quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Euclides da Cunha - Contrastes e Confrontos

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo

Parte do discurso de posse de Euclides na Academia Brasileira de Letras. Vale pelo estilo. Os arquivos em PDF dos Livros de Euclides você encontra no website da Biblioteca Nacional e no site Euclides da Cunha

Castro Alves foi dos nossos últimos românticos. Depois dele, em todo o período que vem de 1875 até hoje, temos mudado muito e vamos mudando ainda, sem que se note uma situação parada, das que se fazem ao menos para se avaliar quanto se andou.

É natural. Realizamos duas empresas a que nos impeliam as nossas tradições, e vamos agora arrebatados nas correntes novas que delas se derivaram. Mas, infelizmente, a par destas energias próprias, tivemo-las estranhas. O quinquênio de 1875-1880 é o da nossa investidura um tanto temporã na filosofia contemporânea, com seus vários matizes, do positivismo ortodoxo ao evolucionismo no sentido mais amplo, e com as várias modalidades artísticas, decorrentes, nascidas de ideias e sentimentos elaborados fora e muito longe de nós.

A nossa gente, que bem ou mal ia seguindo com os seus caracteres mais ou menos fixos, entrou, de golpe, num suntuoso parasitismo. Começamos a aprender de cor a civilização: coisas novas, bizarras, originais, chegando, cativando-nos, desnorteando-nos, e enriquecendo-nos de graça. A inteligência brasileira sentia a ventura radiosa da Cinderela pompeando o fausto gratuito de uma fantasmagoria simpática. Diante de novos descortinos mais amplos, partiu a cadeia tradicionalista que se dilatara até aquele tempo com Alencar e Porto Alegre, e atirou-se para a frente quase envergonhada da sua situação anterior, que entrou a desquerer, repulsando os seus melhores nomes, e sugerindo um protesto tranquilo, lavado de elegante ironia, de alguém que teve o ensejo de a ver naquele momento e de acompanhá-la até hoje, até o instante em que vos falo. Sem alentados dizeres, o mestre, que hoje nos preside e guia, apontou então, sorrindo, os perigos de uma avançada sem bandeiras, à semelhança de uma fuga.

Pelo menos tudo aquilo era ilógico. O espírito nacional reconstruía-se pelas cimalhas, arriscando-se a ficar nos andaimes altíssimos, luxuosamente armados. Os novos princípios que chegavam não tinham o abrigo de uma cultura e ficavam no ar, inúteis, como forças admiráveis, mas sem pontos de apoio; e tornaram-se frases decorativas sem sentido, ou capazes de todos os sentidos; e reduziram-se a fórmulas irritantes de uma caturrice doutrinária inaturável; e acabaram fazendo-se palavras, meras palavras, rijas, secas, desfibradas, disfarçando a pobreza com a vestimenta dos mais pretensiosos maiúsculos do alfabeto.

Houve então o soleníssimo préstito do Determinismo, da Evolução, do Inconsciente, do Incognoscível, em que se amuletavam, intrusas, algumas velhas carpideiras do romantismo: a Justiça, a Escola e a Liberdade...

Assim, não maravilha que a nova geração, do avançar aforrado, não soubesse, afinal, para onde seguir. Apenas um exíguo grupo se destacou: arregimentou-se em torno de um filósofo; e afastou-se. Ninguém mais o viu — e mal se sabe que ele ainda existe, reduzido a dois homens admiráveis, que falam às vezes, mas que não se ouvem, de tão longe lhes vem a voz, tão longe eles ficaram no território ideal de uma utopia, no dualismo da positividade e do sonho...

O resto ficou numa fronteira indecisa a tatear dentro de uma miragem que, à alta de melhor nome, se chamou durante muito tempo a Idéia Nova. Que era a Idéia Nova ? Eu poderia responder-vos que era uma coisa muito velha, uma curiosa infantilidade de cabelos brancos, ou uma novidade de cem anos – mas prefiro a palavra de um poeta do tempo.

Escutemo-lo:

Está deserto o céu. No grande isolamento,
Palpita ensanguentado o sol – um coração...
Mas os deuses de Homero, o Jeová sangrento,
Alá e Jesus Cristo, os deuses onde estão?

Morreram. Era tempo. Agora encara a terra:
Ressoa alegre a forja e sai da Escola um hino.
O gênio enterra o mal em uma negra cova.

Deus habita a consciência. O coração descerra
Aos ósculos do Bem o cálice purpurino.
Vem perto a Liberdade. É isto a Ideia Nova.

Os versos são de 1879 e o poeta, à volta dos vinte anos, chamava-se Antônio Valentim da Costa Magalhães. Nascido em 1859 nesta capital – aquela data e este lugar são elementos dignos de nota na sua formação. Já se tem feito um confronto instrutivo dos nossos escritores do Norte e do Sul. Talvez fosse mais útil defrontar os que se formam na orla litorânea sob a luz variamente refletida da cultura européia com os que passam as primeiras quadras no remanso das gentes sertanejas, mais em contato com o gênio obscuro das nossas raças. Neste ponto o regimen moral do Brasil reproduz a sua inegável anomalia climática: varia mais em longitude do que em latitude. Mas não me alongarei por aí. Notarei apenas que os primeiros quinze anos de Valentim Magalhães coincidem com uma fase de profundas mudanças da nossa existência política. De 1860, ao levantar-se o preamar democrático, simbolizado em Teófilo Ottoni e rugindo na “Mentira de Bronze” de Pedro Luís, a 1870 e 1875, quando a monarquia perdeu, uma após outra, as muletas da aristocracia territorial, e da Igreja – foi tão intensiva a decomposição do antigo regime que o simples enfeixar as frases acerbas dos maiores chefes de seus partidos é uma missão de Tácito, e não se compreende que se perdesse tanto tempo para realizar-se o passeio marcial de 15 de novembro de 1889.

Assim a juventude do escritor aparelhava-se para a vida quando em torno a sociedade se alterava, apercebendo-se de novos elementos para existir; e isto precisamente no cenário mais revolto de uma tal metamorfose.

A geração de que ele foi a figura mais representativa, devia ser o que foi: fecunda, inquieta, brilhantemente anárquica, tonteando no desequilíbrio de um progresso mental precipitado a destoar de um estado emocional que não poderia mudar com a mesma rapidez; e a sua vida, a sua carreira literária vertiginosa, toda disposta a nobilíssimas tentativas reduzidas a belíssimos preâmbulos, a nossa própria vida literária, impaciente e oidejante, brilhando fugazmente à superfície das coisas, inapta às análises fecundas pelo muito ofuscar-se com as lantejoulas das generalizações precipitadas.

Nada sei, infelizmente, dos primeiros tempos em que a sua educação se delineou. E 1877, contando apenas dezoito anos, matriculou-se na Faculdade de Direito de São Paulo — e daí por diante, sem um hiato, encadearam-se-lhe os dias numa atividade pasmosa.

Assim é que para logo colaborou em três periódicos acadêmicos, a Revista de Direito e Letras, o Labarum, onde fulgia o esplêndido humorismo de Eduardo Prado, e a República, onde Lúcio de Mendonça açacalava as suas rimas golpeantes. Noviciando nas letras, Valentim revelou de pronto uma jovialidade desbordante, que foi o traço mais duradouro da sua móvel fisionomia literária, e uma aptidão rara para o jornalismo, que a breve trecho, em 1878, o tornou aturado colaborador dos melhores jornais do Rio e São Paulo. Em 1879 já era autor de três opúsculos, Ideias de Moço, Grito na Terra e General Osório, escrito a duas penas com Silva Jardim, e de um livro de versos Cantos e Lutas, onde lhe germinou o renome.
Precipito, acinte, as datas e os livros. É o melhor comentário à sua carreira.

Em 1880, ainda estudante, desposou a nobilíssima senhora, que tanto lhe aformoseou a vida, e, mau grado os novos deveres adquiridos, escreveu apaixonadamente para a Evolução, dirigida por Júlio de Castilhos e Assis Brasil, continuando a colaborar na Gazeta, onde imprimiu Colombo e Nené, o seu conhecido poemeto.

Fundou a Comédia em 1881; traçou-lhe transcorridos três meses, o gracioso epitáfio — e foi redigir o Entreato, com Eduardo Prado, e o Boêmio, com Raimundo Correia.

Formou-se. Destacara-se notàvelmente granjeando invejável nomeada entre companheiros que se chamavam Júlio de Castilhos, Silva Jardim, Barros Cassal, Teófilo Dias, Eduardo Prado, Ezequiel Freire, Raul Pompéia, Randolfo Fabrino, Lúcio de Mendonça, Assis Brasil, Afonso Celso, Fontoura Xavier, Augusto de Lima, Alcides Lima, Alberto Sales, Pedro Lessa, Luís Murat, Júlio de Mesquita, Raimundo Correia. Cito ao acaso, esquecendo outros cômpares no merecimento, apenas para notar que ainda não se congregaram sob os tetos de uma escola tantas esperanças e tão discordes temperamentos — da severa formação política de Castilhos ao evangelho revolucionário de Silva Jardim, da rudeza republicana de Barros Cassal ao monarquismo elegante de Eduardo Prado, ou da melancolia impressionadora de Teófilo Dias ao gracioso humorismo de Ezequiel Freire.

Ora, Valentim foi a figura representativa no meio de tão díspares tendências, por isto mesmo que lhe faltou sempre uma diretriz à atividade dispersiva. As condições do meio e a sua índole arrastaram-no demasiado à vida exterior e para a sua infinita instabilidade.

Depois de formado persistiu a aceleração de sua carreira, dissipando em força o que adquiria em movimento. Em 1882 publicou os Quadros e Contos, livro prometedor, onde refulgem páginas descritivas de excepcional colorido, avivadas tôdas daquela galanteria do escrever, que raro o abandona — e que se acaso o abandona é para tornar maior. Realmente, joeirando-se todos os seus versos escritos em 1883, talvez nos restassem apenas três sonetos; mas estas 42 linhas perduram nas nossas letras como a expressão mais eloqüente de uma saudade ao mesmo passo excruciante e encantadora na sua tocante singeleza. Falecera-lhe o pai extremosíssimo, e Valentim, que até então escrevera para toda a parte, num insofregado anelo da consideração coletiva, — surpreendido pela desdita, confiou, chorando, à alma da sua esposa, aquele poema de duas páginas O nosso morto, que não preciso recitar-vos, tão vivo ele perdura na vossa memória.

Mas estas transfigurações eram-lhe instantâneas.
Naquele mesmo ano desencadeou na Gazeta de Notícias a sua mais viva campanha de franco-atirador do espírito. Revelai-me o desgracioso do símile: as Notas à Margem recordam uma escaramuça agitadíssima, estonteadora, sem rumos, à caça do imprevisto, onde não há triunfos nem reveses, e os recontros e os adversários se travam e se distinguem fugitivos, a relanços e aos resvalos, de um reconhecimento armado que não pára... Porém, o que ali falta no compasso das idéias, sobra na propriedade do dizer e num desvelado apuro de linguagem, que influíram consideravelmente em nosso meio. Muita gente, entre nós, começou a escrever melhor, sob as reprimendas gráceis daquele infatigável caçador de solecismos e persistente fiscal de pronomes insubordinados. Ao mesmo passo na imprensa diária acentuou-se melhor esta forma literária facílima, que é o artigo do jornal, onde a medida e a intensidade das idéias têm de ceder, não já aos dúbios contornos, capazes de ajustá-las ao maior número possível de critérios, nos limites de uma atenção de quartos de hora, senão também à fluidez de expressão, que lhes permita insinuarem-se nas nossas preocupações, encantando-nos um momento — e passando sem deixarem traços.
Continuemos a resenha. Em 1884 trasladou ao português, com Filinto de Almeida, El Gran Galeoto, de Echegaray — e esta tradução, com as suas rimas e variedade métrica, avantaja-se ao original castelhano, onde o drama deriva na cadência única e intolerável dos versos brancos, em redondilha menor.
Fundou em 1885 A Semana e este periódico, estritamente literário, fez a maravilha, nesta terra e naquele tempo, de durar três anos. Mas para isto, à parte um concurso notável, em que se extremavam, para citar somente os mortos, Urbano Duarte, Raul Pompéia, Alfredo Sousa e Luís Rosa — despendeu o melhor da sua atividade e quanto lhe adviera da herança paterna. Mas não vacilou ante a ruína. Iludia-se quem lhe medisse a fortaleza pela volubilidade. Era um caráter varonil blindado de uma jovialidade heróica.Tinha esse recato do sofrimento que é a única expressão simpática do orgulho. Os seus melhores amigos jamais lhe divisaram desânimos.

O revés não o desinfluiu. Escreveu em 1886 os Vinte Contos; em 1887, Horas Alegres; publicou, refundidas, em 1888, as Notas à Margem; em 1889, Escritores e Escritos... Vede: não há a solução mais breve no duodecênio que percorremos. Não se pula uma data sem pular-se um livro. O escritor violou doze vêzes seguidas o nonum prematur in annum... [Frase de Horácio que aconselha que os rascunhos sejam guardados até o nono ano antes de serem impressos]

De 1889 a 1895 houve aparente descanso. A República, feita numa madrugada, criara a ilusão de grandes coisas feitas da noite para o dia. Valentim, como todos, vacilou na vertigem geral. Ordinariamente se acredita que o empolgasse o anseio da fortuna fácil, naquela quadra que a ironia popular ferreteou com o nome de “encilhamento”. Com efeito, salvante alguns artigos esporádicos, o incansável homem de letras parecia mudado num infatigável homem de negócios. E fundou — como toda a gente — uma companhia.

Mas considerai como sonhador desdenhou as voltas retorcidas dos cifrões e alinhou parcelas como se alinhasse versos; aquela “Educadora”, que se transformou depois de uma vulgar companhia de seguros, era uma fantasia comercial. Não segurava vidas, segurava inteligências; e o segurado, ao invés de um ajuste sinistro com a morte, a troco de alguns contos de réis, garantia a educação dos filhos.

O devaneio mercantil não vingou. Valentim reavivou-se: e no qüinqüênio de 1895-1900 continuou a marcar os anos pelos livros e opúsculos: em 95, Filosofia de Algibeira; Bric-à-Brac, em 96; em 97, o seu primeiro romance, Flor de Sangue; Alma e Rimário, em 98-99 — deixando prontos quatro outros: Fora da Pátria, Na Brecha, Novos Contos e Outono, que lhe demarcariam, na mesma progressão, os quatro últimos anos de existência...

Uma herança de tal porte não se inventaria num discurso.

Vou agitar alguns conceitos falíveis. Revendo estes volumes, o que para logo se põe de manifesto é uma falta de unidade pasmosa.

O escritor muda no volver das páginas. Nos Cantos e Lutas, escuta-se, ao toar solene dos alexandrinos, o lirismo humanista que Pedro Luís divulgara desde 62; e quem quer que admita a ficção das escolas literárias, estuda-o à luz do critério sociológico de Guyau.

De feito, a inspiração não lha diluem lágrimas: é robusta, impessoal, refulgente — e a sua
...grande musa austera e sacrossanta,
que para o céu azul os olhos alevanta
banhados no fulgor virgíneo da verdade,

era sem dúvida sincera. Mas esta linguagem,
cantando herculeamente as odes imortais
nunca mais se repetiu. Ao contrário, a poesia filosófica (e falo assim por obedecer à moda, porque uma tal poesia se me afigura tão absurda quanto uma geometria lírica ou a astronomia romanceada de Flammarion), a poesia “social”, em que tanto importa o subordinar-se a expressão à verdade, teve depois em Valentim um irrequieto adversário.

Nos Escritores e Escritos desponta-lhe o antagonismo em dizeres concisos, golpeantes: "Em literatura a forma é quase tudo. Especialmente em poesia. É preciso ter como Teodoro de Banville o sentimento das palavras... A Forma! Eis o grande, o milagroso talismã! Quem o possui atravessa a vida sem conhecer impossíveis aos caprichos do seu gênio".

A “forma” lá está com F maiúsculo. É o fetichismo do vocábulo. Com efeito, poucas vezes na língua portuguesa a palavra foi tão voluntariosa no violentar ideias, transfigurando-as ou emparelhando-as nas mais bizarras antíteses.

Falando-nos de Junqueiro, por exemplo, diz-nos Valentim em menos de uma página: "A gargalhada de Junqueiro tem a altissonância trágica de Shakespeare e o assobio implacável de Gavroche [Personagem de Os Miseráveis de Victor Hugo]: é a voz potente de Victor Hugo estridulando com as casquinadas de Aretino. É Voltaire arremangado, dedos na boca, assobiando à Tiara, às batinas e aos solidéus... É o Ésquilo da troça. Hamleto rufando com as tíbias de Iorik na pança congesta de Tartufo...

Atalhemos — porque vai por diante este ajuntamento ilícito de verbos, substantivos e adjetivos, que se vêem juntos pela primeira vez e vivamente se repulsam.

Mais expressiva é aquela admiração delirante. Valentim Magalhães era excepcionalmente afetivo. Tudo lhe denuncia um nobre espírito impropriado a agir sem os estímulos de uma ardente simpatia, vinculando-o às outras almas.

Esta literatura associada que, em geral, a exemplo dos Goncourts, exige a base da consanguinidade, ele a praticou como nenhum outro, reunindo um irmão legítimo, Henrique Magalhães ( com quem escreveu uma paródia à Morte de D. João ), a Silva Jardim, a Filinto de Almeida e Alfredo Sousa, nos laços da mesma fraternidade. Não lhe conheço um livro sem uma dedicatória. São raríssimos os seus escritos dispersos, cujos títulos não tenham logo abaixo um parênteses guardando o nome de um amigo. A admiração, que é o sintoma mais lisonjeiro de um caráter, rompia-lhe sempre num enorme exagero. Admirou daquele jeito Guerra Junqueiro; admirou C. Castelo Branco, “polígrafo indefeso, formidável, único”; admirou Ramalho Ortigão, “um mestre, senhor de todas as verdades do mundo moderno...”; admirou Machado de Assis, esse que arranca aos rígidos vocábulos a música rebelde e fugidia...

Admirou os seus próprios companheiros. Sendo preeminente na “nova geração”, não desdenhou fazer-se o garboso mestre-sala, para apresentá-la ao país. E o país conheceu-a, em grande parte, através da sua palavra carinhosa.. Não preciso exemplificar. No círculo daquela afabilidade irradiante e avassaladora caíram os que chegavam pouco depois, desde Coelho Neto, Medeiros e Albuquerque e Olavo Bilac até aos mais obscuros escrevedores da província. A alguns cantou em verso, desde Carvalho Júnior, desaparecido tão moço e a quem conhecemos apenas "como um meinsinger loiro, alegre e extravagante", até alguém que não preciso nomear, tão conhecido nosso é o ...que esculpido Tem sonhos, dores, alegrias. E é príncipe do Reino Unido Das Harmonias.

Mas esta afetividade dissipava-lhe o espírito. O seu pendor para o artigo ligeiro é expressivo; é a tendência dos que vêem tudo de relance, na ânsia de tudo ver. Relendo os Vinte Contos, lastimamos que o escritor nunca se demorasse num assunto.

A Feira dos Escravos, para citar só um caso, na sua urdidura, onde resplandece um desafogado estilo descritivo, e no seu desenlace empolgante, é o lance, inexplicavelmente abandonado, de um belo romance de costumes.

Não consoavam, porém, a vibratibilidade de Valentim Magalhães e o intricado episodiar das longas narrativas.

Demonstra-no-lo a Flor de Sangue. Nada direi do livro malogrado, onde, entretanto, um velho tema se remoça com uma cativante originalidade de desfecho. Considero apenas que a crítica desaçamada, que o estraçoou até à errata final, não disse mais do que o próprio romancista, no prefácio:
O capítulo que primeiro escrevi na intenção de fazê-lo o primeiro do livro, foi o quinto da segunda parte; eu havia principiado pelo fim!

Constantemente traído pelas melhores qualidades morais, anelando envolver na mesma carinhosa simpatia homens e cousas, todo o seu grande talento se diluía espalhado pelos aspectos inumeráveis da vida.

Resumo o meu juízo: toda a obra literária de Valentim Magalhães pode ter o título único de um dos seus livros — Bric-à-Brac . E a este propósito ouçamo-lo na esplêndida volubilidade de seu estilo deserto, referindo-se àquele livro sem cuidar que fazia toda a sua psicologia literária:
"...Pois esta obra é isto mesmo; é um amontoado de curiosidades literárias, e objetos de arte escrita... Junto a um conto comovido e sincero, um trecho da sátira mordaz e irreverente; em seguida depois de um surto amplo de fantasia caprichosa, um quadro exato e minucioso da vida social — Bric-à-Brac. De manhã à noite, em um só dia, o homem percorre toda a gama sentimental – eternece-se e lacrimeja; encoleriza-se e ruge; alegra-se e ri; enfara-se e boceja; enamora-se e canta; indigna-se e satiriza... "

Não prossigamos. Nestas palavras sinceras só há um dizer destoante: aquele encoleriza-se e ruge. A linha acentuada do caráter de Valentim ia de uma alevantada altivez a uma robusta alacridade que o forrava aos rancores – embora do ódio, que é muitas vezes a forma heróica da bondade.

Mas este nunca lhe repontou nas polêmicas acirradas que travou e o mais aceso das quais lhe refulgia a graça amortecendo ou falseando os mais violentos golpes.

Nos últimos tempos apareceram-lhe adversários a granel. Não houve aí grande homem engatinhando, ou imenso talento inédito, que se não malestreasse argüindo-o em hílares reprimendas, adoràvelmente papagueadas, de numerosos defeitos laivando-lhe o renome e desgabando-lhe os livros. Não lhes deu o prêmio de um revide. Soube apenas que existiam, indecisos, amorfos, difusos, diluindo-se e apagando-se por si mesmos, — uma espumarada fervilhante, aflorando e morrendo na esteira a sua rota impetuosa.

E retorquiu, algures, sorrindo: “A princípio fui gênio; mais tarde coisa nenhuma. Hoje César, amanhã João Fernandes...”

Não sei de frase mais verdadeira. Eu andava nos últimos preparatórios quando ele aqui chegou, formado de São Paulo, e posso afirmar-vos que ninguém, tão moço, ainda passou por estas ruas envolto de tão admirativa curiosidade.

A sua entrada nesta capital foi a de um triunfador e em poucos dias não houve quem lhe não conhecesse a figura de irrivalizável elegância e o rosto escultural velado de palidez fidalga e aclarado por um olhar que todo ele era o reflexo dos esplendores máximos da vida.

Foi, porém, o mais breve dos triunfos. Não que o escritor diminuísse o engenho, senão porque o surpreendeu um período anônimo da existência política. O quatriênio de 1886-1890 foi decisivo para os destinos do Brasil, tão de golpe nele se afrouxou a coesão de nossos costumes e num desejo desapoderado de novidades desadoramos muitos velhos atributos, que imaginávamos retrógrados e eram apenas conservadores.

Aqui se me antolha digressão acidentadíssima. Evito-a. Mas no adstringir-me ao assunto, aponto, a correr, esta antinomia: precisamente quando a peregrina palavra “evolução” se tornou a rima fácil de todos os versos, rompemos com esta lei fundamental da história — tão bem expressa na continuidade de esforços dos estados sociais sucedendo-se com um determinismo progressivo — e apresentamos o quadro de uma desordem intelectual que, depois de refletir-se no disparatado de não sei quantas filosofias decoradas, nos impôs, na ordem política, a mais funesta dispersão de idéias, levando-nos, aos saltos e ao acaso, do artificialismo da monarquia constitucional para a ilusão metafísica da soberania do povo ou para os exageros da ditadura científica; ao mesmo passo que na ordem artística íamos dos desfalecimentos de um romantismo murcho, às demasias de um falso realismo, que era a pior das idealizações, porque era a idealização dos aspectos inferiores da nossa natureza.

Para ainda engravecer a crise, os dois ideais da abolição e da República não requeriam mais as emoções estéticas. Resolvidos na ordem moral, estavam entregues à ação quase mecânica dos propagandistas. Estes precipitavam-nos com o desalinho característico da fase revolucionária das doutrinas, em que se conchavam as idéias e os paralelepípedos das ruas, e os melhores argumentos desfecham no desmantelo das barricadas investidas.

José do Patrocínio e Silva Jardim tomaram por algum tempo a frente da sociedade. Recordando êsse passado recente, o que vemos ao primeiro lance, é aquele mulato formidável ou aquela miniatura de Titão.

Ocupam a cena toda. No próprio terreno vibrante da propaganda derivaram, por vezes, ao segundo plano os vultos de maior destaque, desde o velho Saldanha Marinho, tão esquecido depois de morto, a Quintino Bocaiúva, meio esquecido em vida — e que no retrair-se hoje a um voluntário ostracismo e no andar tão despercebido pelas nossas ruas, atravancadas de notabilidades, lembra-me alguém que vai passando devagarzinho para a História, deslembrado dos homens e da morte, confundindo-se a pouco e pouco com a sua própria estátua — uma bela estátua corretíssima e errante, sem um pedestal que a imobilize e soerga acima da multidão em que se perde...

Mas não cedamos à fascinação do assunto. Observemos que em um tal meio não se compreende a existência de uma arte que é sempre o resultado de certa fixidez dos sentimentos gerais.

Valentim Magalhães, como outros muitos, foi, naturalmente, apagando-se, mais e mais, naquela movimentação precipitada. Além disto, morreu depois dos trinta anos; e neste país quem quer que se notabilize e ultrapasse aquele marco, fora dos tablados da política, predestina-se ao suplício lento e indefinível de acompanhar em vida ao enterro pobre da sua própria imortalidade.


Terminemos. Faltou sem dúvida a Valentim Magalhães essa concentração intelectual que é o segredo dos gênios e dos medíocres: um espírito a dobrar-se, a revirar-se, desesperadamente, em alguns pensamentos exclusivos e impassível aos reagentes da vida exterior. Para esses a amplitude das idéias, como a das espirais, explica-se por um giro indefinido em torno de si mesmas. Os seus cérebros deveriam circunvoluir em caracol. São os eternos distraídos, ou abstratos, vivendo fora da preocupação que os escraviza, ou da inspeção em que se isolam, com um automatismo de sonâmbulos. Nas conjunturas mais opostas, entre os ruídos e as luzes de um salão de baile, ou num funeral, lá lhes está girando e regirando, torcendo-se e distorcendo-se a idéia absorvente, conservada por esta misteriosa consciência obscura, que vela perpetuamente nas profundezas do nosso espírito, e à luz da qual — sem que o queiramos, sem que o entendamos, sem que o expliquemos — se filiam as mais altas concepções aos mais fugitivos e inapreciáveis incidentes. Então compreende-se que do cair e um fruto apodrecido eles passem, de um salto no infinito, para a queda perpétua dos mundos; ou que das oscilações quase imperceptíveis da lâmpada suspensa de uma catedral, entrevistas num êxtase religioso, induzam, de improviso, as leis mecânicas do isocronismo do pêndulo. Na ordem estética recorde-se a horrível anedota de Talma: a soluçar, num desespero, agarrado ao cadáver do filho, e estacando de súbito, ao ouvir pela primeira vez a voz interior e profunda de uma dor verdadeira, que era a sua própria dor, e estudando-a friamente, para a reproduzir, dias depois, intacta, no palco, diante dos espectadores assombrados; ou a pertinácia sobre-humana de Flaubert, atravessando decênios a versar, a volver, a revolver, a corrigir, a mondar, e a remondar um assunto único, interminável...

Valentim Magalhães foi o avesso desses homens. Repitamos: as condições do meio e o seu temperamento arrastaram-no demais para o mundo exterior e para a sua indescritível instabilidade. Ele entregou-se de corpo e alma ao turbilhão sonoro e fulgurante da existência.

Foi o seu grande defeito, dizem.
Mas este defeito — o seu maior defeito — é a mais bela imperfeição da nossa vida: o defeito de viver demais.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Os Intelectuais

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo

Rosseau
Shelley
Marx
Ibsen
Tolstoi
Hemingway, Brecht, Sartre e outros

Paul Johnson tem eventualmente publicado artigos nos jornais brasileiros e é mais conhecido como jornalista, historiador free-lancer e escritor britânico. Nascido em 1928, de origem católica, estudou em escola de jesuítas e depois em Oxford, antes de iniciar sua carreira na Europa onde viveu alguns anos antes de retornar a Londres e atuar em diversos jornais ao longo de sua carreira.

Seu livro Intellectuals foi muito apreciado e recebeu uma tradução brasileira. A razão para escrevê-lo está vinculada a sua biografia. Adepto do socialismo moderado, Johnson iniciou sua carreira na esquerda trabalhista britânica. Mudou de posição mais tarde, quando se convenceu do mal causado pelo sindicalismo na estagnação da economia britânica dos anos 70. A partir de então, tornou-se um aliado de Margareth Thatcher (servindo em seu governo), e sua popularidade lhe garantiu sucesso editorial nos cerca de 40 livros que escreveu em sua carreira.

Intellectuals trata de um conjunto de biografias, com 20-30 páginas cada, de escritores relevantes no mundo das ideias dos últimos 300 anos. Inicia com Rousseau, depois Shelley, Marx, Ibsen, Tolstoi, Hemingway, Brecht, Russell, Sartre, Edmundo Wilson, e os menos conhecidos Victor Gollancz, Lillian Hellman, e diversos outros escritores citados no último capítulo, como James Baldwin.

Pode-se descrever o método de Johnson como uma investigação através da mente do escritor, suas relações familiares, afetivas e sexuais como determinantes de sua obra relativamente ao momento histórico de sua vida, característico do método psicanalítico. Através do entendimento da infância, das relações com os pais e da formação escolar na adolescência, Johnson obtém os determinantes da personalidade que definiram o escritor e sua época. Sua descoberta mais impressionante está na similaridade do temperamento entre Rousseau, Shelley, Marx, Tolstoi e outros. Em todos eles, os traços comuns identificam o mesmo tipo de consciência atormentada.

Mas sua investigação não se reduz a isso. Johnson também analisa a veracidade dos dados propostos pelo escritor em sua obra, com documentos e estatísticas de seu tempo, revelando a verdadeira natureza das propostas e objetivos perseguidos pelo autor em sua vida. Obra e vida são, portanto, duas coisas separadas e antinômicas, uma dialógica, como dizem os críticos literários. Perseguindo este princípio dialógico, Johnson acabou nos revelando as contradições, o sentimento de culpa, o comportamento anti-social e inescrupuloso desses autores com relação à imagem que produziam de si mesmos. Assim, Marx, Ibsen, Tolstoi e James Baldwin não pagavam as dívidas que contraíam dos amigos, e não se importavam com isso, achando que seu gênio era o suficiente para que os outros lhes reverenciassem com a sua ‘ajuda’.

Mas ainda faltou alguma coisa no julgamento de Johnson: a ausência de compreensão do espírito artístico e das inconsistências e contradições da mente do artista com relação a sua própria obra. Se Johnson não tivesse se limitado a autores clássicos, e tivesse tentado penetrar nas incoerências de poetas e pintores da avangarde, veria que a obra de arte está irremediavelmente comprometida com problemas mentais que vão da esquizofrenia à paranóia, da irridência à violência intelectual, da presunção à delinquência, da dissidência ao ostracismo. Essa compreensão o faria aceitar com condescendência o caráter atormentado e abusivo do artista, seu radicalismo estéril e seu egoísmo incontrolável, e não como aberrações limitantes e moralmente condenáveis do caráter. Ao não entender que a contradição é a alma do artista, sua vontade um imperativo de criatividade, e a obra uma condição do próprio artista, Johnson se coloca em um campo de distanciamento que acaba por separar o artista de sua obra. Assim, nas descrições e diálogos da psicologia da personagem, ele percebe detalhes extraordinariamente belos, mas não vê que o tumulto interior do artista age como a argila que dará forma àquela beleza. E termina condenando as incoerências das posições políticas e existenciais. Vejamos alguns casos de Johnson para voltar a esta discussão no final deste ensaio.


Rousseau (1712-1778)

Johnson faz uma dissecação do caráter e das posições de Rousseau. A inquietação de Rousseau levava-o a desconfiar do progresso gradual do Iluminismo: em vez disso, queria uma solução mais radical (p. 3).

“Como parte de sua técnica de garantir publicidade, atenção e favores, ele fazia de uma virtude positiva um dos mais repelentes vícios: a ingratidão... Enquanto professava a espontaneidade, ele era de fato um calculista; e como propagandeasse que era o mais moral dos seres humanos, seguia-se que os outros eram logicamente até mais calculistas, e por piores motivos que ele. Daí que em qualquer relação com os outros ele achava que sempre queriam tirar vantagens, e seu comportamento de homem superior era o de simplesmente superá-los. Ele só queria ganhar dos outros. Por causa de sua natureza ímpar, quem o ajudasse estava de fato fazendo um favor a si mesmo (p. 12)”

O egoísmo não tinha limites na personalidade de Rousseau, a ponto de achar que um homem de sua inteligência não poderia criar filhos. Deixando-os em um Orfanato, Rousseau se identificava com a República de Platão, onde as crianças seriam mais virtuosas se educadas e criadas pelo Estado, uma concepção fascista dos tempos antigos, totalmente repelida pela cristandade. Mas esta crueldade foi a raiz do seu totalitarismo incipiente, revelado através de sua posição a favor da educação pública.

Rousseau estando intimamente relacionado com o início do Romantismo, achava que a natureza tinha precedência na vida humana, criando aforismos que marcaram profundamente as próximas gerações, tais como ‘os frutos da terra pertencem a todos nós, e a terra mesma a ninguém’. ‘O homem nasceu livre e em toda a parte encontra-se acorrentado’.

“Rousseau queria substituir a sociedade existente por algo totalmente diferente e essencialmente igualitário; mas, feito isso, a desordem revolucionária não deveria ser permitida. Os ricos e privilegiados, com a força da ordem, seriam substituídos pelo Estado, corporificando a Vontade Geral, ao qual todos deveriam obedecer. Esta obediência tornar-se-ia instintiva e voluntária, uma vez que o Estado, por um processo sistemático de engenharia cultural, deveria inculcar a virtude em todos. O Estado era o pai, a pátria e todos seus cidadãos eram crianças do orfanato paternal (p. 24) ”.
A Vontade Geral em Rousseau era uma premonição antecipada do leninismo e sua teoria do centralismo democrático.

“Leis elaboradas pela Vontade Geral devem, por definição, ter uma autoridade moral. ‘As pessoas que fazem leis para si mesmas não podem ser injustas’. ‘A Vontade Geral está sempre correta’. Considerando que o Estado é ‘bem-intencionado’, a interpretação da Vontade Geral pode ser seguramente deixada a seus líderes uma vez que eles sabem bem que a Vontade Geral sempre favorece a decisão mais apropriada ao interesse público (p. 24) ”.

Johnson percebeu que as ideias germinativas da Vontade Geral em Rousseau seriam mais tarde substituídas pela Ditadura do Proletariado, ou por neologismos criados pelos movimentos revolucionários, e conclui:
“o Estado de Rousseau não é só autoritário: ele é também totalitário, uma vez que ele ordena todos os aspectos da atividade humana, incluindo o pensamento. Sob o Contrato Social, o indivíduo deveria alienar-se com todos os seus direitos, ao conjunto da comunidade (p. 25)”.
Esta doutrina antecipou Mussolini em 150 anos: “Tudo com o Estado, nada fora do Estado, nenhuma coisa contra o Estado”.

Em essência, a submissão do indivíduo ao Estado seria feita pela educação. O indivíduo seria a criança e o Estado o pai.

A aceitação das ideias de Rousseau provinha do fato de que ele se propagandeasse o homem mais virtuoso do seu século. Ele não seria importante se sua fama não caísse como uma luva no acontecimento histórico mais importante após a sua morte: a Revolução Francesa, que em busca de inspiração, tornou Rousseau seu herói e guia: o patrono do radicalismo do Estado de Terror.

Mas o que Johnson nos mostra através da pesquisa com diversos escritores que estudaram a vida e a personalidade de Rousseau? Diderot, seu contemporâneo e com quem conviveu durante muito tempo, considerou-o um “patife, vão como Satã, ingrato, cruel, hipócrita e cheio de malícia”. Para Voltaire, outro contemporâneo, Rousseau era “um monstro de vaidade e vileza”.


Shelley (1792 – 1822)

Foi um dos poetas que renovaram a língua inglesa no século XIX, juntamente com Byron e Keats. Shelley era um porra-louca consumado. Como Rousseau, ele estabeleceu que o propósito da virtude deveria ser compatível com a natureza.

“Seu ensaio A Defence of Poetry tornou-se a declaração mais influente da missão social da literatura desde a antiguidade (p. 28)”.

Enquanto aluno de Oxford, sua personalidade provocativa e irrequieta levou-o a escrever um panfleto em defesa do ateísmo. Para a Inglaterra vitoriana, isso foi um escândalo abominável. Não contente com suas ideias, Shelley enviou o panfleto a nada menos que as próprias autoridades universitárias, o que lhe causou a expulsão da escola e uma terrível discussão com o pai e a família. Para evitar o colapso da proteção paterna (Shelley era filho de uma família abastada), tentou conseguir o apoio de sua mãe e depois de sua irmã, mas foi rejeitado pelo seu radicalismo. Um amigo seu chamado Hunt, a quem Paul Johnson considerava desonesto, tentou persuadir o poeta que os homens de ideias avançadas como eles não tinham a necessidade moral de pagar suas dívidas: o trabalho em prol da humanidade era suficiente em si mesmo (p. 46).

Este caráter saqueador haveria de fazer sucesso no Brasil em todos os tempos, mas se tornou especialmente notável na ideologia do revolucionário, cujo espírito o predispõe a justificar erros pessoais em favor de uma grande causa. Fator determinante dos tempos modernos, essa predisposição acentuada e constante constitui uma psicopatia revolucionária. De fato, a principal característica do indivíduo que constrói em seu imaginário uma grande causa que se propõe redentora da humanidade, independentemente do nome que venha a assumir, reflete-se no relaxamento moral para com as pequenas coisas do cotidiano e nas relações pessoais mais próximas. Tudo se passa como se uma grande causa em abstrato, justificasse pequenas trapaças em concreto.

Shelley tinha esse caráter irascível de querer transformar toda a sociedade e, para isso, acabar até mesmo com a religião. Este inconformismo exasperado, entretanto, não o levou a pregar a violência. Ao contrário, durante muito tempo Shelley se mostrou simpático a ideias de não violência, uma vez que seu temperamento não era voltado para a ação. Ele não tinha o caráter revolucionário de Byron – se restringia à agitação intelectual. Teve um fim trágico na Itália. Morreu pouco antes de completar 30 anos, quando seu barco afundou próximo ao litoral de La Spezia.


Karl Marx (1818 – 1883)

Considero o principal ensaio de Johnson sobre a relação do intelectual com a personalidade abusiva. A vida pessoal de Marx foi completamente contraditória com suas postulações intelectuais. Seu ódio ao capitalismo e aos judeus tem início no seu período estudantil, quando contraiu empréstimos com juros altos, e se prolonga por toda a vida. Em Marx, a predisposição para o ódio estava intimamente relacionada com o desejo de poder. Mais que um iconoclasta, Marx queria revirar a sociedade e não mediu esforços durante toda a sua vida para a consecução deste ideal.

A primeira coisa chocante em Marx é sua desonestidade intelectual. Marx queria criar uma filosofia que fosse científica – expressão que começou a ser usada no século XIX para os fenômenos da natureza, e que Marx incorporou fraudulentamente.

“Ele e seu trabalho não eram científicos. Ele sentiu que tinha descoberto uma explicação científica para o comportamento humano na história, semelhante ao de Darwin na teoria da evolução. A noção de que o marxismo é uma ciência, de uma forma que nenhuma outra filosofia jamais poderia ser, foi implantada como uma doutrina pública nos estados que seus seguidores fundaram de tal forma que ela colore os ensinamentos de todos os assuntos em suas escolas e universidades (p. 61)”.

Mas por mais que seus seguidores chamassem suas doutrinas de científicas, elas não passavam de uma escabrosa coleção de dados destinados a ocultar a verdade. Começando com a situação da classe operária na Inglaterra. Em um ensaio assinado por Engels, Marx se associa na descrição da vida dos operários nas fábricas em 1858, com dados de 1818 (portanto 40 anos depois), e ainda anteriores a uma lei de 1823, que criava inspeções governamentais e exigia condições sanitárias adequadas no ambiente de trabalho. Sua descrição da exploração impiedosa da classe operária não era encontrada no ambiente industrial, mas em alguns setores ainda atrasados da economia, como em padarias, olarias e confecções familiares e estabelecimentos do interior.

Uma das coisas decepcionantes em Marx foi a descoberta de que ele nunca entrou em uma indústria, nunca esteve envolvido com o ambiente de trabalho e sequer se arriscou a entrar em uma mina de carvão. E trabalhando com dados estatísticos, sua atitude era completamente anti-científica para um arauto do socialismo científico. Ele simplesmente ignorava os dados que contradissessem sua teoria já formada: a de que a expansão do capitalismo seria o seu próprio fim. Marx via no aumento e concentração do capital a causa de mais pobreza que, por sua vez, levaria à revolução que iria acabar com o capitalismo. A história mostrou que ocorreu exatamente o contrário, mas não depois da morte de Marx, porém durante seu próprio tempo. Em 1860, sob o capitalismo, os operários já tinham condições de vida bem melhores do que meio século antes.

Engels havia tentado provar que as condições de vida no século XVIII eram melhores do que na revolução industrial no século XIX, quando de fato eram piores. E a revolução industrial, ao dar emprego a milhares de camponeses expulsos da terra, foi uma tábua de salvação para eles.

Autoritário, Marx desprezava as conquistas graduais dos trabalhadores, e frequentemente insultava líderes operários que mostravam as melhorias obtidas por suas reivindicações e movimentos grevistas. Foi o caso de sua discussão com Lassalle, um líder judeu importante na social-democracia alemã de seu tempo. Da mesma forma com Proudhon, a quem acusou no ‘Miséria da Filosofia’ de infantilismo e de grosseira ignorância para com a economia. Um líder alemão, que havia se transladado para os EUA, chamado Hermann Kriege, e de lá havia proposto uma reforma agrária com a distribuição de 160 acres para cada agricultor acendeu a chama da ira de Marx, que desconhecendo totalmente a situação nos EUA, denunciou que eles podiam ser recrutados na base da promessa de terra, mas uma vez que a sociedade comunista se estabelecesse, a terra seria explorada coletivamente.

Sua visão messiânica do proletariado como o redentor da humanidade, sua presunção de ter descoberto as leis da história, o destino da humanidade, fizeram-no progredir cada vez mais em seus erros. Descartando tudo o que não se adequava aos seus propósitos, ele chegou a misturar messianismo com política. Um de seus críticos, o filósofo Karl Jasper, observou:

“O estilo dos textos de Marx não é a de um investigador... ele não cita exemplos ou fatos que possam ir contra a sua teoria, mas somente aqueles que claramente suportam ou confirmam aquilo que ele considera a verdade derradeira. A abordagem geral é a de justificação, não de investigação, porém é a justificação de alguma coisa proclamada como a verdade perfeita com a convicção não de um cientista, mas de um crente (p. 62)”.

“Marx é o caso do teórico cujas motivações não são o amor pela verdade, a busca do conhecimento per se. Ao contrário, seu trabalho é consequência de sua personalidade: seu apreço pela violência, seu apetite pelo poder, sua inabilidade em lidar com o dinheiro (p. 69)”.

Seu estilo de vida boêmio, indiferente aos outros, vivendo de empréstimos nunca quitados, levou-o a uma vida familiar repleta de dissabores. Sua própria mãe chegou a recusar-se a pagar suas dívidas, reduzindo suas relações ao mínimo.
“É atribuída a ela a observação amarga de que ‘Karl deveria se preocupar mais em acumular capital em vez de apenas escrever sobre ele’ (p. 74)“.

Johnson, por fim, desmascara a maior parte dos aforismos que tornaram Marx famoso: ‘os trabalhadores não têm um país’; ‘os proletários não têm nada a perder senão seus grilhões’ (Marat); ‘a religião é o ópio do povo’ (Heine); ‘a cada um conforme suas habilidades, a todos conforme suas necessidades’ (Louis Blanc); ‘trabalhadores de todos os países, uni-vos’ (Karl Schapper); e por fim a ‘ditadura do proletariado’ (Blanqui). Mas Marx foi capaz de produzir seus próprios aforismos como: “a ideia dominante de uma época é a ideia de sua classe dominante (p. 56)”.
Porém, a sentença de Johnson sobre Marx é impiedosa: Marx falhou porque foi anti-científico. Não podendo admitir a melhoria constante como uma natureza intrínseca do capitalismo, e tendo que se condicionar à visão messiânica de seu fim, ele terminou se revelando um intelectual fraudulento.

“Se Marx, então, embora em aparência um scholar, não foi motivado pelo amor da verdade, qual teria sido sua força energizante na vida? Para descobrir isso, temos que examinar mais detidamente seu caráter. É um fato, e em alguns casos um fato melancólico, que a produção massiva do intelecto não surge dos trabalhos abstratos do cérebro e da imaginação; eles estão profundamente enraizados na personalidade. Marx é um exemplo espetacular deste princípio. Já considerei a apresentação de sua filosofia como uma amálgama de sua visão poética, sua habilidade jornalística e seu academicismo. Mas também pode ser mostrado que seu conteúdo real pode estar relacionado com quatro aspectos de seu caráter: seu gosto pela violência, seu apetite pelo poder, sua inabilidade de lidar com dinheiro e, sobretudo, sua tendência em explorar os que estivessem à sua volta (p. 70)”.

Sua ficha como homem violento foi descrita pelos estudos do jovem Marx, seu envolvimento em brigas, duelos, discussões violentas, agressões na universidade e até detenção pela polícia por porte ilegal de arma. Sua propensão para discutir e se intrigar com os outros era notória. Ele não se continha em criticar os que lhe estavam próximos até que não os tivesse dominado totalmente. O irmão de Bruno Bauer chegou a escrever um poema sobre sua personalidade: “O amigo moreno de Trier em fúria atroz / Seu punho maldito fechado, enquanto ruge interminavelmente, / Como se dez mil demônios lhe suspendessem no ar (p. 70)”.

Marx tinha a pele pálida, era baixo e robusto e usava roupas escuras e desbotadas que lhe davam um aspecto de sujo. Johnson garante que, de acordo com descrições de contemporâneos, Marx raramente tomava banho. Johnson chega ao ponto de considerar que a violência em Marx era tal, que parte de seus livros teria sido escrita em estado de fúria. E que, se tivesse tomado o poder em algum lugar, certamente teria sido um ditador cruel e implacável. Bakunin, que foi amigo por um tempo e depois terrivelmente criticado por Marx, deu sua sentença patética: “Marx não acredita em Deus, mas acredita em si mesmo e faz com que todos o sirvam. Seu coração não está cheio de amor, mas de amargura e sente muito pouca simpatia pela raça humana (p. 73)”.

Curiosamente, as relações de Marx não eram a de quem tivesse compaixão para com seus semelhantes. Uma das empregadas da família, uma camponesa chamada Helen Demuth, foi criada de sua mulher escocesa para cuidar das crianças (apenas 2 filhas sobreviveram), e amante de Marx. Em 1951, ela teve um filho de Marx que, concebido às escondidas, foi criado por outra família. Nunca se soube até que ponto Jenny (sua mulher) soube disso. Mas o fato é que Marx permitiu que o filho visitasse a mãe uma vez por semana, entrando pela porta dos fundos. Marx nunca teve relações com esse filho, e mesmo se recusou a reconhecer a paternidade. Seu nome era Freddy, e sua mãe chamada Lenchen pela família, trabalhou toda a sua vida na casa dos Marx, sem nunca ter recebido um vintém.


Ibsen (1828 – 1906)

Ibsen foi uma extraordinária personalidade que enriqueceu o teatro do século XIX e que combinava um medo profundo e uma correspondente covardia com explosões de cólera. Johnson faz um estudo de sua personalidade como poeta e dramaturgo, que obcecado pela própria vaidade, sequioso de poder e dominação sobre os outros se tornava muitas vezes ridículo ao se apresentar vestido de medalhas que colecionava, em uma Noruega provinciana para os padrões escandinavos. Ibsen tinha um cuidado maníaco com o vestir e o apresentar-se. Sua maior paixão era sentir-se superior aos outros e ser cortejado pelo mundo social. O mais importante de sua obra é a luta pela liberação da mulher, que causou sensação com a peça ‘A Casa das Bonecas’, representada até hoje. Johnson acha que o ponto central em Ibsen é o homem seguir sua própria consciência, mesmo quando ela entra em choque com as convenções sociais.

Ibsen teve uma vida juvenil boêmia. No auge da fama, resolveu afastar-se dos homens e manter-se em uma ortodoxia ao ponto de se tornar uma caricatura. Mas o paradoxal é que por trás das ideias de libertação das cadeias que prendiam os seres humanos aos preconceitos, Ibsen sustentava um total desprezo pela democracia parlamentar, pelo governo da maioria, alegando que somente as minorias deveriam governar, pois a inteligência era reservada a poucos. Contraditório ao extremo, odiava os conservadores de seu país, mas invejava o governo despótico da Rússia. Aconselhava as pessoas a nunca falar de si mesmas para os outros e a guardar seus segredos só para si.


Tolstoi

Leon Tolstoi (1828 – 1910)

Tolstoi é um caso típico da alienação do gênio e da irascibilidade como criação artística. Johnson considera Tolstoi o mais ambicioso dos intelectuais que ele examinou. Servindo no exército, ainda jovem, Tolstoi escreveu:

“devo me acostumar com a ideia de que sou uma exceção, de que tanto estou à frente da minha época ou que eu sou uma dessas naturezas inadaptáveis, incongruentes, que nunca ficará contente (p. 110)”.

A força interior de Tolstoi provinha do fato de já ter nascido um escritor. Desde sua adolescência, a observação das pessoas e da natureza lhe predizia que sua missão seria a literatura. Mas ele entrava em conflito com seu próprio talento. Em pouco tempo suas preocupações lhe dispersavam do foco principal, acabando por descaracterizar toda a sua vida. Compulsivo, perdia somas incríveis de dinheiro no jogo, pois sua obsessão fatal era a roleta. Mesmo provindo de uma família de proprietários de terra, com centenas de camponeses vivendo na servidão, sua impulsividade com as próprias ideias não o permitia pensar nas consequências dos seus atos.

Sua vida pode ser cronometrada em uma fase mais criativa, e uma senilidade prolongada e de criações secundárias, algumas beirando o ridículo. Na fase literária mais importante, na década de 1860, Tolstoi escreveu ‘Guerra e Paz’ e, na década seguinte, ‘Ana Karenina’. Nos trinta anos seguintes de sua longa vida ele fez uma grande quantidade de coisas às quais atribuía prioridade moral mais importante. Para os aristocratas de todos os tempos, o ato de escrever é algo destinado aos seus inferiores.

Tal como Byron, que nunca considerou a poesia sua tarefa mais importante, Tolstoi trocou a literatura pela profecia, e se dedicou a causas tão extravagantes como criar uma nova religião e resolver o problema social da Rússia pela educação dos camponeses. No primeiro caso, chegou a atribuir-se o papel de um novo Messias. No segundo caso, chegou a fundar 70 escolas para camponeses no qual ele próprio assumiu o papel de pedagogo e educador. Conforme o seu entusiasmo por uma atividade ocupava toda a sua mente, o desprezo pelo que tinha feito lhe parecia uma coisa natural. A um poeta amigo chegou a dizer – em uma dessas fases – que escrever histórias era uma coisa ‘estúpida e vergonhosa (p. 114)’.

Johnson considera Tolstoi um caso típico da prática do auto-engano. Querendo fazer o que não estava moralmente qualificado, ele conduziu sua família para um “deserto de confusões (p. 114)”. Tinha um padrão de personalidade que Johnson descobriu como constitutivo dos intelectuais: apego pelo bem geral da humanidade e desprezo pelos indivíduos que lhe estão próximos. Do ponto de vista sexual, sua vida foi de uma devassidão alarmante. Somente um sentimento de culpa muito forte podia fazer alguém ser devasso e profeta ao mesmo tempo, um tema que depois seria explorado por André Gide.

Johnson descreve em detalhes as pessoas com quem Tolstoi se relacionava sexualmente, pois ele guardava suas confidências em um livro de anotações. Aos 34 anos casou-se com Sonya Behrs, que tinha apenas 18 anos. Tolstoi não acreditava no casamento, apesar de acreditar na família, e no último minuto, antes da cerimônia de suas núpcias, pegou sua noiva Sonya e saiu em lua-de-mel sem ir à cerimônia. Segundo Johnson, eles tiveram um dos piores (e mais bem registrados) casamentos da história.

"É uma das características dos intelectuais acreditar que segredos, especialmente os sexuais, são danosos. Tudo deve ser ‘aberto’. A tampa deve ser descoberta em cada uma das caixas de Pandora. Marido e mulher devem revelar tudo um ao outro... Tolstoi iniciou pedindo que sua esposa lesse seus diários, que tinham anotações de quinze anos passados. Ela ficou pálida ao descobrir que ele continha detalhes de toda a sua vida sexual, incluindo visitas a bordeis e cópulas com prostitutas, ciganas, mulheres nativas, suas próprias servas, e até mesmo amigas de sua mãe (p. 119)”.

Com esse comportamento, Johnson considera Tolstoi um monstro sexual. Sonya ficou 12 vezes grávida durante 22 anos. A maior parte dos filhos morreu nos primeiros meses de vida. Mas o pior de tudo é que ele tinha considerações variáveis sobre a sexualidade. Em certo momento, ele assumia posições extremamente conservadoras sobre as mulheres, contrariando as manifestações europeias de sua época sobre a emancipação feminina. Achava que as mulheres deveriam ser impedidas de ter uma profissão. Depois achava
“impossível querer que uma mulher avaliasse os sentimentos de seu amor exclusivo na base de um sentimento moral. Ela não faz isso, porque ela não possui um sentimento moral real, isto é, aquele que se coloca acima de tudo (p. 117)”.

Entretanto, em outras passagens, justificava a prostituição como uma profissão natural de uns poucos ‘chamados honráveis’ para as mulheres:
“Devemos permitir o intercurso sexual promíscuo, como muitos ‘liberais’ sugerem? Impossível! Seria a ruína da vida familiar. Para resolver o problema, a lei do desenvolvimento criou uma ‘ponte de ouro’ na forma da prostituta. Pense apenas em Londres sem suas 70.000 prostitutas! O que seria da decência e moralidade, como a vida familiar sobreviveria sem elas? Quantas meninas e mulheres permaneceriam castas? Não, eu acredito que a prostituição é necessária para a manutenção da família (p. 118)”.

Mas, à medida que avançamos no livro Intellectuals, vamos descobrindo que por trás da escolha do método existe um Johnson que viu em Tolstoi alguém que contrariava seus próprios objetivos de vida. Enquanto Johnson se tornou um escritor de grande sucesso, pela linha conservadora de seus temas cuidadosamente selecionados para lhe garantir prestígio, e com isso adquirir proventos financeiros muito superiores para os padrões de um simples jornalista, ele encontrou em Tolstoi, o aristocrata arrependido de seu próprio talento, alguém que na sua loucura associou o ato de escrever ao dinheiro (suas novelas haviam lhe recuperado financeiramente do passado de jogatina dissipativa e da venda de suas terras) que desprezava e ao casamento que detestava. Tolstoi detestava dinheiro. Na sua velhice, desempenhava o papel de conselheiro e guia espiritual. Johnson acha que a dificuldade em lidar com dinheiro tem alguma origem no caráter contraditório e destrambelhado dos Intellectuals.

Ora, Tolstoi era um russo profundamente enraizado de misticismo, aliás, uma herança acentuada desde sempre no caráter russo. Devido a esta tradição da cultura russa, sua fama fez com que centenas de pessoas peregrinassem até a sua casa – chamada Yasnaya Polyana – na região de Tula, a 14 km da cidade, para pedir conselhos. Alguns queriam uma benção, outros milagres para suas doenças. Convencido de sua missão redentora, Tolstoi os atendia, pregava o amor e a não violência, fazendo dele uma espécie de profeta da Rússia, na virada do século. Com suas longas barbas brancas, era visto como uma esperança de libertação para os milhões de camponeses ainda em estado de servidão. Nessa fase de sua vida, Tolstoi em vez de assumir o papel de escritor e orientador, encarnou a figura de seu amado povo camponês russo. Vestiu-se e viveu como um camponês: bombeava água para a casa, cortava lenha para a cozinha, limpava os quartos com as crianças, e fazia até sapatos para elas e botas para si mesmo. Mas não sendo um homem de persistência, tempos depois abandonava tudo. Sonya reclamava de seu caráter intempestivo, descuidado, que depois de algum tempo deixava as coisas em estado pior do que antes, como ocorreu com os cavalos que comprara, que morriam por maus tratos ou se esmilinguiam pelo esforço excessivo.

Um de seus trabalhos da última fase – quando seu talento literário tinha sido carcomido pelas preocupações messiânicas – foi uma crítica que escreveu sobre a obra de Shakespeare, acusando-o de mau escritor. Muitos anos depois, em 1947, George Orwell respondeu com outro artigo, (http://en.wikipedia.org/wiki/Lear,_Tolstoy_and_the_Fool) em que contesta Tolstoi com uma lição imperdível. Para Orwell, é insuficiente dizer se um escritor é bom ou mau conforme nossos gostos, ou o gosto de uma quantidade expressiva de pessoas. O que torna um escritor “grande” é a persistência de sua obra. E se Shakespeare sobreviveu durante 3 séculos e meio como um grande dramaturgo e poeta, isto por si só já garante a qualidade de sua obra. E com esse mesmo argumento arremete contra Tolstoi dizendo que obras como Anna Karenina e Guerra e Paz certamente merecerão o mesmo destino das obras de Shakespeare, mas não o artigo em que fala injustamente contra o bardo inglês. Para ele, a humanidade haveria de esquecer Tolstoi em sua tolice. E tal veredicto realmente aconteceu. Tolstoi permaneceu com suas obras mestres e desapareceu com suas tolices. Esse tem sido o destino de muitas obras de escritores que primam pela inconstância e pelas inquietações perturbadoras.


Hemingway (1899-1961), Brecht (1898-1956), Russell (1872-1970), Sartre (1905-1980) e outros, incluindo o próprio Johnson

A importância dos escritores para Johnson é seu papel como intelectual, isto é, como alguém que influenciou as gerações na adoção de novos estilos de vida, de novos valores sociais e de contestação à tradição judaico-cristã do Ocidente. Sendo um conservador convertido, Johnson achava que esses escritores tiveram uma vida repleta de auto-engano e infelicidade, o que é altamente contestável. O fato de Sartre e Russell não aceitarem o papel da monogamia não os tornaram mais infelizes: ao contrário, todos sempre aproveitaram ao máximo o fato de seus talentos serem recompensados por um grande interesse sexual por parte das “seguidoras”.

Como conservador, Johnson contestou o viés esquerdista da dupla Russell e Sartre na criação do Tribunal de Crimes de Guerra, que visava enquadrar a política norte-americana no Vietnã como genocídio. Mas quem viveu aquela época, e o rescaldo posterior à retirada norte-americana do sudeste asiático, sabe muito bem que a sociedade americana se penitenciou por ter se envolvido com aquela guerra. O “mea culpa” foi bradado por figura não menos importante como Robert MacNamara, o então secretário de estado dos presidentes Kennedy e Johnson.

Em Hemingway, temos o alcoólatra clássico e cheio de talento, que lentamente descende no inferno da perda e da depressão. Para Johnson, ele é a prova de que a decadência humana só pode ser superada por algo que não está na arte. E qual seria esse “algo”? Johnson não deixa claro, mas entendemos que se trata dos valores morais tradicionais. Mas se tais valores fossem compartilhados pelos artistas, nenhuma arte teria sido produzida. Eis aí a questão, o divisor d’água de sempre. A arte é em essência uma produção exponenciada pelo conflito humano, pelos tormentos morais, pelas culpas e inquietações. Por isso, um escritor não pode ser avaliado por sua vida, porém apenas por sua obra. E para os desgraçados, infelizes e malditos, sua obra não é mais do que um pedido de perdão.

Na análise de Brecht, Johnson afirma que “ele nunca retribuiu a afeição de sua mãe (p. 174)”. Mas isso pode ter sido colocado para criar a atmosfera moral para a disjunção entre o indivíduo e sua obra. Em Russell, vemos o mesmo tratamento:

“certamente Russell não foi um homem que tenha adquirido a experiência significativa da vida que a maioria das pessoas levava ou que tenha tido interesse nas opiniões e sentimentos da multidão (p. 198)”.

Este tipo de argumento tem sido recorrente. Como explicado antes, Johnson distingue no intelectual a característica de pouco apreço pelas pessoas simples que lhe cercam e um grande apego pelo povo na forma abstrata. Mas a essência do intelectual é o fato de que ele transcende as preocupações do homem comum em seu cotidiano. E cotidiano por cotidiano, o intelectual também tem o seu, que sendo altamente desinteressante e enfadonho, ele se reserva o direito de não ter que amplificá-lo com o cotidiano dos outros, que lhe parece banalidades gerais.

No caso da mulher de Russel, vemos uma determinação temerária:
“Assim, Lady Constance foi descartada e Dora forçada naquilo que ela chamou de ‘vergonha e desgraça do casamento (p. 215)’”.
Para Johnson, as mulheres de grandes escritores são sempre descartadas, ou seja, o interesse sexual é difamatório e não revelado. Com isso, termina em conclusões chocantes: “a década de 60 foi uma década infantil e Russell um dos espíritos representativos dela (p. 221)”. Infantil pelo Maio de 68, por Woodstock, pelo rock-and-roll ou pela bossa-nova?! Ora, uma sociedade liberal, ao viver um clima de rebelião nos campus universitários contra a guerra, especialmente por jovens nos EUA que não queriam ser recrutados, e por estudantes na França que queriam protestar contra o “maldito” capitalismo e se insurgiram contra o Poder e em nome da imaginação, por mais que isso possa ter retrospectivamente um ar de infantilismo, não pode ser reduzido a isso. Faltou a Johnson o entendimento do “espírito da época”, tão bem dissecado pelo sociólogo norte-americano Daniel Bell.

Em Sartre, vemos o caso de um intelectual sensacionalista que criou em torno de si um mito do filósofo pensante e ativista. Johnson garimpou nas mentiras de Sartre a revelação de sua personalidade, quando afirmava que lia 300 livros por ano, logo depois de deixar a universidade. Tendo um olho meio torto e dificuldades visuais, certamente seria o caso de ler quase um livro por dia, uma impossibilidade prática em qualquer circunstância.

Sentado no Café Flore, no inverno de 42-43, Sartre escrevia diariamente seu ‘O Ser e o Nada’ (L´Être e Le Neánt). Sobre as 722 páginas do livro, Johnson pateticamente prefere citar um comentário de Simone de Beauvoir, que fala de uma passagem em que Sartre cita os “buracos em geral, e outros que enfoca o ânus e o estilo de fazer amor à italiana (p. 231)”. Para mostrar que Sartre era um tipo autoritário e perverso, Johnson fala que Simone de Beauvoir tornou-se uma escrava dele desde o momento em que o conheceu até o dia de sua morte: “nos anais da literatura existem poucos casos piores de um homem explorar uma mulher (p. 235)”, um exagero que beira a carolice, ou quem sabe, a sandice.

Finalmente, Johnson consegue falar das falácias reais de Sartre, comprovando que seu método é a conjugação do puritanismo sexual com a difamação caluniosa da vida anti-familiar. É o caso da ambiguidade de Sartre com relação à União Soviética.

Johnson não consegue entender o caráter oportunista do mundo latino, onde incontáveis intelectuais fizeram fama na sombra dos respectivos Partidos Comunistas (no Brasil, temos Jorge Amado e outros tantos), como forma de dispor de um interminável exército de resenhadores de livros à disposição de seus prestigiados talentos e de uma idiotia intelectual que servia de base de apoio e admiradores. Na psicologia do oportunismo vigente ad eternum, tudo se passa no entendimento de que uma sociedade liberal tem que necessariamente ser tolerante com seus dissidentes, enquanto uma sociedade totalitária, a recíproca não é verdadeira. Como o aparelho midiático está nas mãos ou de tolerantes ou de saqueadores, então é melhor estar do lado dos saqueadores em acordo sobre o futuro incerto, mas proclamado como inexorável, do que dos tolerantes certos sobre um futuro duvidoso. Para a mentalidade das igrejinhas, o que importa é a posição do intelectual no âmbito da generalidade e não da particularidade, onde entra seu eu individual. Por isso, Sartre é a consumação da esperteza, o que não significa que não tivesse talento, apenas que seu talento não lhe renderia tanto quanto sua postura “moral” em favor de causas altamente demagógicas, como a de posar na rua distribuindo exemplares do jornaleco maoísta La Cause du People, não por concordar com seus termos, mas como a da eterna luta em favor da “ideia da liberdade de expressão”. Sartre foi um talento literário comprovado e um filósofo de poucas ideias e muito barulho.

Johnson chega ao ponto de revelar sua predisposição ao escrever o livro: falar sobre a degradação moral de espíritos que impingiram o hedonismo na busca de mudar a sociedade, que criaram a permissividade de nosso tempo, uma deterioração moral provocada pela militância cultural de homens como Connolly, Mailer, Tynan. Neste grupo estava Fassbinder, o cineasta alemão viciado em drogas e promíscuo (p. 330). James Baldwin – o famoso escritor negro norte-americano da segunda metade do século passado –, também entrou no clima da permissividade e do ódio aprovado dos anos 50. “Quanto mais ódio ele gerava, mais subserviência recebia. Os ecos de Rousseau eram incríveis (p. 336)”.

Baldwin associou-se aos intelectuais para os quais a violência era um ato legítimo daqueles que podiam ser definidos por sua raça, classe ou pobreza, como as vítimas da iniquidade social. O tema da violência justificada é uma das melhores análises de Johnson sobre o perfil dos intelectuais, incluindo aí Marx, Sartre e Rousseau. Vale para o espírito acadêmico que ronda as universidades e propala as cotas raciais.

Por fim, a obsessão de Johnson por detalhes da vida sexual dos intelectuais surpreende o leitor. Seria um comportamento inerente ao jornalismo sensacionalista inglês? O fato é que ao descrever a controvérsia do debate entre a escritora pró-soviética Lilian Hellman e Tallulah Bankhead, uma artista de teatro que era sua inimiga por razões de ciúmes sexuais, Hellman cita em sua autobiografia Pentimento que Bankehead insistia em mostrar aos visitantes o “gigantic erect penis (p. 296)” de seu marido.

Sobre Gollancz, um editor inglês marxista sem nenhum interesse maior fora da Grã-Bretanha, teria dito que sofria do sintoma do medo de perder o uso do pênis.

“Como Rouseau, ele era obcecado pelo seu pênis, embora por razões menos aparentes. Ele constantemente pegava no membro para inspecioná-lo, para verificar se mostrava sinais de doenças venéreas ou se estava no seu devido lugar. Em seu escritório, ele efetuava esta operação diversas vezes ao dia, próximo a uma janela congelada que ele acreditava estar totalmente opaca. O elenco no teatro do outro lado da rua pontificou que não era tão opaco assim e que seus hábitos eram perturbadores (p. 276)”.

Com semelhante interesse, ficamos sabendo que Marx raramente tomava banho ou se lavava. “Isto, e mais uma dieta imprópria podem explicar a verdadeira praga das manchas inchadas que lhe atormentaram durante um quarto de século. Elas aumentaram sua irritabilidade natural, e pareciam estar em seu ponto culminante enquanto escrevia ‘O Capital’. ‘Independente do que venha a acontecer’, - escreveu ele a Engels mortificado – ‘espero que a burguesia enquanto existir tenha motivos para se lembrar dos meus carbúnculos’ (p. 73)”.

Falando de Sartre, Johnson revelou que este teria planejado toda a sua carreira durante a ocupação nazista da França, em que Sartre foi deixado em paz e inclusive permitido encenar diversas peças de teatro em Paris. Pensando um pouco mais longamente, é provável que Johnson esteja fazendo uma projeção de si mesmo, quando de sua virada conservadora. Analisando sua bibliografia, encontrei The History of the Holly Land extraviado entre meus livros de língua inglesa. Que coincidência, pensei. Trata-se de uma excelente edição ilustrada, com fotos de lugares históricos e mapas da Terra Santa. Sabendo enfim quem era Johnson, procurei inutilmente alguma referência ao costume de tomar banho de Jesus, ou alguma descoberta especial sobre a vida sexual de Maria Madalena. Nadica de nada. Johnson, como se pode concluir, estava escrevendo para outra plateia, muito bem planejada.

E, ao ler seu perfil na Wikipédia, pude finalmente ter uma ideia de Johnson como uma personagem de seu próprio livro. Para surpresa dos leitores, ficamos sabendo que era casado, teve 4 filhos e uma amante durante onze anos, a escritora Gloria Stewart. Ao se separarem, a amante, que já conhecia as posições de Johnson sobre a família e a moral, reagiu como toda mulher abandonada: revelou seu caso e não esperou o troco. “Paul adorava levar palmadas e isso era uma parte importante do nosso relacionamento. Eu tinha que dizer que ele era um menino malcriado”. Em uma entrevista a Elizabeth Griece do The Telegraph (http://www.telegraph.co.uk/lifestyle/7800902/Paul-Johnson-After-70-you-begin-to-mellow.html), ao ser questionado sobre o fim do seu relacionamento com Gloria Stewart, Johnson saiu-se com essa pérola do infatigável estilo dos intelectuais: “Se você adquire fama é o tipo de coisa que pode acontecer. Você simplesmente esquece, tira da cabeça. É o que Shakespeare chamava de o lado sombrio, abismal e retrógrado do passado (the dark backward and abysm of the past)”. Nenhum dos intelectuais detestados e biografados por Johnson responderia melhor.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Terra Catarinense

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo

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Crispim Mira

Há muito tempo, intelectuais com raízes na história do Brasil reclamam do esquecimento a que foi relegado o jornalista Crispim Mira.
O lançamento em 1920 do “Terra Catarinense” de Crispim Mira teve excelente acolhida de um dos mais instigantes intelectuais brasileiros de todos os tempos – Monteiro Lobato dedicou dois artigos ao “Terra Catarinense”, depois reunidos em seu livro “A Onda Verde e o Presidente Negro”.

Não é comum que alguém dedique 2 artigos elogiosos a um mesmo livro. Na verdade, Lobato estava impressionado com o estilo literário de Crispim Mira muito mais do que com a finalidade do “Terra Catarinense” – apresentar Santa Catarina no VI Congresso Brasileiro de Geografia que se realizaria naquele ano em Belo Horizonte.

No livro, Crispim Mira reuniu seu talento jornalístico com o conhecimento social, econômico, histórico e geográfico da formação dos municípios e povoados catarinenses, com os fatos mais importantes da política e cultura da época, apresentando um Estado pouco conhecido ou apenas falado como referência geográfica naqueles tempos. Crispim Mira mistura a geografia humana com a política, a paixão catarinense por passarinhos com a guerra do Contestado, as tradições folclóricas com as aflições causadas pelas enchentes, a tal ponto que ao descrever uma paisagem envereda na descrição dos homens que ali transitam ou habitam, mesclando o estudo formal com uma prosa literária de “causos” e estórias de vaquejadas, tropeiros, e de hábitos familiares e aspectos da vida privada catarinense.

Nascido em Joinville em 1880, já na virada do século iniciava sua carreira jornalística na Gazeta de Joinville. Em 1901, vai para o Rio de Janeiro estudar Direito. Não termina o curso e retorna para Joinville onde funda o Jornal do Povo em 1905. Em 1908 é convidado para o cargo de redator da Gazeta Catharinense do amigo e senador Hercílio Luz, em Florianópolis. Em 1909, funda a Folha do Commercio e seu jornalismo adquire plena maturidade pela independência de suas posições e distanciamento crítico entre as atividades pública e privada na sociedade catarinense, conferindo-lhe reputação e respeito. Em 1918 volta a trabalhar como redator do Jornal República do seu velho amigo Hercílio Luz – agora governador de Santa Catarina. Em 1924, de volta à terra natal, assume a função de advogado provisionado e colabora com os jornais locais e, em 1926, retorna a Florianópolis onde funda seu último jornal, o Folha Nova.

Por haver denunciado os desvios de verbas federais no porto de Florianópolis, Crispim Mira foi assassinado em 1927 em um crime político, em que seus réus confessos foram absolvidos, deixando uma obra quase esquecida até mesmo para seus conterrâneos.


sexta-feira, 24 de junho de 2011

O País dos Coitadinhos

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo

Um país de coitados

Lançado em 1967, este impressionante libelo contra o retrocesso demonstra que o nosso subdesenvolvimento se configura dentro de um modelo que concilia estatismo e sistema eleitoral, com as diversas ideias arquetípicas de bondades expressas na ideologia do coitadismo, pano de fundo das bondades eleitoreiras e dos déficits financeiros astronômicos.

Emil FARHAT viveu inicialmente como jornalista político no RJ, onde trabalhou durante 8 anos para ‘O Jornal e Diário da Noite’, mais tarde tornou-se publicitário, até aposentar-se e voltar ao jornalismo em São Paulo. Teve passagens pela literatura escrevendo 2 novelas e se transformou em um analista social por força das convicções e da responsabilidade perante os destinos do país na conturbada segunda metade do século XX. No final dos anos 40, foi um dos introdutores do célebre ‘Repórter Esso’ no Brasil. Descendente de libaneses que se estabeleceram na zona da mata mineira, escreveu a saga desses imigrantes espalhados pelo Brasil como caixeiros-viajantes no livro ‘Dinheiro na Estrada’. Formado em Direito, nunca advogou, subindo às instâncias hierárquicas da McCann-Ericsson até se tornar presidente da filial brasileira. Foi articulista e chefe do escritório paulista do jornal ‘O Globo’ durante os últimos 11 anos de carreira. Convidado por Roberto Marinho a assumir a TV Globo no Rio, recusou o cargo por discordar do governador Brizola. Em suas memórias fala dos anos de estudante de Direito no Rio, durante a ditadura do Estado Novo, e como jornalista de ‘O Jornal e Diário de Notícias’, ambos de Assis Chateaubriand. Para quem estuda essa época, os nomes da intelectualidade carioca e da política nacional estão todos em seu livro ‘Memória Ouvidas e Vividas’ (FARHAT, 1999, 300 p., Scrinium Ed.).

Sua breve militância política ocorreu na redação de um jornal de oposição, quando participou do movimento chamado Esquerda Democrática, que pretendia eleger José Américo de Almeida para a presidência da República em 1938, sendo ele um dos oradores do famoso comício de Niterói, poucos dias antes do golpe de 10 de novembro de 1937. No prefácio do seu livro ‘País dos Coitadinhos’ (FARHAT, 1968, Cia. Editora Nacional, p.2) conta que:

“Longos e intensos anos de estudos, nas colunas impressas e no ‘underground’, e uma constante convivência com a liderança intelectual, política e empresarial do país, foram colocando nas mãos de um interessado analista social uma variegada e fervilhante colheita de observações e conhecimentos – a qual seria mais do que imperdoável deixar de transmitir a todos que se preocupam com os destinos do Brasil”.


O ‘País dos Coitadinhos’ representa assim uma visão de Brasil que não serve para os políticos, estatistas, nacionalistas, sindicalistas, comunistas e aqueles empresários que se revezam na sucção do inebriante dinheiro do empreendedorismo de cartas marcadas que cerca as instâncias governamentais. Enfim, um livro maldito, daí seu completo obscurecimento nos círculos acadêmicos. Lendo suas páginas, somos tocados imediatamente pela linguagem rebuscada, pelas metáforas brilhantes, pela utilização recorrente de todo o campo semântico de uma ideia, recurso ademais comum no campo publicitário, mas extremamente raro em nossos intelectuais independentes, salvo nosso barroco-mor: Euclides da Cunha.

“Por cinco anos a fio, o autor dessas páginas foi fazendo uma paciente decantação do que supunha seria material para um livro. E há quatro anos, quando as nuvens enegreceram dantescamente, armando todo o prelúdio do que se imaginava seria outra ‘tragédia espanhola’ — uma guerra civil prolongada e sem quartel — pusemo-nos a elaborar este trabalho. E o fazíamos, às vezes, com sofreguidão e a emoção de quem temia que talvez isto viesse a ser, mais tarde, apenas um dos muitos documentos retrospectivos e retardatários, encontrados sob os escombros do que fora durante tantas décadas o prometido ‘país do futuro’ “ (FARHAT, 1968, p. 2).

As novas gerações — que não conheceram os dilemas dos anos 60, pouco ou nada sabem dos fatos pitorescos dessa época relacionados não apenas ao sistema político que descambou no golpe de 64, mas sobretudo ao que se passava no tecido social brasileiro. Se um jovem se perguntar em 2010, por que razão não temos trens como na Europa, por que cargas d’água não se pode colocar um carro em um navio no Porto de Santos e desembarcar motorizado em Salvador ou Florianópolis, certamente vai encontrar as respostas em ‘O País dos Coitadinhos’. E mais: não são respostas triviais, não se trata de análise panfletária ou denuncista. Ledo engano. FARHAT trata de articular todas as informações recolhidas em um apanhado da grande tragédia nacional: o sindicalismo direcionado para a política, o estatismo garantidor de privilégios, a progressão de déficits e, por fim, o sucateamento de ferrovias e portos estatizados para delírio dos empregados e maldição do povo e da nação.


Assim FARHAT tece uma crônica dos fatos, analisa um banco de dados para ir dali extraindo os ensinamentos que o sistema vai apresentando dessa realidade imarcescível que é o subdesenvolvimento programado.

“Quem folhear o ‘Diário do Congresso’ verá, estarrecido, a corrida em que deputados dos mais variados matizes se acotovelam na oferta das mais mirabolantes vantagens, concessões, direitos, privilégios, ‘defesas’ e ‘arranjos’ para grupos, classes ou grupelhos ‘especializados’ de ‘trabalhadores’ ou ‘funcionários’. A disputa para ver quem é mais ‘generoso’, à custa do resto da Nação, chegou a tal ponto que ficou humorística a reivindicação de paternidade do ‘13º salário’: — segundo um cronista parlamentar, nada menos do que 15 deputados e senadores se disseram ‘pai da ideia’, não respeitando nem mesmo a hegemonia exercida pelo latifúndio político, ‘por direito de herança’, pelo próprio Sr. João Goulart...

Deputados querem ser senadores... senadores que querem ser ministros... ministros que querem ser presidentes, ou governadores ... dirigentes de institutos ou de bancos oficiais que querem ser deputados... vão distribuindo à mão-cheia privilégios, concessões, ‘vantagens’, reivindicações, cargos e sinecuras, porque tudo isto cairá nas costas de um imenso, vago e indefinido burro-de-carga que é o povo.

Certo tipo de juízes, agindo em função do bom-mocismo ou do terror intelectual habilmente lançado pelos comunistas, assume, através de sentenças sistemáticas, a posição ‘filosófica’ de que a legislação trabalhista tem como finalidade única proteger o ‘coitadinho’: o ‘coitadinho’ do incapaz, o ‘coitadinho’ do desleixado, o ‘coitadinho’ do empregado desleal com a empresa que lhe dá trabalho, e o ‘coitadinho’ que fez apenas pequenas e tímidas desonestidades....” (FARHAT, 1968, p. 11-12).

E cita alguns exemplos desse festival de besteiras da justiça trabalhista como, por exemplo, o magistrado que sentenciou favoravelmente o empregado relapso que “tendo seus atrasos tolerados ingenuamente pela empresa, exigiu que aquele fosse considerado o ‘seu’ especial horário de chegada...” (p.13), em contraposição aos demais empregados pontuais.


Essa série sucessiva de acintes contra o bom-senso e contra a coletividade daria para escrever um livro por ano somente garimpando os processos que tramitam nas varas sebentas da Justiça do Trabalho. E continua FARHAT:

“O que é preciso é que as novas gerações entendam e compreendam que jamais nação alguma cresceu pelas mãos dos ‘estadistas’ do jeito, e dos governantes que não tomam decisões mas contornam com manobras, preocupados que sempre vivem com os índices de sua popularidade e com sua cotação eleitoral. Uma grande nação se governa muito mais com ‘NÃOS’ solenes, duros e corajosos, do que com ‘SIMS’ hábeis, frouxos, melífluos, espertos e sobretudo irresponsáveis. Guardem os moços o seu coração para amar o Brasil COM TODOS OS DEVERES QUE ISTO NOS IMPLICA, e não pelos direitos que isso nos possa assegurar. E, sobretudo, é preciso que nos previnamos contra o bom-mocismo nas funções públicas.

Não devem merecer senão repulsa e repugnância aqueles ‘líderes’ que fazem do patrimônio nacional e do bem-estar do povo o almoxarifado das ‘suas’ concessões e dos ‘seus’ presentes às castas amigas e aos correligionários. Na verdade, esses não são líderes, nem comandantes; são os ‘garçons’ da República, dispostos a ‘servir’ a Pátria em bandejas às suas vorazes clientelas eleitorais, as mesmas que fabricam ‘déficits’ astronômicos, mas, às vezes, levam ao poder... “ (p. 13).

“O Brasil não é para ser dado a ninguém, nem de FORA, nem de DENTRO. O fato de ter sido nascido nesta terra não confere a ninguém o direito de parasitar seu povo, seja desfrutando a moleza IMPATRIÓTICA das sinecuras improdutivas ou dos cargos indevidamente super-remunerados, seja usurpando favores e ‘direitos’ abusivos que atentam contra o bem comum ou contra as possibilidades de progresso do país” (p. 14).

Uma nação deve dar assistência, mas não direitos à incapacidade. Deve amparar doentes, mas não premiar ociosos resmunguentos, nem torná-los razão de suas leis, padrão de méritos públicos e limite das ambições cívicas ou econômicas.... É preciso dar um ‘Basta!’ ao ‘coitadismo’ na vida pública, ou então este país gigantesco, que o mundo já começa a apontar ironicamente como sendo ‘apenas o país do futuro...’ jamais se erguerá além do afundado subnível econômico-social das cubatas africanas, ou da desoladora paisagem de mentes ocas e bocas vazias das polêmicas meramente geodemográficas...

Não é admissível que o nhem-nhem-nhem do ‘coitadismo’ continue a ditar a essência da jurisprudência e do espírito das leis sociais brasileiras num convite oficial ao amolecimento nacional, ao imobilismo geral, ao caradurismo total, ao mais inerme e boçal parasitismo...” (FARHAT, 1968, p. 15-16).

Com esse chamamento moral Emil FARHAT continua a dissertar sobre as incongruências da nossa realidade dos anos 60. Realidade pervasiva, que se encontra enraizada na estrutura política, no modelo de estado, na burocracia e no sistema sindical, jurídico, educacional e por aí afora. Dessa raiz nasce a planta venenosa que se agarra no tronco da nação e suga-lhe a seiva, desmoraliza o trabalho diligente, favorece o cinismo dos aproveitadores, irriga o oportunismo e constrange toda a honradez e dignidade dos milhões de trabalhadores do país.

É o mais impressionante libelo contra a pieguice, a condescendência, o festival de reivindicações sem limites, de capitulacionismo e de tudo o que pode representar dos estados mentais de uma coletividade enfermiça pela anarquia e descompostura intelectual, que ressuscita nos dias atuais e já repete o mesmo ritual dos anos 60.

O objetivo de FARHAT é combater o grande mito dos anos 60 chamado de ‘Reformas de Base’. Através de um elenco de generalidades, a grande frente constituída pelo trabalhismo, sindicalismo pelego, comunistas e nacionalistas de todos os matizes, propugnava um programa que incluía reforma agrária, reforma urbana, reforma educacional e assim por diante. A princípio não havia nada a obstar, mas olhando-se mais detidamente, começaram a aparecer os problemas: o primeiro era a pergunta fatal: mas olha aqui, se esta gente que está proclamando isso é a mesma que está há 30 anos no poder, por que não fizeram nada?


A primeira reforma de base: a reforma do mar

FARHAT começa mostrando que a primeira reforma feita no país foi a reforma do mar, realizada na década de 20 pela divisão do mar brasileiro entre os 100 mil pescadores. A situação era a seguinte: os barcos portugueses, melhor equipados e com muito mais tradição em pesca, entravam nas piscosas águas brasileiras, enchiam seus barcos e se mandavam para Portugal, fazendo o que bem entendiam em uma terra-de-ninguém. Para remediar esta situação, o governo Epitácio Pessoa reagiu drasticamente, exigindo que os nossos mares fossem reservados somente aos naturalizados. Mas naturalização de empresas e não de pessoas, isto é, os portugueses poderiam pescar, mas tinham que ter suas empresas registradas e com sede própria no país. Mas a demagogia xenofóbica que se desenvolveu de norte a sul logo tratou de hostilizar os portugueses tratando-os de sugadores, espoliadores, polvos anfíbios, etc. Como os nossos pescadores ainda estavam na fase da jangada, a expulsão dos portugueses ocasionou o colapso do fornecimento de pescado para os nossos mercados. O tiro saiu pela culatra.

Ora, um país precisa entender que o capital estrangeiro, mesmo o representado pelos barcos portugueses, quando associado com a ‘expertise’ que lhe é implícita não pode ser simplesmente banido sob pena de criar sérios problemas no mercado: ao contrário, deve ser convidado a investir no país e com isso contribuir para o progresso e desenvolvimento, sempre com o Estado tendo o cuidado para evitar o monopólio e incentivar a produção nacional para o máximo de competitividade, que é a racionalidade exigível para o equilíbrio econômico dentro do capitalismo. Mas uma sociedade atrasada, como a brasileira, os propósitos de Epitácio Pessoa logo foram desencaminhados por Arthur Bernardes, seu sucessor, que em vez de nacionalizar os barcos, exigiu a nacionalização das pessoas.

Transformados em espoliadores pelo discurso demagógico, o peixe dos portugueses sumiu da mesa do pobre e começou a ser ofertado a preço de ouro e o Brasil tornou-se irrelevante como país de pesca, tendo nada menos que 9 mil km de litoral. A comparação com outros países era humilhante, especialmente com Argentina e Peru. Para se ter uma ideia, nossas jangadas e barcos eram tão irrelevantes, ficaram tão para trás no processo de pesca, que o Brasil nem sequer se apresentou em 1967 na Comissão Interamericana de Atum Tropical ocorrida no México. Isso depois que diversas missões oceanográficas estrangeiras estiveram nas nossas costas confirmando a existência de extraordinários cardumes de diversos tipos de peixes, principalmente no litoral sul do Brasil.

Essa crise do início do século foi depois contornada pela natural lei da oferta e procura, mas nos anos 60 volta a entrar em colapso com a legislação trabalhista marítima, um dos pontos do livro de Emil FARHAT. Um dos colapsos do Brasil, que os historiadores não costumam dar importância, mas que é o núcleo do livro ‘O País dos Coitadinhos’, explica por que os transportes brasileiros naufragaram sob o peso de um sindicalismo selvagem. A legislação trabalhista marítima havia criado obrigatoriedade na composição das forças de trabalho das embarcações. Para se ter uma ideia do aumento dos custos de mão de obra de todos os serviços marítimos, considere a compra de um rebocador de bandeira holandesa, efetuada pela capitania de uma empresa do RS. Da Holanda para o Brasil, o rebocador (que iria trabalhar nas águas do Rio Jacuí) utilizava uma tripulação de 5 homens. Ao chegar no Brasil passou, obrigatoriamente, a operar em um rio com 14 tripulantes — por força da legislação.

Essa reviravolta, sob a suposta alegação de proteger a mão-de-obra, fragilizou até mesmo os pequenos e frágeis barcos de pescadores do nosso litoral. E Emil FARHAT traça o quadro dos “enxadeiros” do mar, nossos rudimentares e neolíticos pescadores, vivendo em um mundo de grandes empreendedores e companhias de pesca, com produção anual de milhares de toneladas de pescado, enquanto a nossa não passava de uma quantidade irrisória, para um país com um litoral dos mais piscosos do mundo. O resultado? O Brasil teve de importar 16 milhões de dólares de pescado em 1961 e 20 milhões de dólares em 1963. Naturalmente que não era um peixe barato...

A adoção de políticas demagógicas cujo resultado é o regressismo tem um ponto fundamental como corolário de não ter dado certo. Ela exaspera ainda mais seus defensores na busca de bodes expiatórios nem sempre materializados nas figuras sociais específicas, mas na generalidade de ‘elites’, ‘classes dominantes’, ‘tubarões’, ‘obsoletas estruturas arcaicas’, etc. Se uma política econômica conduz à inflação, os postulantes da tragédia ocupam as tribunas para vociferar contra os ‘remarcadores’ de preços; se a política econômica conduz ao desemprego, os mesmos implementadores da política passam a esbravejar contra a ‘insensibilidade moral’ dos empresários ou qualquer coisa do gênero.

O que está no cerne desse desastre concessionista e demagógico não é o desejo de aprimoramento, não é a falta de vontade de aperfeiçoamento e de melhoria na qualidade de vida da população como enfatiza o autor:

“Essa melhoria não vem jamais por ‘doação’, ‘decreto’ ou ‘outorga’ de nenhum taumaturgo liliputiano e pretensioso – para quem a ação política ou a arte de governar eram apenas uma série sensaborona de escamoteações e manhas de astúcias, e de golpes de ‘esperteza’. A geração que era adulta durante as décadas de 30 e 40 sabe disso; sabe que foi o marasmo, a lerdeza, a lentidão do desenvolvimento econômico-social sob os quinze anos da ditadura e do Estado Novo, apesar dos 8.148 decretos-leis com cuja assinatura o ditador ‘decretava’ um progresso que não vinha, e uma prosperidade que o seu papelório estéril não gerava” (FARHAT, 1968, p. 86-87).

A compreensão que só o trabalho perseverante produz, que só a produção rentável remunera, que só a eficiência prospera, faz parte do amadurecimento político de uma nação, cujos fundamentos precisam estar assentados em uma luta contínua contra as iniquidades do Estado, e que portanto faz parte do processo educativo dos povos livres, das pessoas que possuem um conhecimento básico de economia para que se possa ter sentido o velho slogan ‘estamos vivendo num mundo dinâmico e em transformação’. Enquanto a mão generosa do Estado tudo pode resolver, enquanto a ‘vontade’ política do governo for a senha para solucionar todos os dilemas sociais, estamos condenados ao retrocesso, seremos sempre aquela sociedade que dá dois passos à frente e um para trás. Ano seguinte 5 passos à frente comemorados com grande fogueteio, para ano depois dar 3 passos para trás.


O deliberado descarrilamento geral dos nossos sistemas básicos de transporte

“... Nunca se viu orgia maior com leis de favor para certos grupos de trabalhadores, que chegaram a ser os mais bem pagos do mundo em seus ramos. A loucura chegou a tal ponto que o déficit anual, só com os ferroviários, seria, em 1964, da ordem de 420 bilhões de cruzeiros (R$6,1 bilhões em 25/6/2010); em 1965 alcançaria 620 bilhões de cruzeiros (R$ 9 bilhões) e, em 1966, ultrapassaria 1 trilhão de cruzeiros (>14,5 bilhões de reais– www.calculoexato.com.br considerando o índice IGP-DI). E isto, só com os ferroviários, só com a Rede Ferroviária Federal, que compreende 21 ferrovias. São todas deficitárias, com despesa de 5, 10, 15 e até 30 vezes maior do que a receita” (Relatório do Ministro da Viação Juarez Távora, O Globo 29/1/1965, p.95).

Vamos abordar o trabalhismo em 2 casos que merecem consideração do leitor: as legislações trabalhistas dos portuários e a dos ferroviários. Essas legislações específicas criaram um sistema de ganhos extraordinários através de um complicado método de atribuição de tarefas. Havia vantagens de todo tipo, mais o empreguismo que fazia com que desde o departamento de pessoal de uma companhia de navegação ou ferroviária até a tripulação do navio ou trem estivesse abarrotada de gente por força da legislação trabalhista específica. A proporção era estratosférica: um departamento de pessoal, que necessitasse de 20 funcionários, abrigava 200. Uma única empresa tinha 7300 funcionários – só na burocracia.

No Lloyd e na Costeira estatizados, o problema do inchamento da máquina ocorre em paralelo com seu desmantelamento. Enquanto aumentam exponencialmente as despesas com pessoal, diminuem avassaladoramente as receitas com a operação do serviço pelo encarangamento da atividade, obsolescência de manutenção, conduzindo à quebra de equipamentos e interrupção de serviços, aumentando os déficits financeiros e impossibilitando a confiança mútua entre empregados e a adoção de práticas sadias de trabalho e dedicação. Nesse ambiente, formam-se camorras especializadas no peculato e na falsificação de horas extras, defeitos técnicos, greves relâmpagos, reivindicações estapafúrdias e assim por diante, com alta ressonância favorável no sistema político eleitoreiro, mas uma desordem generalizada no ambiente de trabalho.

No disputado processo político dos anos 60, como consequência da pervasiva inflação apontada atrás, que cobrava de todos os brasileiros a fatura da insanidade da construção de Brasília, um velho elemento veio a ser turbinado na trajetória político-institucional de forma nunca vista anteriormente: a demagogia eleitoral calcada em promessas de benefícios salariais no vendaval das reivindicações pela recuperação salarial.

Eram mobilizações legítimas sendo impulsionadas por pretensões absurdas que lançadas nos vapores esbravejantes da irresponsabilidade, se condensaram no líquido viscoso e pútrido da iniquidade. Aproveitando os anseios legítimos, a grande frente única do regressismo nacional mirou seu canhão de chumbo grosso no sistema de transportes estatizado e dali conseguiu a mais extraordinária e brutal privilegiatura de que se tem notícia na história do mundo: um sistema de benefícios e vantagens para ferroviários e estivadores que afundou o país em uma crise até hoje (2010) ainda não totalmente solucionada. Eis o que nos conta Emil FARHAT (1967, p. 97- 98):

Quando pelas alturas de 1960, a leviandade e a irresponsabilidade ofereciam céu cada vez mais livre para as aves de carniça e campo ainda mais propício ao farejar necrófilo das hienas — despencavam-se sobre as ferrovias mais “recomendados” que passageiros, choviam sobre os navios muito mais “candidatos” do que cargas, e no cais se acostavam mais protegidos e “conferentes” do que mercadorias e minérios.

As ferrovias, as empresas de navegação e os portos pareciam monstruosidades intumescidos, imensos cabides já sem mais ganchos e lugares para pendurar tantos bonés de afilhados – que vinham mensalmente em legiões novas, na mobilização nervosa dos que então já pensavam na sua milícia de foguistas de bordo, no seu exército de moços-de-convés, nos seus esquadrões de “conferentes-pipi” para a tomada do poder. Pela malícia ou pela violência.”

Estatizou-se a Companhia de Navegação Costeira, que formava, com o Lloyd Brasileiro, o maior conjunto mundial de marítimos sem navios ... quando o país abriu os olhos, cada bigorna tinha quatro ferreiros e cada vagão quatro condutores; em cada navio mercante brasileiro, quatro marinheiros descascavam a mesma batata ..., e em cada metro de cais, quatro ‘especialidades’ de conferentes espiavam o mesmo saco carregado por quatro estivadores”.

O Brasil chegara à década de 60 com apenas 40 km de cais na soma de todos os seus portos, isto é, dos 262 atracadouros acostáveis do país. Na mesma época, só o porto de Hamburgo tinha 30 km, Londres 80 km. Nova York tinha 170 km de cais acostável e 3.500 funcionários no porto. O Rio de Janeiro (só com 7 km de cais acostável) tinha cerca de 8 mil funcionários.

Quem visita o museu da Companhia de Navegação Costeira no porto de São Francisco do Sul (SC), depara-se com uma empresa fundada em 1882 por integrantes da família Lage que foi responsável por boa parte do desenvolvimento do Brasil até 1966, quando foi estatizada e incorporada ao Lloyd. Mas nada mais se fala sobre o colapso da marinha mercante brasileira. No entanto, Emil FARHAT deixa clara a causa do colapso tão zelosamente escondido dos brasileiros naquilo que, não obstante ter sido um fato escandaloso, conseguiu se transmudar no conjunto do Brasil que ‘não se vê’ por arte de nossos estudiosos acadêmicos:

Enquanto um navio carvoeiro inglês ou norueguês ou belga ou liberiano, de aproximadamente 5 mil toneladas, tem 29 homens na tripulação, os nossos com a mesma tonelagem e para a mesma finalidade têm cerca de 80.

...Quando em setembro de 1963, o novíssimo mercante do Patrimônio Nacional ‘Ana Nery’ se chocou com um petroleiro da Petrobras à entrada da Guanabara, nenhum jornal se deu ao trabalho de comentar ou estranhar este escândalo técnico, também de proporções mundiais: fretado para levar 70 turistas a Israel, o reluzente ‘Ana Nery’ o fazia graças aos ‘exaustivos esforços’ de 230 tripulantes!...

Quando o leitor vir, no porto de Belém ou de Manaus, um bojudo “motor”, desses que sulcam os igarapés da Amazônia, puxando, como se fora um sobressalente, um pequeno barco em que vão alguns homens, fique desde logo sabendo que aqueles cavalheiros rebocados são os excedentes da tripulação legal, e ali vão espiando os outros trabalharem, porque a lei ‘manda’ que haja aquele excesso, que o próprio barco-motriz não comporta” (FARHAT, 1968, p. 98-99).

No tocante à navegação fluvial, em um relatório apresentado pelo presidente da Comissão da Marinha Mercante em 1965, o comandante Fernando Frota, indicava de modo dramático:

“Todas as empresas se acham em estado de decomposição” (p. 107), referindo-se ao “Serviço da Bacia do Prata”, ao “Serviço de Navegação da Amazônia e de Administração do Porto do Pará (SNAPP), à ‘Companhia do São Francisco´ e à “Navegação Bahiana”.

Os 34 mil km de rios brasileiros navegáveis encontravam-se paralisados porque o serviço não podia atender às exigências legais da “tripulação de lei”. Até mesmo uma piroga tinha que se enquadrar na legislação marítima. As consequências disso logo vieram à tona: os navios que deixavam os portos totalmente carregados passaram a viajar com 50% da carga. Uma viagem de Porto Alegre a Belém retardou-se para 5 meses, enquanto que de Porto Alegre à Austrália ou ao Japão apenas 2 meses. Em pouco tempo, o sal do Rio Grande do Norte faltava no RS, e o rebanho bovino começou a minguar por falta de sal. O desaparecimento de cargas por roubo no cais começou a se transformar em uma endemia. Flagrados alguns conferentes roubando cargas nos armazéns do cais de Porto Alegre, não puderam ser despedidos porque a legislação não permitia. O transporte de arroz passou a ser feito por rodovia, porque para ser feito via cabotagem teria que esperar até 6 meses. Desde então, continua sendo feito por rodovia. Nossa navegação de cabotagem não se restabeleceu jamais apesar das inúmeras gerações de políticos que se sucederam no país. E a razão é muito simples: não houve alterações na legislação trabalhista, um código tão arcaico que faria os chineses ter um ataque de riso (ou de raiva) se soubessem o que ela representa na proteção ao mau caráter do picareta travestido de trabalhador brasileiro e na frustração ao empreendedor.

As empresas privadas de navegação tinham que repassar as taxas portuárias e os altos salários da estiva. Logo as cargas começaram a rarear. E não eram poucas as empresas de navegação. No RS havia a Rio-Grandense, que foi a última a entrar em liquidação por não ter mais condições de operar. Havia uma empresa para transporte de mercadorias entre as quais o vinho da Serra Gaúcha para São Paulo, Rio, Salvador, etc. Seu último navio, chamado Navesul, ficou parado, longo tempo à venda, sem compradores. A empresa fechou porque ninguém podia transportar mercadorias devido às altas taxas portuárias. Era mais barato enviar por via rodoviária e até por avião do que pelos portos.

Por toda a parte o que se via eram navios parados esperando carga. E como empresa parada não fatura, a Casemiro Filho, do Ceará, teve que fechar as portas. Ofereceu aos seus portuários os próprios navios como indenização: eles recusaram. “O que vamos fazer com navios, disseram eles: não há carga” (p. 111).

Para se ter uma ideia comparativa de salários no final de 1963, em Macau no RN, porto de salinas por onde o sal era embarcado pelos barqueiros que pelo rio Açu levavam o sal até os navios, os estivadores tinham um salário de 500 mil cruzeiros (R$14.300,00 pelo IGP-DI), enquanto o salário mínimo da região era Cr$14.700,00 (R$421,18 pelo IGP-DI). Os salários de autoridades locais eram: prefeito (Cr$42 mil = R$1.205,00); juiz de direito (Cr$40.000,00 = R$1.147,00); professora primária (Cr$6.500,00 = R$186,54), com índices atualizados pelo IGP-DI do site www.calculoexato.com.br para maio/2010.

A consequência foi a desmontagem dos navios um depois de outro. Até navios frigoríficos foram sucateados por falta de carga. Os únicos navios que saíam dos portos eram os de bandeira estrangeira, que não precisavam se submeter à legislação trabalhista marítima. Foi um grande apoio que nosso sistema político populista concedeu às empresas de navegação no exterior. Ou seja, o desmonte do país sob a veia crispada da demagogia populista e que todos os livros de história se esmeram em ocultar, zelosos que são do oficialismo, do partidarismo único e pervasivo: a atribuição dos problemas brasileiros às ‘elites’ ou qualquer outra denominação pomposa de nosso disfarcismo alucinante.


Ferrovias

No caso das ferrovias, o número de pessoas empregadas em 1964 daria para atender o triplo de quilometragem de vias férreas existentes, e capazes de transportar uma tonelagem de mercadorias “algumas dezenas de vezes maior que a que carregam” (p. 99).

Quando o governo militar resolve estatizar toda a rede ferroviária, criando um único ente chamado Rede Ferroviária Federal, o resultado foi imediato:

24 horas depois de sair das mãos de particulares, que eram capitalistas nativos, de quatrocentos anos... – empresários particulares que a tornaram uma das mais perfeitas ferrovias do mundo – a Companhia Paulista de Estradas de Ferro começou a dar um ‘déficit’ que, ao fim dos doze primeiros meses, já atingira 600 milhões de cruzeiros velhos!...” (FARHAT, 1968, p. 100).

O caso dos déficits das ferrovias era de tal monta que o então ministro do Planejamento Roberto Campos chegou a afirmar que havia casos que se o transporte fosse gratuito, a ferrovia daria menos prejuízo, já que não haveria despesas com a impressão de bilhetes, nem com o pagamento de funcionários que os vendiam ou recolhiam. Mas ocorre que a estatização da Companhia Paulista foi feita pelo regime militar e colocada no mesmo bolo das inúmeras ferrovias estaduais deficitárias. Como explicar essa terrível mancada dos militares sem inclui-los como problema na mesma nação do estatismo furioso e desembestado que tomou conta do país, com a criação, uma década mais tarde, de 290 empresas estatais na maior orgia de estatização pela qual passou o país.

A Rede Ferroviária mais famosa por sua inoperância, por seu inchaço de funcionários e por ser alvo de críticas desde os primórdios do século XX, foi a Estrada de Ferro Central do Brasil (ver artigo de Lobato). O acervo de desatinos dessa empresa faz parte da literatura brasileira. Com média de 2 acidentes diários, atraso permanente, sucateamento de máquinas e vagões, falta de manutenção de trilhos e pontes, a Central do Brasil era um retrato pitoresco do nosso estatismo no início do século XX. Ali saía tudo ao contrário: em vez de se investir nas necessidades, investia-se no supérfluo. A direção da empresa era ocupada por postulantes da carreira política, que tudo faziam para agradar a massa ferroviária, transformada em currais eleitorais propelidos por benesses. Os ferroviários, por seu turno, tudo faziam para prolongar os atrasos e com isso faturar horas extras. Quem viajava de trem nos anos 60, e até mesmo nos anos 70, no RS (em vagões importados da Hungria, que receberam o nome de ‘trem húngaro’, com a promessa de maior velocidade e eficiência) não conseguia entender por que os trens se deslocavam a 30 km/h em trechos onde a velocidade poderia ser de 50-60 km/h com segurança. O viajante não entendia por que as paradas nas estações intermediárias prolongavam-se por 20-30 minutos quando poderiam ser feitas em 5 minutos. Somente uns poucos “iluminados” sabiam que os ferroviários eram os donos do horário e faziam o que queriam – como é de praxe no sistema estatal brasileiro – e com isso submetiam os passageiros à humilhante demora do dobro do tempo nas viagens apenas para faturar horas extras.

No final do período de mais intenso e desbragado populismo da história brasileira do século XX, os transportes brasileiros estavam completamente paralisados. O déficit mensal era estratosférico. As greves semanais, o concessionismo absoluto. Ninguém em sã consciência, não pertencente à família ferroviária, aguentava os desatinos daquela classe.

O resultado vai para a conta do nosso déficit de 5 trilhões de dólares: até hoje nossas ferrovias não se recuperaram totalmente do grande baque do furor trabalhista dos anos 60, deixando o esqueleto de estações abandonadas, terrenos invadidos, prédios depredados, máquinas enferrujadas. A privatização das ferrovias deveria ser seguida de uma mudança total na legislação trabalhista protecionista. Mas então os nossos políticos se acovardaram, as vozes do populismo falaram mais alto e as novas empresas concessionárias se dedicaram exclusivamente ao transporte de carga, exceto nas novas linhas administradas pelo Vale do Rio Doce.

Em nossos portos a modernização ficou pela metade: no governo FHC foi feita a privatização de terminais marítimos, permitindo que empresas privadas administrassem os ativos de exportação de grandes empresas, o que permitiu uma redução substancial no custo do embarque de containeres, mas o terminal de cargas público continua com o mesmo sistema repulsivo de exploração de mão-de-obra pela subcontratação dos ‘bagrinhos’, espécie de estivador contratado como tarefeiro e controlado por uma oligarquia neoescravista escorada na discricionária legislação fascista.


A semeadura de embustes em torno da Reforma Agrária

É o título de um capítulo em que FARHAT resolve enfrentar o consenso nacional em torno do argumento da reforma agrária, para mostrar até que ponto se equivocam os bem-intencionados e lucram os oportunistas e demagogos de sempre. A Reforma Agrária é um espantalho que volta e meia reacende as labaredas da justiça social e termina nas cinzas do fracasso.

Já tivemos reformas agrárias oficiais, na distribuição de terras que começa no ciclo da imigração alemã e italiana no RS e, eventualmente, na região do noroeste paulista. Depois vieram as reformas agrárias republicanas e, por fim, o problema se agravou com a involução causada pela asfixia nos transportes, razão da existência de uma economia de trocas. Imobilizada a produção nos campos, com as colheitas sendo acumuladas até em sacristias de igrejas no interior do estado, armazéns de portos desativados, a economia rural começou a fenecer no meio de estradas intransitáveis, de governos relapsos, da impotência geral. Empobrecido, o agricultor migra para a cidade, de onde, num subemprego, sonha em retornar à terra de seus antepassados. Era o combustível dos demagogos.

O arroz gaucho chegava em São Paulo e Rio depois de 2 a 3 meses de viagem de trem.

“Quem sabe que a tonelagem de colheitas de cereais do Norte do Paraná demandava mais de 15 vezes a débil e aleatória capacidade de transporte que lhe era oferecida pela ferrovia que serve a região?“ (FARHAT, 1968, p. 188).

A contradição latifúndio improdutivo x população sem terra, ou latifúndio x minifúndio, elidia uma realidade nacional básica: o problema dos produtores rurais acossados por falta de condições de transporte, crédito, armazenagem, subsídios, etc...

Além disso, a verdadeira natureza da agitação pela posse da terra: passados mais de quarenta anos, a advertência de FARHAT de que a reforma agrária não conduz aos objetivos planejados confirma plenamente os dados de nossa época.
Senão vejamos:

Alguns participantes da claque vermelha das cidades fingem crer totalmente que ‘o Partido está lutando para dar terra aos camponeses...’ Esses ingênuos-espertos fingem não saber que, em todos os lugares em que subiu ao poder, o ‘Partido’ não deu nem dará títulos de propriedade de terra (e de nada) a NINGUÉM, pelo simples fato de que o princípio básico (e mortal) da política marxista é exatamente a eliminação da propriedade individual e de toda a ideia de posse...

Se, nos países livres, os ditatorialistas vermelhos falam taticamente em ‘distribuição de terra aos camponeses’ é porque já sabem quanto isso lhes serve para a AGITAÇÃO E DESORGANIZAÇÃO da vida do campo – dois fins fundamentais da sua ‘política agrária’. Eles já conhecem de sobra os resultados de todas as ‘reformas agrárias’ feitas desse jeito: 1) imobilizar pelo terror as atividades produtoras dos que têm terras; 2) dar uns inconsequentes tratos desnudos de campo a quem já vive desnudo de vida.

Eles já sabem que o simples fato de se entregar um título de propriedade a um enxadeiro não realiza o milagre de torná-lo capaz de dirigir o pequeno e complicado negócio que é o seu sítio, a sua fazenda. Eles já conhecem calculadamente os ‘resultados’ que se obtêm quando se joga uma pobre família de campônios sobre terras que eles têm de cultivar com uma orientação profissional de que não dispõem; com instrumentos de trabalho e máquinas que não podem comprar; com adubos cuja existência às vezes nem conhecem. Maquiavelicamente, eles não ignoram que aquele coitado, só com enxada e facão, não pode dar cabo das pragas que ameaçam periodicamente suas plantações, e que não poderá, com míseras caçambas ou ridículos regadores, repor sobre o campo, diariamente, a água, a irrigação que Deus não der...

Que milagres fabulosos teriam acontecido na produção agrícola dos países que realizaram a ‘Reforma Agrária’? Que índices admiráveis de produção atingiram essas nações ‘progressistas’?

No seu fundamentado e impressionante livro, ‘A corrida para o Ano 2000’, o professor Fritz Baade, com sua autoridade de deputado do Partido SOCIALISTA alemão, informa que são os seguintes os resultados de produtividade dos campos ‘reformados’, nos países onde se fez a Reforma:

“Na Rússia, cada trabalhador ativo produz para 6 pessoas na cidade. Na China e na Índia, cada trabalhador ativo produz para 3 pessoas na cidade.”

Enquanto isso, o que acontece nos países onde não houve a ‘benção salvadora’ dos sovkhozes e kolkhozes? Nos Estados Unidos, cada trabalhador ativo produz para 27 pessoas na cidade! No Canadá, cada trabalhador ativo produz para 26 citadinos!

Com sua responsabilidade de professor de economia agrária da Universidade de Kiel, Fritz Baade calcula ainda que, lá para o ano 2000, com a evolução da técnica agrícola (novos equipamentos, novas descobertas sobre solos, nova química protetora, novos adubos, nova mentalidade administrativa), cada agricultor americano estará produzindo para alimentar de 70 a 90 pessoas na cidade!

Apesar de todo o hermetismo com que os marxistas cercam suas ‘tragédias íntimas’, a União Soviética não conseguiu esconder em 1963 a sua necessidade de bater à porta dos paióis burgueses para comprar 30 milhões de toneladas de trigo aos seus agricultores não ‘reformados’. Nem pode omitir também o desespero da busca de um ‘bode expiatório’ nacional (já que não tem imperialismo agindo lá dentro), mudando 4 vezes de ministro da Agricultura em 3 anos... (FARHAT, 1968, p. 190-192)

Quando se sabe, desde 2007, que de todos os milhões de hectares de terra distribuídos a partir dos anos 90, que o índice de fracasso chegou a 75%, percebe-se o quão proféticas são as palavras de Emil FARHAT. E, quando se compara as invasões atuais do MST e da Via Campesina com o propósito de destruir plantações, máquinas e edificações, além da aterrorização generalizada no campo, só se pode concluir que o Brasil não prestou atenção a um de seus mais importantes livros que só podia ser escrito por um analista social e que jamais teria algo equivalente entre nossos dómines acadêmicos. E mais adiante FARHAT (1968, p. 195) acrescenta:

No Brasil, os reformistas agrários que aqui pontificavam nos idos de 1962 e 1963, criaram um órgão executor de seus projetos, a SUPRA (Superintendência da Reforma Agrária), que agitou intensamente, fundou imediatamente... 500 sindicatos rurais, e NENHUMA ESCOLA de ensino agrícola. E nem sequer fez o Censo Rural, pois não interessa aos desígnios da SUPRA constatar, e deixar divulgar, que já existiam no Brasil cerca de 2.700.000 propriedades agrícolas ... num país ... que precisa de 5 mil novos agrônomos por ano, para atender às necessidades da sua lavoura, onde só existem 12 escolas de Agricultura....”.

Citando os custos da propriedade agrícola, segundo levantamentos da época, bem como das ferramentas e aparelhos de irrigação, uma pequena propriedade necessitaria de NCr$ 4 mil em dezembro de 1964 (Cerca de R$57 mil pelo IGP-DI de maio/2010 segundo o portal calculoexato.com.br)

E termina dizendo que para acomodar 50 mil novos camponeses todos os anos, as despesas apenas de aparelhagem, supondo que seriam feitas em terras devolutas do Estado, teriam que ser de 115 milhões de cruzeiros novos (1,6 bilhão de reais pelo IGP-DI em 31/5/2010). Entretanto, considerando que:

Sem assistência social adequada e enérgica, o enxadeiro brasileiro e sua família serão, como os nossos pescadores, baratas tontas, que se afogarão pela falta dos mais simples rudimentos de economia agrícola e doméstica no pequeno mar de facilidades e responsabilidades atiradas às suas mãos inexperientes, ao seu cérebro virgem de noções de bem-viver, de saber viver e de administrar o que quer que seja (FARHAT, 1968, p. 199).

E foi o que aconteceu e continuará acontecendo: puro e simples desperdício de dinheiro público. Mas sua crônica dos atropelos governamentais não para por aí. Fala da obsessão pelo ‘fachadismo’ do governo de construir um mastodonte estatal chamado UNIVERSIDADE RURAL, no km 47 da Via Dutra, na saída do Rio de Janeiro, em lugar de centenas de pequenas escolas agrícolas para não "pulverizar a grandeza das coisas que o Estado (leia-se o ‘Meu governo’) deve fazer. Tem de ser uma Universidade Rural ‘como não há nenhuma no mundo’ (FARHAT, 1968, p. 201).


A mão seca do Estado-industrial... e a mão frouxa dos líderes-Madame-Pompadour

Um capítulo dedicado a nossa maior praga de todos os tempos, e sem a qual o Brasil não seria a porcaria política e governamental que é: o estatismo.

Madame Pompadour foi a amante de Luis XV que, vivendo em Versalhes, tornou-se célebre pelo tráfico de influências na Corte, recebendo diariamente todos os pretendentes a algum benefício real e concedendo favores de todos os tipos e espécie: uma alusão aos nossos políticos e figurões.

Para FARHAT (1968, p. 211), o problema se situa na união entre ‘nacionalismo’ com o fascismo, com o marxismo e o socialismo verde-amarelo. Às vezes o imbróglio junta até liberais e social-democratas, quando se trata de um projeto de lei. Com a democratização do país pós-Vargas, de 1955 a 1964, os comunistas tiveram acesso à cúpula das empresas estatais de então sendo um período em que “demonstraram à saciedade que defendem a estatização não apenas como ponto de vista ideológico, mas como um ESTRATEGEMA DE GUERRA, de ocupação de posições poderosas, quase todas, daí por diante, fortificadas pelo cimento emburrecedor do mito da ‘intocabilidade’.

Levados no ventre de certos candidatos presidenciais, com os quais barganharam o toma-lá-dá-cá dos irmãos-em-oportunismo, os comunistas penetraram nas diferentes cidadelas-industriais do Estado – Petrobras, SUDENE, BNDE, Cia. Siderúrgica Nacional, Leopoldina, Lloyd, Costeira, Correios e Telégrafos, Álcalis, etc, e se atiraram sobre todos os CARGOS ESTRATÉGICOS DE DIREÇÃO E CHEFIA, deslocando pelo terror e pela calúnia os seus antigos e apavorados ocupantes. Em cada uma dessas empresas, eles atacavam conjugando as manhas aprendidas em decênios de lutas diferentes em ambientes diversos; atacavam como formigas, na sua tática de infiltração por inclusão ou rastejamento, vindos por todos os canais, por baixo e por cima, pelos lados e pelos cantos, insinuando-se em fila indiana, ou espalhando-se em aterrorizadora correição...

Finalmente, os comunistas são pela criação e proliferação infinita de empresas estatais, mesmo nos regimes políticos a eles ferrenhamente adversos, MESMO QUE ELAS TEMPORARIAMENTE NÃO LHES CAIAM NAS MÃOS; pois sabem o quanto a estatização de cada setor da economia de um país livre representa para sua sempre sonhada, acalentada e inarredável estratégia da ‘marcha para o pior’, tão necessária ao clima político-social que é mais propício à sua expansão.

O essencial – anseiam eles – é que a gangrena comece em algum ponto do organismo da Nação; não importa onde, nem como. Quando o Estado, ainda que por obra de ingênuos políticos ou burocratas idealistas, coloca sua mão-seca de empresário inapelavelmente frustrado sobre um setor qualquer da economia nacional, os teoristas vermelhos sabem de antemão o que aí acontecerá mais hoje, mais amanhã: o ingurgitamento do empreguismo; a apoplexia do sinecurismo; o dilúvio do papelismo; a maratona de favores entre o “coitadismo”, o “concessionismo” e o protecionismo; as gordas enxurradas do desperdício; a ataraxia da inaptidão, da lerdeza, do boa-vidismo. E, um dia, afinal, o alijamento dos tímidos e matematicamente fracassados idealistas pelos técnicos do calculismo vermelho ou pelos serviçais das ‘linhas-auxiliares’

Como acentua o economista Roberto Campos, uma das características básicas do Estatismo é a “falta de sanção”. Disto resulta o “habeas corpus” da impunidade absoluta de que se valem todos os “istas” que frequentemente se dão as mãos nos corredores das empresas estatais – para levá-las a total ineficiência ou completa dilapidação. Essa “falta de sanção”... tem sido o convite ao cinismo desabusado, praticado sob o pálio verde-amarelo da “intocabilidade” e do “nacionalismo” (FARHAT, 1968, p. 212-213).

E Emil FARHAT desfila uma amostra do caos estatal dos anos 60, com os portuários recebendo nada menos que “56 vantagens extra-adicionais!”. Ou o caso da Petrobras, que desde essa época paga gratificação de ‘periculosidade’ distribuída ‘até para os funcionários instalados no escritório central situado em plena Av. Presidente Vargas no Rio e no próprio escritório em Nova York” . O mesmo acontecia com os funcionários da Rede Ferroviária Federal mesmo trabalhando nos escritórios da Cidade Maravilhosa. “Aliás, ainda a propósito da Rede, é curioso salientar que aquilo que antigos empresários particulares puniam com advertência ou suspensão – chegar o trem atrasado – tornou-se na rendosa indústria das ‘horas extraordinárias’ de ‘trabalho’, razão por que em todas as ferrovias da Rede ‘nacionalizada’ os comboios já partiam atrasados, desde sua estação inicial....” (FARHAT, 1968, p. 213-214).

Ninguém nunca pensou em somar ao já cosmogônico ‘déficit’ das autarquias industriais o que elas DEIXAM DE PAGAR DE IMPOSTO DE RENDA. Se, nessas áreas, ao invés das perdulárias empresas-manicômios ‘administradas’ pelo Estado, estivessem atuando eficientes empresas particulares, não só o país não sofreria sangrias, empobrecedores prejuízos como, pelo contrário, receberia receitas formidáveis de impostos, principalmente o de renda.

Muitos dos ingênuos defensores da estatização não atentaram para esse duplo aspecto da brutal sangradura com que essas empresas-chupins, as autarquias industriais, haraquirizam o corpo da Nação: além da dilapidação pelos prejuízos, NÃO PAGAM IMPOSTO DE RENDA, por causa mesmo desses prejuízos; mas, se não os apresentassem, também não os pagariam, protegidas que são quase todas pelas ISENÇÕES DE IMPOSTOS com que, de antemão, o legislador ou o governo procuraram acobertar a sua matematicamente infalível incapacidade administrativa...

Houve até um deputado federal que, no ano da graça de 1963, levando ao paroxismo o truque da ‘intocabilidade’, apresentou um projeto que estendia a tal ponto a ‘proteção’ à Petrobras que isentaria de impostos e taxas ‘TODA E QUALQUER transação que fosse realizada’ POR ELA OU COM ELA; esse projeto levava os ‘direitos’ dessa empresa até o extremo de ela poder IMPORTAR O QUE QUER QUE FOSSE SEM NENHUMA FISCALIZAÇÃO NEM SATISFAÇÃO À PRÓPRIA ALFÂNDEGA FEDERAL” (FARHAT, 1967, p. 214-215).

Esse é o ponto! Aqui FARHAT chega ao âmago da questão: começando pelos comunistas, e depois pela velha esquerda, e por último a classe média – todos preferem o sistema estatal brasileiro. Este consegue satisfazer a todos: aos comunistas pela ausência de sanções, pela dispensa de competência e assim por diante; à classe média, pela estabilidade no emprego e pela ascensão baseada em ridículos planos de carreira; para os bocejantes, pela possibilidade de levar a vida fácil e aos espertalhões, pela possibilidade de gazetear à vontade com salário garantido no fim do mês.

Com essa frente única que abrange uma boa parte da brasilidade é natural que uma figura política que ofereça sinecuras estatais ao povo seja uma bomba-relógio política de alta relevância no patropi. Aliás, em seu livro de memórias, escrito entre 1995-96 (faleceu no ano 2000), FARHAT conta que quando os aliados ganharam a guerra e a democratização avançava na marra, destruindo as barreiras da ditadura do Estado Novo, com Getúlio nos últimos dias de governo, como membro da Esquerda Democrática (facção da UDN que mais tarde geraria o PSB), foi com uma delegação procurar Prestes recém saído da prisão. A ideia era criar uma unidade da oposição ao Estado Novo para o futuro da abertura. Ao se reunir com o ‘Cavaleiro da Esperança’, FARHAT ficou perplexo ao ver Prestes falando em apoiar a ‘Constituinte com Getúlio’, uma proposta dos comunistas que era – na opinião dele – completamente incabível para a conjuntura. Ao pedir a palavra para manifestar seu estranhamento pela posição de Prestes, argumentando que o líder comunista não podia moralmente apoiar um ditador que não só lhe tinha preso e torturado por quase 10 anos, como enviado sua mulher grávida para os campos de concentração nazista, Prestes lhe interrompeu agressivamente com um ‘cale-se, você não tem nada a ver com isso’. Tentou falar mais duas vezes e foi novamente hostilizado por Prestes a ponto de ter de efetivamente deixar seus colegas levar a proposta da nova Constituinte sozinhos ao líder comunista. É que FARHAT não percebera que os comunistas estavam todos empregados na máquina estatal criada por Getúlio, a mesma máquina cujos desatinos estão narrados na seção DNABrasil sob o título ‘O Desperdício do Capital Social’.

Felizmente os militares derrubaram Getúlio poucos dias depois, convocando as eleições que elegeram Dutra com apoio dos comunistas contra Eduardo Gomes, o candidato anti-Getúlio. A máquina estatal já estava pronta para dar ao país o resultado de seu retumbante fracasso.

A confusão entre estatismo e o bem do Estado, o bem público, é a tese em que FARHAT se propõe a demonstrar como um axioma matemático: “o estado não é essa coisa vaga, ideal, abstrata, como aparece na imaginação de muitos, mas sim uma coisa muito palpável, que é o grupo político ou partidário que está no poder” (p. 220).

É incrível como, no Brasil, políticos e partidos bem intencionados sempre votaram quase abulicamente todas as leis que criavam ou ampliavam autarquias industriais do Estado. Amedrontados por palavras e por preconceitos, eles não viam que isto era ampliar ao infinito os poleiros eleitorais de um bandoleirismo partidário que, sem nenhum pejo ou escrúpulo, considerava a Nação sua fazenda, e essas empresas os seus currais e galinheiros, onde cevavam seu gado de pelo e pena, para os rega-bofes de boca de urna, que os eternizavam no poder.

E quando os tartufos ‘modestamente’ imaginavam mais uma empresa, para dar vazão às suas necessidades de empreguismo correligionário a granel, os ingênuos retrucavam com ainda maior arroubo ‘progressista’, oferecendo logo o galinheiro de inacabáveis poleiros, de um novo monopólio estatal...

Cegamente, os bisonhos políticos liberais não viam que o grupo estatista-empreguista queria apenas assegurar para si e para os seus a facilidade de ‘dispor’ de mais uma empresa ‘do Estado’, queria a facilidade, que ela sempre assegurava, de seus rebentos e protegidos, correligionários e ‘peixinhos’, nela poder entrar, MESMO SEM COMPETÊNCIA, e nela poder subir, MESMO SEM MERECIMENTO.

Aliás, não há mais político-empreguista pelo Brasil afora que ainda não tenha entrevisto a imensa prestimosidade eleitoreira de uma empresa estatal, por modesta que seja... Já de há muito, certos vivazes assessores palacianos pressentiram existir um inédito e importante ‘fator de produtividade’ a buscar nessas organizações: a sua alta rentabilidade de empregos a serem distribuídos e de cabos-eleitorais a serem atendidos” (FARHAT, 1968, p. 221-222).

Reitero ao leitor que essas observações são de 1967. Com as privatizações no governo FHC, boa parte do descalabro foi eliminado, especialmente no setor siderúrgico e de telecomunicações, passando os entes estatais privatizados a dar recursos à Nação, de cuja estabilidade proporcionou a ascensão da demagogia populista dos últimos anos. Agora, começa a voltar a ressurreição dos cadáveres daquela época, como a recente recriação da Telebrás, consubstanciada em empreendedorismo de um governo sindicalista que vai na direção da mesma tragédia, e confirma o que Emil FARHAT enfatiza com sua lucidez cristalina: o estatismo é uma aliança entre correntes políticas divergentes para uma mesma finalidade política, e neste balaio de gatos não por acaso estão empresas inspiradas na estreiteza estratégica dos antigos comandantes militares junto aos sindicalistas do século XXI.

Para FARHAT, o estatismo deve ser analisado como um fenômeno só: do nazismo ao comunismo, da pseudo-democracia ao subdesenvolvimento social. E modernamente até como um esbulho da religião, como no caso das teocracias islâmicas. Em plena guerra fria, ele apresenta o contraste entre as economias do leste europeu e as do oeste, as diferenças sociais e culturais, a opressão humana na negação da liberdade de empreender, de manifestar um pensamento fora do âmbito oficial, as diferenças no nível de vida. E não deixa de manifestar sua perplexidade com a questão do petróleo no Brasil:

A Petrobras informava, retardatariamente, em 1964, que, valendo-se de todas as suas facilidades e das verbas imensas de que dispunha, e ainda dos seus (então) 30 mil funcionários, havia atingido a ‘performance’ total de 441 poços perfurados nos anos de 1961 a 1962; isto quando indivíduos e empresas particulares ‘atiçados pela ambição’ perfuravam no mesmo período 1.033 poços na Venezuela, 4.450 no Canadá e ‘apenas’ 90.000 nos EUA.

Na própria Argentina, após quase 50 anos de monopólio estatal do petróleo (YAPF), fora finalmente admitida a associação de empresas privadas, tendo sido perfurados, de imediato, no período 1961-1962 (governo Frondizi) nada menos que 2.906 poços. Isto bastou para tornar o país autossuficiente, e até exportador (para o Brasil) de gasolina e gás butano... ...Aliás, o Brasil, apesar de ter supostamente “um sexto das prováveis reservas mundiais de petróleo’, também é ‘beneficiado’ há quase 3 décadas (desde a fundação do Cons. Nac. do Petróleo) pelo mesmo raciocínio de antimatemática financeira, no que diz respeito à exploração do nosso subsolo eventualmente petrolífero.

Estabeleceu-se aqui o monopólio estatal do petróleo para impedir que estrangeiros, tirando-o do subsolo brasileiro, tivessem lucros que poderiam ser ‘nossos’. Ora, pelo VOLUME ATUAL (1967) das nossas compras forçadas de petróleo ao exterior, as companhias alienígenas que aqui extraíssem essas quantidades dos campos locais, e as entregassem ao consumo interno, estariam, pelo montante das vendas, obtendo um lucro líquido máximo de 8 a 15 milhões de dólares – quantia que certamente remeteriam para fora, se aqui não precisassem reinvestir nada. O RESTO, porém, FICARIA NO BRASIL, sob a forma de ‘royalties’ ao governo brasileiro (como na Argentina e Venezuela), de outros impostos inclusive o de renda, ou de taxas assistenciais, ou em salários ou em compras de material de toda natureza necessário para escritórios e armazéns, ou ainda em alugueis, etc.

Resultado objetivo, no presente, da ‘matemática’ antibrasileira do ‘raciocínio nacionalisteiro: para impedir que os ‘imperialistas’ viessem a remeter de 8 a 15 milhões de dólares em lucros do seu negócio brasileiro de petróleo, estávamos enviando, anualmente, em escala crescente, para os mesmíssimos ‘imperialistas’, 250, 300 e dentro em pouco, 500 ou 600 milhões de dólares para comprar petróleo dos seus negócios kuwaitianos, iemenitas ou venezuelanos... Isto é, o Brasil, estava pagando TUDO, os lucros e as despesas operacionais, que os ‘imperialistas’ eram forçados a fazer nos países de onde extraíam o petróleo que nos vendiam...

... Graças a Deus, impulsionado pela alta octanagem da força de vontade dos brasileiros que produzem, a tendência do progresso nacional será atingir uma energia de expansão algebricamente crescente. Como será que, furando poços com horário de repartição, e tirando petróleo em colheradas, o monopólio estatal irá cumprir a sua parte, de IMPEDIR QUE O BRASIL TENHA DE MANDAR ANUALMENTE CENTENAS, cada vez mais numerosas, DE MILHÕES DE DÓLARES para comprar lá fora aquilo que, segundo os técnicos, forma oceanos intocados no subsolo nacional?

Doze anos após criado o monopólio estatal especificamente encarregado de refinar e extrair petróleo (nota: 1965), ainda estávamos produzindo apenas 35% das necessidades nacionais. Se levarmos em conta a inescondível MAIOR VELOCIDADE DO CONSUMO do que da produção, talvez ainda decorram 20 anos para atingirmos a autossuficiência. Até lá, o Brasil se terá sangrado em DEZENAS DE BILHÕES DE DÓLARES, pagando, como um caipira, no ‘embrulho’ do petróleo que nos vem de fora, também os salários, os impostos, as taxas, e os selos, os dourados ‘royalties’, as despesas todas cobradas pelos países que ‘ingenuamente’ deixam tirar o ouro negro, mas jeitosamente ‘arrancam o couro’ de quem o tira. E, dos tolos, ou coitados, que depois são forçados a comprá-lo” (FARHAT, 1968, p. 241-341).

Infelizmente, FARHAT errou na previsão da autossuficiência em 20 anos, ela só veio ocorrer em 2007, exatamente 40 anos depois da publicação do seu livro. E nada indica que, ao trocar o modelo de concessão pelo de partilha, como temos advertido à Nação, o petróleo brasileiro não entre em declínio. Relativamente ao estatismo, FARHAT (p. 245) continua sua invectiva cristalina e pedagógica:

Em qualquer setor econômico em que o Estado entre com sua mão desajeitada, ou perdulária, ou estéril – EM QUALQUER PAÍS DO MUNDO – as coisas se afrouxam, as regras se amolecem, começam os ‘jeitos’, imperam os achegos, junta-se o compadrismo, floresce o filhotismo. Seja qual for a forma sob a qual o Estado participe de uma atividade econômica, seja como industrial-monopolista, ou acionista majoritário, ou minoritário, ou simplesmente como subsidiário – logo se forma a tessitura das adiposidades burocráticas, estendem-se e enroscam-se os filamentos gordurosos de ‘vantagens’ e ‘percentagens’ que se vão generosamente desprendendo, para os que se colocam no caminho de ir e vir, do fácil dinheiro do povo...

Por que é que o Estado deveria meter-se a ‘grande realizador industrial’, a magnata do ferro e do aço, do petróleo e da eletricidade, dos álcalis, das comunicações telefônicas, telegráficas, ferroviárias e marítimas, e a ‘fabricante’ de automóveis e caminhões – se ainda não dera conta sequer nem da vulgaríssima e primordial tarefa de dar hospitais e centros de saúde, que funcionem, ofereçam cama limpa, médicos atenciosos, enfermeiros competentes e cumpridores dos mais rudimentares deveres profissionais – num país que ainda tinha 20 milhões de opilados, 11 milhões de papeiros (bacíferos), 3 milhões de chagásicos, 4 milhões de esquistossomáticos e 50 milhões de portadores de helmintose, como em julho de 1964 fora corajosamente proclamado pelo então ministro da Saúde, prof. Raimundo de Brito.

Diante da batalha acirrada que se trava entre estatistas e defensores da liberdade de iniciativa do cidadão, há os que indagam perplexos: mas, afinal, que deve o Estado fazer? Que é legítimo e NATURAL, ou LÓGICO, que ele faça na vida do país?...

Mas se atentarmos para as imensas tarefas que cabe ao Estado, ao governo executar – mesmo aos governos sem a preocupação da estatização eleitoreira ou socialisteira – veremos que se trata de uma tremenda carga de ônus, cujo atendimento exige devoção total dos executivos e fertilíssima imaginação administrativa e criadora... pois, além daquilo que é hoje a mais vital e sacrossanta função do Estado – atender os problemas da Educação em todos os graus – ele tem pela frente as tarefas de cuidar e prover: saúde pública, segurança interna e externa, códigos e leis que regulem a vida econômico-social, justiça de todos os graus e tipos, estradas e vias fluviais, portos, correios, finanças e recenseamentos nacionais, urbanismo, defesa florestal, trânsito, acumulação e depósitos de água doce, poluição da atmosfera e dos rios, prevenção e assistência contra as hecatombes, assistência social à invalidez, ao desemprego e à velhice. E isto sem incluir os programas nacionais de habitação para as classes menos favorecidas... Como se vê, encargos que, por si sós, bastam para esgotar a capacidade e a dedicação de quaisquer gigantes que atinjam o poder com a mais alentadora vocação do bem público” (FARHAT, 1968, p. 254 – 255)


Os marxistas sebentos e os ricos fedorentos

É o capítulo em que se lê alternando entre a gargalhada espiralada e a perplexidade de alta suspensão superciliosa. A verve panfletária de FARHAT um dia ainda fará história, se neste dia o país ajustar as contas com seu passado. Com este tipo de retórica a editora Companhia Editora Nacional cravou na contra-capa em letras garrafais: “um livro para ser lido em voz alta pelo Brasil inteiro”:

Os ricos fedorentos são um grupo poderoso, mas cada vez mais reduzido na arejada sociedade moderna; são as últimas perpétuas-fétidas de um buquê de hienas humanas já atirado à vala comum da História. Eles herdaram todos os aleijões do feudalismo; com a boca torta dos vícios do velho capitalismo e a fuça dentuça da sua cupidez egoística, esses malcheirosos empatacados constituem o restolho de horrores de que ainda vivem os saltimbancos comunistas e seus variados amarra-cachorros, são o Belzebu de ouro e azinhavre que os insinuantes doutrinadores vermelhos, em suas cátedras de livrinhos-de-bolso utilizam como burrinhas-de-padre para espantar gerações ingênuas de suaves idealistas, e até para amedrontar curas e outros homens piedosos.

Por causa da existência desses brontossauros remanescentes de um capitalismo retrógrado: que são contrários a livre concorrência; que querem lucros acima da razoabilidade dos seus investimentos; que consideram os impostos uma violentação da sua oportunidade de amealhar mais proventos; que ludibriam a Nação financiando leis e campanhas contra o capital de outras origens que venha ameaçar a sua posse mansa e tranquila de donatários da capitania do mercado brasileiro; que levantam em torno de suas empresas as ameias dos exclusivos interesses familiares; que só fazem empreendimentos que deem dividendos em dinheiro e nenhuma gratidão; por causa deles é que os comunistas, como Galileus do retrocesso humano, insistem em proclamar a única verdade que lhes resta do que diziam do capitalismo: ‘Vejam: eles, os monstros, continuam se movendo’. – E os usam como justificativa de sua luta contra a liberdade de progredir, contra a liberdade de prosperar, contra a liberdade de produzir, que permitem a cada cidadão capaz ampliar os meios e as condições de seu bem-estar, e também enriquecer a comunidade em que vive.

Agarrados nesses chimpanzés, puxando-os pelo focinho ou pela cauda, os comunistas e seus serviçais passeiam pelo país afora a sua teoria carrapaticida de eliminação total do sistema que dá ensejo à existência também desses engordados chupins do regime capitalista.

Muita gente fica, por isto, sem compreender como em tantas ocasiões se entendem afinadamente, dão-se as mãos, oculta ou até abertamente, os comunistas e os tipos de capitalista que exatamente eles caricaturam. Como todos os sócios eventuais de qualquer trama diabólica, eles se ajudam mas se odeiam, porque cada um sempre receia que o outro o atraiçoe – como já é parte da própria história contemporânea.

Não lhes vendo as caudas entrelaçadas por baixo da mesa, muitos bisonhos espectadores da pantomima não entendem a aparente contradição de certos ricaços e riquíssimos mastodontes que deram, e continuarão dando, certamente, ainda, dinheiro grosso aos comunistas e ‘nacionalistas’ para suas campanhas. Ao fazer isto, esses nababos fedorentos estão apenas seguindo uma linha de sua ‘política econômica’ de, desleal e impatrioticamente, fechar-a-raia para o surgimento de outros empresários ou empresas, mais atilados e modernos, mais bem equipados e decididos, mais ágeis e evoluídos e de avançada compreensão quanto à FUNÇÃO SOCIAL DO LUCRO.

Para não ter de reorganizar, redistribuir e reestudar continuamente seu negócio ou indústria, para não ter de cansar-se na mesma luta de estar sempre batalhando para a conquista ou manutenção do mercado que, por esperto açambarcamento ou ‘altas conivências’, JÁ ERA SEU, o capitalista-feudal ia e vai até benzer-se com os pais-de-santo comunistas. Estes, em troca de seu apoio a oferendas, lha dão o jocoso diploma onde, de cabeça para baixo, vem a palavra favo-de-mel – PROGRESSISTA. E asseguram então, ao seu sócio de circunstância, alma e entusiasmo ‘os mais puros’, na luta comum pela ‘libertação nacional’, pela elaboração de mais leis espanta-gringo, e pela criação de dificuldades a todos que ameacem a hegemonia daquele donatário-de-capitania nesse ou naquele ramo de negócio.

No fogo de barragem ‘nacionalista’ que lançam para proteger o seu aparentemente esdrúxulo associado, os comunistas estão mais uma vez e sempre apenas cumprindo novos ângulos da sua inarredável e implacável lei de guerra: ‘Quanto pior, melhor’. Pois eles sabem muito bem o quanto ajuda suas tão acalentadas ‘condições revolucionárias’ que haja só um produtor de alumínio, só um fornecedor nacional de zinco, só um grande comprador-exportador de café, só um produtor de determinada fibra sintética ou tecido, ou só um produtor de vidro plano. Eles sabem muito bem que qualquer monopólio, público ou privado, de qualquer natureza, ainda que de formicida ou pó mata-rato, é prejudicial à economia de um país e à sua salubridade social.

Mas, o espantoso não é que, a esta altura da evolução política dos povos, os comunistas usem esses bodes e essas táticas, que certamente continuarão a usar também lá pelas alturas de 1980 ou no ano 2000 – pois até lá, mesmo com o inevitável desaparecimento do sistema, existirão os comunistas por sebastianismo como ainda há florianistas por aqui, e os bonapartistas na França. O espantoso não é que os vermelhos usem essas excrescências do egoísmo pretendendo apontá-las como flores e frutos inerentes e exclusivos das condições do capitalismo.

O espantoso é que homens de inteligência, de idealismo e piedade se postem ridiculamente no papel de seus caudatários, seus afluentes, sacristãos ou filósofos-de-reboque e insistam, com o automatismo inerme de uma câmara de eco, que a nuvem é mesmo Juno.

É impressionante que Emil FARHAT tenha previsto o fim do comunismo soviético. Sua intuição estava fundamentada na convicção de que o avanço da ciência e tecnologia era privilégio de uma sociedade competitiva que tinha conseguido resolver o problema da educação e com isso priorizar a pesquisa científica como motor da evolução econômica. E prossegue seu manifesto atacando o egoísmo humano:

Como se não houvesse egoístas, e dos piores, em todas as classes sociais, em todas as condições humanas, entre todos os partidários de qualquer sistema econômico ou filosofia. Não é intransferível privilégio da riqueza gerá-los em seus berços de ouro. Como também o opróbrio da miséria não é partejá-los em suas enxergas. O egoísta é erva daninha que ostenta sua ressequida e contorcida esterilidade em todas as latitudes sociais.

Há, sim, ricos que, por seu egoísmo ou por seu amoralismo, não merecem nem a raspa da cuia de feijão de um mendigo. Mas a existência de meia dúzia desses dromedários empatacados não pode ser justificativa para condenar-se uma nação inteira ao nivelamento pelos padrões rasteiros da miséria e a jungi-la à canga anti-humana de uma ditadura marxista ainda que travestida sob o rótulo engana-bispo de ‘democracia popular’....

Egoísta é aquele que julga que a sociedade deve apreciar e valorizar suas qualidades, ainda que não se tenha desdobrado em algo que as demonstre; ou os que recebem dos dinheiros do povo sem cumprir seus deveres para com ele. Egoístas são também aqueles que se encostam em sinecuras, onde nada executam, nada fazem, nada produzem senão o tricô de intrigas dos corações vazios, e onde nada deixam senão o exemplo de suas vidas parasitárias. O egoísmo não tem sua morada apenas nos gordurosos e soturnos corações dos forretas fanatizados pela posse do ouro e do azinhavre. Ele também se acama e se derrama nos canteiros da inércia e da preguiça, onde brotam e florescem todos os úmidos cogumelos do parasitismo, flor típica das bolorentas estufas do Estado.

É preciso que as piedosas marias-vão-com-as-outras, que os comunistas encantaram com a sua bruxaria palavrosa e seus sofismas diabólicos, se lembrem de que, tanto quanto a avareza, A PREGUIÇA É TAMBÉM UM PECADO MORTAL. Por que dar a hóstia da impunidade aos milhares de espertinhos nacional-sinecuristas, que assinam o ponto nos locais de ‘trabalho’ e só voltam para receber no fim do mês, e condenar apenas o bode onzenário, cuja pátria é a sua burra e cujo ‘povo’ são apenas os que vivem da sua sala à sua cozinha?

Opondo o lugar comum das palavras de ordem ‘o mundo marcha para o socialismo’ com a sua convicção de que ‘o mundo marcha para a socialização do consumo’, FARHAT previu que o consumo seria a grande pressão das massas na sociedade tecnológica que se fortalecia como fator indeclinável do pós-guerra. Baseando-se na notícia do colapso dos bens de consumo existentes na União Soviética de então, ele examina as contradições do modo de produção estatal para enfatizar a agonia do modelo.

E depois vai desmanchando os argumentos com que a esquerda em geral se agarra para prometer a satisfação das necessidades humanas no socialismo ao maior número de pessoas possíveis. Mostrando que o novo capitalismo democratizado – o capitalismo avançado – era a fórmula que criava o maior bem-estar social comprovadamente onde tivesse prosperado, em oposição ao modelo estatizante já moribundo, FARHAT demonstra que a prosperidade não é uma questão de conceitos, mas de fatos, de experiência humana, de realização concreta da sociedade quando os valores são o do mérito e do preparo intelectual, completamente deturpados no estatismo do socialismo real.

Mas não aborda uma questão colocada na atualidade: a resiliência do socialismo depois de sua queda. Evidentemente que nos países desenvolvidos ele só renascerá das cinzas de uma crise generalizada. Mas entre nós, pobres emergentes tracionados pela Ásia, podemos conjeturar que são múltiplas: a) um ‘encosto’ para os menos dotados. Trata-se de um componente macunaímico da brasilidade que protege os preguiçosos atávicos, os marcha-lenta da inteligência. b) um sistema de suborno material e moral do Estado, qualificando os piores tipos para os melhores cargos. O suborno material pelas mordomias. O suborno moral pela atmosfera de venalidades corriqueiras que cerca as instituições. O iniciante vai sopesando as conveniências do cargo com os horrores do ambiente e se acomodando em um niilismo embrutecedor. c) Stultorum numerus infinitum est. Não fosse a superficialidade do materialismo dialético, da estrutura de classes da sociedade, do determinismo histórico, e mais meia dúzia de engole-engole de subsumir certas platitudes como “leis sociais”, o marxismo terceiro-mundista não teria tanto êxito. d) as facilidades do capitalismo com o capital alheio: é a melhor e mais promissora forma de emprego de capital. Não há risco, não há sanções, não há fracasso. O contrário causa horror e um alarido esbravejador: a privatização de entes estatais, a lógica da eficiência, o mérito ao mais hábil e perspicaz. Depois basta fazer de conta que não se sabe de nada e deixar os mutuários chupando o dedo, como o caso Bancoop. e) Coroando todo o processo, o reforço da ideologia desculpatória, do vitimismo persecutório, do coitadismo e de uma espécie de autocomplacência que os “explorados” nutrem por si mesmos. Aqui o primitivismo idealista dá as mãos ao romantismo juvenil arregimentado nas ideologias pega-mosca dos bancos universitários.


As ‘crises nacionais’ e a indecisão pendular das lideranças

No Brasil não existe nenhum funcionário conhecido, de nenhum escalão federal ou estadual que tenha renunciado ao seu posto em protesto contra uma atitude de governo, como fez Octavio Paz no México em 1968, a propósito do massacre da Plaza Tlateloco em que morreram 50 estudantes durante as manifestações políticas da época. A polícia abriu fogo contra os manifestantes, ocasionando um enorme rebuliço político. Inconformado com a atitude do Estado, Octavio Paz, então um embaixador de carreira, renunciou ao posto e nunca mais voltou ao serviço público.

FARHAT inicia este capítulo com reminiscências do golpe de 37 que entronizou o Estado Novo no Brasil. Dias antes, José Américo de Almeida, o autor de A Bagaceira, fazia comício em Niterói onde aplaudido pela multidão já antevia a presidência da república em suas mãos. Emil FARHAT foi um dos oradores do evento, e o fato de José Américo sucumbir à ditadura, aceitando o cargo de Ministro do Tribunal de Contas da União pouco tempo depois, foi para FARHAT o ato mais decepcionante de sua curta vida política. José Américo fazendo o papel de Judas, de joaquim-silvério-ambulante, de traição às aspirações nacionais e de abandono de toda a resistência com o gesto que congelou a “ebulição de todas as rebeldias que ferviam Brasil afora; imobilizou os braços que se levantavam e os punhos que reagiriam; fulminou as esperanças, estancou as torrentes subterrâneas; desorientou as vozes que liderariam nas reuniões secretas ou articulariam nas conspirações” (FARHAT, 1968, p. 294).

A juventude brasileira, civil e militar, que, através das incandescentes pregações do líder valoroso, já se havia aquecido até o paroxismo do mais vibrante entusiasmo e disposição para a grande arrancada recuperadora e regeneradora, sentiu-se tomada de um verdadeiro complexo de castração cívica, como se com aquilo e diante daquilo terminasse os seus dias viris e sua exuberância humana – e isolada em desorientação e desespero, começou até a descrer que houvesse heróis em nossa História, ou até mesmo a própria História...

Aconteceu então que, empurrado pelo confusionismo de amigos fardados – talvez muito mais tocados de sentimentos de piedade do que por cálculos táticos – José Américo, afogando-se numa poltrona burocrática, pareceu à Nação inteira, já mergulhada na semi-escuridão da ditadura, um boneco sem alma nem crença, sem firmeza nem senso, sem moral nem grandeza. Exatamente o oposto de tudo aquilo que sempre fora, e que precisaria TER MOSTRADO QUE CONTINUAVA SENDO (FARHAT, 1968, p. 295).


Uma cooptação vergonhosa acaba com as esperanças dos “jovens estudantes, os trabalhadores, os negociantes, fazendeiros e industriais, os profissionais liberais e os outros distantes escalões militares e civis – aquele povo inteiro que ainda não encontrara seu líder, vir desaparecer melancolicamente, prosaicamente, conformadamente, sob a pilha de papéis burocráticos, o homem que deveria ter ido, de ‘peixeira’ entre os dentes, para os subterrâneos e as cavernas do ‘undergound’, para cavar as trincheiras da liberdade e a catacumba da ditadura.... o MINISTRO José Américo participava, com aquele cargo, do ‘governo’ e do regime que usurparam de modo tão torpe as liberdades e as esperanças de todos.... Aqueles quase dez anos palustres, abafadiços, rasteiros e irrespiráveis do ‘Estado Novo’, em que o Brasil se tornou uma nação vegetal, uma charneca humana, onde só os cogumelos alteavam a cabeça oca, fofa e pastosa, criaram para os náufragos da liberdade um negrume total de naufrágio noturno: não havia luzes guiadoras nem firmes esperanças a que se agarrar. Prostrado, o povo civil não reagia; vendo isto, os militares se conformaram. E ele próprio, José Américo, pelo seu contínuo silêncio disciplinar, sem tentativas, sem gestos, nem rebeldias, deixava sem motivação e sem vida aqueles fantasmas cívicos dos que outrora o seguiriam” (FARHAT, 1968, p. 296).

José Américo só viria a romper o mutismo em entrevista ao então repórter Carlos Lacerda 10 anos depois. O caráter ziguezagueante dos nossos políticos, a ‘indecisão pendular’ é atribuída por Emil FARHAT ao caráter bacharelesco de nossos mandatários. Guindados à administração, quase nada sabem de gestão. Envolvidos no torvelinho da política, optam pelo ‘neutralismo’. Para o político médio governar significa “uma contínua operação ‘deixa-disso’, em que a Nação, por mais que cresçam seus problemas, deve, afrouxadamente, sempre estar cedendo, sempre condescendendo com os relapsos e incapazes, e sendo generosa com os preguiçosos e viciosos, e cheia de recompensas para aqueles ‘coitados’ que nada fizeram nem querem fazer. Sua obsessão político-eleitoral é APOSENTAR. Aposentar todos os trabalhadores, antes mesmo de saírem para seu primeiro emprego... A sua recôndita e simplista filosofia ‘humanista’ é a de que, aqueles que não têm capacidade ou vontade de produzir coisa nenhuma, são por antecipação ‘espoliados’ por aqueles outros que inventam máquinas e técnicas, desenvolvem métodos e processos e organizam empresas para as criarem e produzirem... O Brasil veio sofrendo, ao longo das décadas de 30, 40, 50 e 60, da falta de densidade, ora mental, ora moral, da maioria dos pretensos líderes partidários... (FARHAT, 1968, p. 302)

Esta asfixia espiritual contaminava todos os partidos, todas as lideranças, criando a indecisão pendular característica da política brasileira. Emil FARHAT descreve o partido socialista e sua obsessão em antes de agir ‘saber o que pensariam os comunistas’. A UDN, formada pelos ideais da classe média, totalmente desfigurada de ideais. O trabalhismo brasileiro, sem o idealismo de Fernando Ferrari e Alberto Pasqualini. A democracia-cristã acendendo uma vela a Deus e outra ao diabo era a figura do adesismo.

Uma grande dose da descrença popular na integridade dos partidos, e na do próprio Congresso, vinha da complacência com o bifrontismo e com a duplicidade, e da falta de sanção e penalidade para o vira-folhismo” (p. 308).

Para não ousar perigosamente, para não ter de decidir ou optar, enrodilhavam-se em razões, leis, regulamentos, obrigações, consensos; embarafustavam pelo Dédalo de mil opiniões contraditórias e esticavam ao infinito os motivos para a indecisão, para a procrastinação de qualquer solução corajosa dos problemas (p. 309).

A obstinada e exclusiva preocupação da sobrevivência tem sido a principal força que comanda o vaivém pendular dos políticos sem bagagem nem coragem. Prisioneiros do seu meio, escravos da multidão, obcecados pela aritmética das urnas e pela contagem dos aplausos, eles se tornam presas fáceis das flutuações da opinião pública, espontâneas ou forjadas. E, diante dos nevoeiros, não tendo luzes próprias, caminham desarvorados como fantasmas, tentando apalpar o pulso do povaréu, em busca da rota que todos estiverem seguindo.... (p. 310)

A incapacidade do chamado ‘bacharelismo’ para a visualização das coisas concretas, e sobretudo o seu permanente temor em quebrar o equilíbrio de forças e ferir a imutabilidade da paisagem humana e social, se entremostram repetidos melancolicamente ao longo de nossa História. Somente a enfadonha sucessão desses búdicos e cautelosos cultores do imobilismo é que explica em nossa vida pública a prolongada sobrevivência de males, erros ou situações intoleráveis – como, por exemplo, a escravatura – só resolvida praticamente pela incontível violência da crise ou pelo apodrecimento dos grupamentos ou reações a ela contrários (FARHAT, 1968, p. 312-313).

Temos algumas lições a tirar dessas observações dos anos 60? Considere a transposição do São Francisco, um projeto acalentado desde o Império em que o atual governo (representado por um nordestino que se gaba de seus 80% de popularidade) se acovardou por causa de um bispo e meia dúzia de esbravejadores. E assim podemos desfilar projetos, estratégias de desenvolvimento, todas esquecidas na poeira dos escaninhos, na escuridão dos arquivos. A ‘indecisão pendular’ faz parte da nossa constituição como sistema político. O político indeciso não consegue se mover quando se colocam os interesses da Nação: tudo se procrastina. Se não há lucros concretos de seus agentes envolvidos na definição de metas, então as ideias se decantam no lodo do tempo. Mas quando os interesses patrimonialistas entram em ação tudo se move rápida e celeremente. Então os papeis andam, os carimbos ribombam nos ares, as assinaturas garatujam pomposamente os processos, as ordens perfilam a máquina burocrática com indisfarçável fluidez e cobrança do suborno em ação na apropriação do capital social.

O flagelo da seca do nordeste já era laconicamente apontado por FARHAT:

O primeiro que procurou uma solução mais sistematizada do problema foi o grande homem público que se chamou Epitácio Pessoa. O governo Epitácio concentrou o que parecia ser o melhor de suas forças administrativas na construção de numerosos pequenos açudes. Mas um deles, o de Orós, era gigantesco e, não tendo sido completado no período do presidente que o iniciou (1922) caiu também sob as consequências da falta de continuidade administrativa, tão característica das coisas governamentais – e só veio a ser terminado 40 anos depois, em 1960 ... com um espetacular rompimento de sua barragem, que estava em vias de conclusão...

Ainda aí, infiltrada nessa boa vontade que tentava resolver em ritmo de cágado o problema das secas, aparece também a indecisão pendular, o receio de enfrentar frontalmente a consequência mais imediata da açudagem: os problemas político-sociais do SEU APROVEITAMENTO POR TODA A COMUNIDADE. Nunca se decidiu de que maneira – ou nunca se executou a decisão do modo por que – as populações regionais, e não apenas os proprietários das terras ribeirinhas, tirariam proveito das massas d’água acumuladas mediante aqueles imensos gastos públicos. Ficaram adiadas indefinidamente as redes de canais que poderiam levar as águas dominadas a ter a utilidade primacial que delas se buscava: a irrigação das centenas de milhares de propriedades que esperavam o seu benefício.

Em entrevista concedida a vários jornais e publicada no ‘Diário de Notícias’ do Rio em julho de 1964, o ministro Marechal Juarez Távora confirmava e lamentava: ‘Orós tem 2,3 bilhões de metros cúbicos represados, mas sem qualquer vantagem para a região, pois até hoje não há um palmo verde de irrigação, nem 1 kw de instalação e nada se produz lá’.

Essa maneira de fazer a meio, de adiar a solução final dos problemas, de continuamente contornar as conveniências do ‘status quo’, tornou os açudes nordestinos muito mais um embelezamento da paisagem do que uma correlação da economia; dir-se-ia uma açudagem literária, feita para atender às vigorosas e emocionantes mensagens dos escritores da região que, com a maravilhosa carpintaria das suas páginas candentes, conseguiram por diante dos olhos e do coração do Brasil, num palco, único, o drama da terra comburida pelas secas e o das almas ressequidas pela miséria e pela secular desassistência.

Os sintomas mais característicos do ‘bacharelismo’ – a falta de objetividade e o imobilismo búdico – depois de tantas décadas, vindos das estufas veludosas do Império e cultivados nas prateleiras da República, contagiaram o corpo administrativo do Brasil, dando uma ‘fisionomia profissional’ única aos homens de governo em todos os escalões do poder: presidentes, ministros, governadores, prefeitos. Todos tinham a mesma inerte postura, a mesma prudência de ‘não fazer nada’, não tocar na caixa de marimbondos da cobrança EFICIENTE dos impostos, não brincar com o fogo das inovações incômodas e revolucionárias, ou cuidar apenas das fachadas sem remexer nas velharias, aleijões, imundícies ou escombros do fundo do quintal (FARHAT, 1968, p. 317-318).

A interpretação deste site, no entanto, difere da fornecida por FARHAT. Insistimos no ponto de que o subcapitalismo brasileiro é mantido pelo sistema político-burocrático para fins de drenagem de recursos permanentes da União para as oligarquias regionais. Uma inversão do colonialismo onde a metrópole determinava a direção do fluxo de capital, passa na república do semicapitalismo como uma força permanente para reivindicar recursos que só poderão chegar se os problemas FICAREM SEM SOLUÇÃO. Portanto, toda a atividade política deve ser canalizada para a escassez, para garantir a necessária intervenção das verbas, para ‘resolver os problemas’, que devem ficar ainda irresolvidos, ao menos em parte, ou até quem sabe, sabotados (rebentando a barragem) para que o problema não se solucione, e a miséria e a carência possam em novo ciclo requisitar o concurso da proteção política que novamente irá para os bolsos da canalhocracia e o problema continuar ‘impávido colosso’. INSISTIMOS NESTE PONTO: o subdesenvolvimento brasileiro é perfeitamente elaborado para não resolver os problemas e todos os políticos que saem fora do diapasão das promessas (tão necessárias em campanhas) logo são arrastados para a calúnia e ignomínia e terminam no limbo da inelegibilidade: quem não aprendeu esta lição nunca esteve na intimidade da política e não conhece o Brasil fora das cátedras, dos institutos de estudos, das bibliotecas recheadas de obras inúteis, de papagaiadas ridículas, de teorias sociológicas lamentáveis.

O colonialismo por inversão, em que as elites locais constituem uma oligarquia confiscadora dos recursos públicos de Brasília, tem se mantido estável e permanecerá como tal enquanto os fundamentos do sistema político permanecerem como tal. O nordeste tem sua história de secas no antigo Departamento Nacional de Obras contra a Seca (DNOCS), fechado por avassaladora e incontornável maré corruptora, e agora em vias de ressurreição. E a destinação dos royalties do pré-sal para estados e municípios só fará aumentar a corrupção no país e enrijecer o sistema político com um braço no cangaço e outro no voto.


As ‘chaves’ comunistas: terror intelectual e terror econômico

Neste capítulo, contando quase anedotas da vida política, FARHAT mostra como os políticos ficaram emparedados nos anos 60 com o medo atroz da pecha de ‘reacionários’, ‘vende-pátria’ e qualquer outra denominação que a emergência comunista atribuía a seus adversários. Qualquer iniciativa para resolver problemas de infra-estrutura que contasse com o capital privado, ou com empréstimos internacionais era logo forçada à desistência sob o pesaroso medo de comprometer-se com o ‘imperialismo internacional’.

O nosso último episódio de terrorismo político ocorreu em 2006, com a campanha de Alckmin andando para trás ao ser denunciadas suas intenções de privatizar a Petrobras. Em vez de enfrentar a empáfia inimiga, Alckmin recuou atemorizado, colocou um jaleco ridículo com os símbolos do BB, BR e CEF e saiu desmentindo as calúnias, como se não tivesse de fazer o contrário, isto é, acuar os adversários com o sucesso espetacular para os cofres públicos das privatizações do setor siderúrgico e das telecomunicações do governo FHC.

E às voltas com mais uma eleição (2010), novas lavas de terrorismo político serão expelidas do vulcão traiçoeiro do marxismo sebento como erupções de fumaça e cinzas prontas para embaciar a visão dos eleitores com o medo atroz da privatização, da destinação do pré-sal para fora do círculo vicioso de ‘estados e municípios’.

Por terrorismo econômico, FARHAT argumenta a equação do ‘quanto pior melhor’ da estratégia leninista de sublevação e conquista do poder. De nossa parte, não é preciso ir tão longe: a simples visão sistêmica de empreendimento estatal versus privado, ampliação da presença estatal versus particular, já é por si só suficiente para garantir uma enorme massa de miseráveis servindo uma pequena oligarquia. É o modelito do eterno subdesenvolvimento, e todo reforço estatal significa acender uma vela ao atraso.

Ethevaldo Siqueira, colunista do Estadão, faz eco hoje (junho/2010) do mesmo bordão sobre a reativação da Telebrás, ao criticar o esvaziamento da ANATEL e do Ministério das Comunicações para passar decisões dessas pastas à Casa Civil:

... Na visão do grupo petista que comanda as mudanças, quanto menor for a capacidade de atuação da Anatel, mais problemas surgirão no setor de telecomunicações. Para esse grupo, quanto pior, melhor. O que lhe interessa é exatamente isso: torpedear a agência reguladora para desmoralizar o novo modelo institucional das telecomunicações e provar à opinião pública que a privatização “fracassou e não deu certo”. E, assim, justificar o avanço do projeto estatal. (http://blogs.estadao.com.br/ethevaldo-siqueira/)

O livro de FARHAT parece velho? Não há um traço sequer na sua argumentação que possa ser dada como superado sistemicamente, o que sugere uma lei da brasilidade: “conservando-se o sistema político, todas as mazelas sociais permanecem inalteradas em uma sociedade tripartite”. Por tripartite entendemos os nossos 3 sistemas: o subcapitalismo da pobreza, o semicapitalismo do governo e o capitalismo avançado e acuado da era Lula. Porque a pobreza é chaga resultante da estatização (não só de empresas, mas dos recursos gerados pelo sistema político), do loteamento político de seus cargos, depois dos déficits crônicos com o dinheiro dos impostos fluindo para sustentar o monstro estatal encarquilhado. E este ciclo sempre se sustenta pendularmente no Brasil, cuja sociedade em que por maior que sejam as reformas, por mais avanços que se façam em um momento de crise, logo a demagogia política, o empreguismo, o eleitoralismo e o concessionismo tratarão de implementar o DESMANCHE estatista e mergulhar o país em nova fase de retrocesso: “Quando os EUA ainda nada eram, o Brasil já tinha sido o maior produtor de madeira do mundo, o maior produtor de açúcar do mundo, o maior produtor de ouro do mundo, o maior produtor de trigo das Américas, o maior produtor de borracha do mundo, o maior produtor de café do mundo” (FARHAT, 1968, p. 370).

Quase ninguém sabe que na primeira metade do século XIX a experiência tritícola do Brasil foi pioneira, adequando-se esta lavoura em diversos locais do sul e centro-oeste, sendo suas mudas exportadas para o Uruguai e Argentina, de onde o trigo passou a ser importado no século XX e o Brasil nunca mais recuperou sua autossuficiência no cultivo do trigo.


Povo burro é povo pobre

Por fim, FARHAT investe contra o grave problema educacional brasileiro: naquela época as deficiências do ensino do Brasil pareciam avassaladoras, mas como um déficit que sempre aumenta, hoje são ainda maiores. Naquela época ainda não existia uma disseminação tão grande da ‘ignorantsia’ universitária em nossas cátedras de ciências humanas, tornando estas ciências quase uma caricatura do ‘pensar marxistóide’ nacional.

A questão da educação talvez seja o ponto de concentração mais discutido por todos os brasileiros carregados de idealismo por sua pátria e de decepção pelos estragos políticos de seus representantes eleitos. É onde o bom caráter dos esperançosos se concentra em busca de saída para a ignorância ululante feita matéria prima da esperteza parasitária em frente ampla com a incompetência administrativa, o espírito de marajaismo, a tendência indeclinável ao descaso com o dinheiro público e à corrupção generalizada.

FARHAT não foi diferente. Em seu livro ‘Educação a Nova Ideologia’ (1975) tratou especificamente do tema. A crônica dos nossos desperdícios com projetos suntuosos, com mega-universidades centralizadas no lugar de cursos técnicos espalhados pelo país, com universidades quase sem alunos e com uma quantidade de professores muito acima da média dos demais países é a pedra de toque de suas análises.

Esse assunto começou a ser apresentado ao país – com mais substância argumentativa – por Rui Barbosa em 1882 (Relatório Sobre o Ensino). Desde então a Educação nunca mais saiu da consciência intelectual e dos discursos políticos, mas, ao mesmo tempo, sempre viveu no precipício da insuficiência, na vertigem da falta de verbas, na iminência de desandar morro abaixo na frouxidão do espírito austero necessário à sua eficácia.

Mark Twain (1835-1910) dizia em um de seus epigramas: ‘I have never let my schooling interfere with my education’, indicando o que talvez somente na era da Internet venha a ter pleno significado: não há mais educação possível baseada apenas nos diplomas universitários, na certificação institucional. O século XXI está aberto àqueles que acreditam em educar a si mesmos, em complementar as lacunas terríveis da escola e a permitir o crescimento pessoal a despeito dos preconceitos e da superficialidade do ensino básico. O CAPITAL HUMANO é para Emil FARHAT a riqueza mais importante da sociedade moderna, e suas frases inimitáveis são a prova contundente de sua superioridade de argumentação e tirocínio.