Ouro (1892)
O Rei da Máscara de Ouro
A Morte de Odjigh
O Incêndio Terrestre
As Embalsamadoras
A Peste
Os Falsos Rostos
Os Eunucos
As Virgens de Mileto
Cruchette
Erostratos
Crato
Clodia
Petrônio
Lucrécia
O Capitão Kid
Walter Kennedy
Cyril Tourneur


Tendo em vista a pandemia do coronavírus, segue abaixo o conto A Peste

A Peste

A Auguste Bréal
CCCCI e mille l’an corant
Nella città di Trente Rè Rupert
Volle lo scudo mio esser copert
De l’arme suo Lion d’oro rampant
Cronica del Pitti

Eu, Bonacorso de Neri de Pitti, filho de Bonacorso, gonfaloneiro de justiça da comuna de Florença, cujo escudo foi coberto no ano de quatrocentos e um, por ordem do Rei Rupert, na cidade de Trento do Leão de Ouro rampante, quero contar aos meus nobres descendentes o que me aconteceu quando saí a correr mundo em busca de aventuras. No ano MCCCLXXIV [1374], sendo um jovem sem dinheiro, fugi de Florença para as infindáveis estradas com Matteo de companheiro. A Peste devastava a cidade. A doença surgiu de repente e atacava na rua. Os olhos tornavam-se vermelhos e ardentes, a garganta rouca, o ventre inchava. Depois, a boca e a língua cobriam-se de pequenas bolhas cheias de água irritante. As pessoas ficavam sedentas. Uma tosse seca sacudia os doentes durante várias horas. Logo, os membros ficavam enrijecidos nas articulações, e a pele ficava salpicada de manchas vermelhas inchadas que provocavam ínguas. E finalmente os mortos apresentavam uma aparência retesada e esbranquiçada com as feridas sangrentas e a boca aberta como uma corneta. As fontes públicas exauridas pelo calor estavam rodeadas de homens curvados e magros que tentavam mergulhar a cabeça. Muitos se precipitavam e eram retirados por ganchos em correntes, negros de lodo e com o crânio fraturado. Os cadáveres ressequidos espalhavam-se por inúmeras valas por onde corriam, na estação, as torrentes de chuva; o odor era insuportável e o medo, terrível.

Mas sendo Matteo um grande jogador de dados, nos animou logo que deixamos a cidade e nos metemos na primeira adega para bebermos um vinho em saúde de nossa mortalidade. Havia ali mercadores de Gênova e Pádua. Com os dados chacoalhando nas mãos os desafiamos, e Matteo ganhou doze ducados. De minha parte, desafiei-os ao jogo de cartas, quando tive a felicidade de ganhar vinte florins de ouro, e com os ducados e florins compramos mulas e um carregamento de lã. Matteo, que tinha decidido ir para a Prússia, fez uma provisão de açafrão.

Percorremos os caminhos de Pádua e Verona; retornamos a Pádua para nos suprir com mais lã e viajamos diretamente a Veneza. De lá, passando ao mar, entramos na Eslavônia e visitamos as belas cidades até os confins da Croácia. Em Buda caí doente de febre. Matteo deixou-me sozinho no albergue com doze ducados, retornando a Florença onde lhe aguardavam os negócios e aonde eu deveria ir reencontrá-lo. Eu jazia sobre uma cama seca e empoeirada, sobre o colchão de palha, sem médico e com a porta aberta para a sala de beber. Na noite de São Martinho, apareceu uma companhia de tocadores de pífaros e flautistas, com quinze ou dezesseis soldados venezianos e tedescos. Depois de esvaziarem inumeráveis garrafas, esmagarem as taças de estanho e quebrarem os cântaros contra os muros, começaram a dançar ao som de pífaros. Passaram pela minha porta com seus rostos sadios e rosados e, vendo-me estendido no colchão, quiseram levar-me para a sala gritando: “ou bebes ou morres!”; depois caçoaram de mim enquanto a febre me latejava a cabeça e acabaram por me enfiar na palha do colchão cuja abertura foi atada em volta do meu pescoço.

Suei abundantemente, e minha febre sem dúvida dissipou-se, ao mesmo tempo em que fiquei com raiva. Meus braços estavam petrificados e, como tinham tirado o apoio de minha cabeça, eu dava coices eriçado pela palha no meio dos soldados. Porém, eu trazia à cintura, debaixo do calção, uma curta lâmina embainhada; consegui deslizar minha mão até lá e cortar a capa do colchão.

Talvez a febre ainda me inflamasse o cérebro, mas a recordação da peste que havíamos deixado em Florença, e que depois se propagou pela Eslavônia, misturou-se no meu espírito a uma espécie de ideia que me fez por alucinação ver Sylla, o ditador dos latinos, de quem fala o grande Cícero. Ele se parecia, diziam os atenienses, a uma velha salpicada de farinha. Resolvi aterrorizar os soldados venezianos e tedescos: como me encontrava no meio do reduto onde o estalajadeiro guardava suas provisões de frutas em conserva, rapidamente arrebentei um saco cheio de farinha de milho. Esfreguei o corpo com a farinha e, quando fiquei com uma aparência entre branco e amarela, fiz com a faca um corte no braço de onde tirei suficiente sangue para sujar irregularmente minha indumentária. Depois reentrei no colchão e esperei os bandidos bêbados. De fato, logo chegaram rindo e cambaleando: mal viram minha face esbranquiçada e sangrenta se espantaram gritando entrechocados: “A peste! A peste!" Não recuperei as minhas armas porque a estalagem estava vazia. Sentindo-me restabelecido pela transpiração que me impuseram aqueles rufiões, tomei o caminho para Veneza a fim de me juntar a Matteo.

• • • • • • •

Encontrei meu companheiro Matteo errando pelos campos de Florença em uma situação difícil. Ele não ousara penetrar na cidade onde a peste continuava a enraivecer. Mudamos nossos planos e nos dirigimos para os Estados do Papa Gregório em busca de fortuna. Subindo para Avi­hão, cruzamos bandos de homens armados de lanças, espadas e partasanas, pois os cidadãos de Bolonha tinham se revoltado contra o Papa a pedido dos florentinos (o que ignorávamos). Ali fizemos alegres jogos com as gentes de ambos os lados do conflito, tanto no baralho como nos dados, até que nossos lucros somavam trezentos ducados e oitenta florins de ouro.

A cidade de Bolonha quase não tinha gente, e fomos recebidos nas saunas com gritos de alegria. Os quartos não estavam cheios de palha como em muitas cidades lombardas; não faltavam camas, ainda que as tiras de couro estivessem quase todas rotas. Matteo encontrou uma florentina conhecida, Monna Giovanna; de minha parte, não pensei jamais em saber o nome da minha, pois estava contente.

Ali bebemos em abundância: vinho encorpado da região e cerveja, e comemos doces e tortas. Matteo, a quem eu contara minha aventura, fingindo ir à latrina desceu até a cozinha e retornou vestido com uns trapos ridículos disfarçando que tinha peste. As garotas dispararam em altos e agudos brados até se certificarem e voltarem para tocar, ainda medrosas, a face de Matteo. Monna Giovanna não quis mais ficar com ele e ficou tremendo num canto, dizendo que ele cheirava à febre. Enquanto isso, Matteo, bêbado, pôs a cabeça entre as canecas sobre a mesa, que seus roncos faziam tremer, parecendo-se com as figuras de madeira pintadas que os charlatães mostram nas ruas.

Finalmente deixamos Bolonha e, depois de diversas aventuras, chegamos perto de Avinhão, onde ficamos sabendo que o Papa havia ordenado a prisão de todos os florentinos e mandado queimá-los, a eles e a seus livros, para se vingar da rebelião. Fomos avisados muito tarde, porque os esbirros do marechal do Papa nos surpreenderam durante a noite e nos lançaram na prisão de Avinhão.

Antes de sermos interrogados, fomos examinados por um juiz e provisoriamente condenados à masmorra, a pão seco e água, até depormos conforme prescreve a justiça eclesiástica. Consegui, todavia, esconder sob minhas roupas nosso saco de pano que continha um pouco de polenta e azeitonas.

O chão da masmorra era pantanoso, e não tínhamos ar além de um respiro gradeado que se abria ao rés da terra sobre o canto da guarda.

Nossos pés haviam passado por buracos de pesados cepos de madeira, nossas mãos frouxamente atadas a correntes de tal maneira que nossos corpos se tocavam desde os joelhos até os ombros. O guarda de turno nos fez o favor de dizer que éramos suspeitos de envenenamento, porque o Papa soubera por certos embaixadores que os gonfaloneiros da comuna de Florença mantinham o desígnio de matá-lo.

Assim, estávamos na escuridão da prisão não ouvindo o mínimo ruído nem sabendo a hora do dia e da noite e com grande risco de sermos queimados. Recordei-me então do nosso estratagema, e nos veio a ideia de que a justiça papal por terror da doença nos expulsaria para fora. Peguei com pena a minha polenta, e combinamos que Matteo iria rabiscar seu rosto e sujá-lo de sangue enquanto eu gritaria para atrair os esbirros. Matteo arranjou a sua máscara e começou a gritar roucamente como se a garganta estivesse engasgada. Invoquei Nossa Senhora ao sacudir minhas correntes. Mas a masmorra era profunda, a parede espessa e era noite. Durante várias horas suplicamos inutilmente. Cessei meus gritos enquanto Matteo continuava a gemer. Dei-lhe uma cotovelada para que ele repousasse até a alvorada: seus gemidos tornaram-se mais fortes. Toquei-lhe na escuridão; minhas mãos alcançaram seu ventre que parecia inchado como uma ostra. E então o medo me invadiu: estava colado a ele. E enquanto ele gritava com uma voz rouquenha: "Quero beber! Quero beber”, até o que me pareceu ser o apelo desesperado de um cão, a palidez do dia nascente surgiu no respiradouro. E então um suor frio percorreu meu corpo, pois sob sua máscara poeirenta, sob as manchas de sangue ressequido, vi que ele estava lívido e reconheci as crostas brancas e a exsudação vermelha da peste de Florença.