segunda-feira, 16 de abril de 2012

Nossos Males e Seus Remédios

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo

Em 1963 o empresário carioca André Gama escreveu um pequeno livrinho chamado NOSSOS MALES E SEUS REMÉDIOS em que ensinava com meia dúzia de frases as causas de nossos problemas e como deveriam ser sanadas. Os capítulos desse livrinho de apenas 51 páginas possuem 1 ou 2 páginas. Foi uma cartilha para o povo ensinando o que era Custo de Vida, Salário, Produtividade, Capital, Capital Estrangeiro, Lucro, Dinheiro, Inflação, Prejuízos da Inflação, Finanças Públicas, Política, Democracia, Comunismo, Comunismo no Brasil, Nacionalismo, Monopólio Estatal, Política Salarial, Política Exterior, Reforma Agrária, Abastecimento, Reforma Eleitoral, Reformas de Base, Parlamentarismo, Reformas dos Homens e Conclusão.

A atualidade de seus argumentos surpreende o leitor depois de 50 anos. Exceto pelo dinheiro que era o cruzeiro, e uns poucos comentários específicos da época, todo o resto é válido e eficaz. Achando que deveria se repetido, selecionei alguns itens, especialmente sobre política devido a proximidade das eleições, para o leitor desse blog.


REFORMA ELEITORAL

Esta é uma reforma indispensável para um Brasil melhor. Quando falam em reforma eleitoral, os comunistas e pelegos querem somente o voto de analfabetos. Se temos visto que o eleitor alfabetizado é fácil de ser enganado por eles, então do eleitor analfabeto nem se fala. Mas a reforma eleitoral que precisamos é outra.

Um candidato a deputado federal tem de gastar geralmente acima de 5 milhões de cruzeiros para se eleger e às vezes muito mais. Ele tem que viajar por grande parte do seu Estado para fazer comícios, colocar faixas, distribuir cédulas e conseguir apoio para a sua candidatura. Se for um homem honesto, é muito difícil que tenha este dinheiro para gastar assim. Só se for muito rico e tiver muita vontade de ser deputado. Se for desonesto, vai fazer alguma marmelada para reaver o dinheiro que gastou. Feita a primeira marmelada, não pára mais. Se o candidato for apoiado por um sindicato grande, então não precisa gastar dinheiro. Basta prometer trabalhar pelo aumento de salários, que o próprio sindicato faz correr a notícia que o candidato da "classe" é fulano de tal. E é assim que vêm os aumentos de salários e os aumentos do custo de vida e o aumento da inflação.

A mesma coisa, em escala menor, sucede com o candidato a deputado estadual, e a vereador, mas não está certo. Este sistema favorece os desonestos e desfavorece os honestos.

O certo é dividir o território em distritos eleitorais, proporcionais à população, de modo que cada distrito elege os seus representantes locais e cada partido ou coligação apresenta apenas um candidato em cada distrito. Isto, e mais a cédula única, acabarão com a influência do dinheiro nas eleições proporcionais, e todos pràticamente terão a oportunidade de votar em candidato que conhecem, sabem onde mora, ou pelo menos tiveram oportunidade de ver, ouvir e julgar.

Outro inconveniente do atual sistema é que, se seu candidato não tiver votos suficientes para eleger-se, o seu voto será contado a favor de outro candidato, no qual você não votou e que talvez seja até um desonesto.

Com estas reformas, o número de candidatos e de confusão seria muito diminuído, as despesas dos candidatos também, e estes acabariam vindo à sua casa ou ao seu bairro, para conhecerem as suas idéias e expor-lhe as dele. Enfim, os nossos representantes junto ao governo acabariam representando de fato os nossos anseios e os nossos ideais. Nenhum representante teria coragem de votar uma medida inflacionária ou contrária aos nossos interesses, se soubesse que teria de enfrentar-nos pessoalmente e dar-nos conta dos seus atos, antes das próximas eleições.

É preciso reformar também o critério das imunidades parlamentares. Um senador ou deputado não pode ser processado por crime. Isto está transformando o congresso em refúgio de criminosos, que gastam milhões para se elegerem e assim ficarem a salvo da justiça.


REFORMA DOS HOMENS

Acho que já vimos neste estudo bastante provas de que a maioria dos nossos males é causada pela falta de capacidade, de sinceridade e de honestidade dos nossos governantes. Mas a culpa é nossa, porque somos nós que os elegemos com o nosso voto.

Veja só, às vésperas de cada eleição vem um aumento de salários. Agora virá o 13º salário, o horário de 6 horas para mulheres e mais uma porção de vantagens. Para quê? Só para nos dar uma alegria passageira na hora de votar. Passada a eleição, é que vamos perceber que fomos roubados. Mas antes das eleições, um candidato vem e diz que foi ele quem inventou aquele aumento. Outro vem e diz que ele também votou a favor. Outro vem e promete novas vantagens se for eleito. E na conversa de um deles você vai. E vota nele. E ele fica mais rico, e você fica mais pobre. E o trouxa é sempre você. Porque você vota sempre no sem-vergonha e deixa o candidato honesto e capaz falando sozinho. Está bem. Tudo isso é verdade. Mas como é que nós podemos saber quem é honesto e quem não é? Como é que vamos saber quem é competente? Como é que vamos saber quem é sincero? Todos os candidatos fazem promessas de dias melhores. Todos falam bonito. Todos falam mal dos tubarões. Todos têm pena do pobre trabalhador. Todos falam mal da carestia. Como é que vamos saber?

Vamos pensar em algumas regras:
1) Não deixe de Votar. — O voto é a única arma do povo.
2) Não Vote em Branco. — Informe-se o mais possível sobre os candidatos. Se não encontrar um realmente bom, vote no menos ruim.
3) Não Desperdice Seu Voto. — O voto que dermos a um parente ou amigo, ou qualquer candidato sem possibilidade de ser eleito, é contado a favor de outro, que você não sabe quem será, e que pode não prestar.
4) Não Se Impressione Com Oratória. — Um bom orador pode falar bonito e não dizer nada que preste. Outro pode não falar bonito mas ter ideias claras e sensatas.
5) Não vote em candidatos de sindicatos. — A função dos sindicatos não é meter-se em política. É orientar o trabalhador para ser melhor empregado, é defender o trabalhador contra injustiças, é melhorar as suas condições de trabalho, é lutar pela melhoria salarial, que seja justa e necessária sem provocar inflação. Além disto, a maioria dos sindicatos está nas mãos de comunistas e o que eles querem é levar-nos ao desespero do sofrimento até aceitarmos a revolução comunista. O que eles querem é fazer greves para atrasar o progresso e causar confusão. O que eles querem é fazer passeatas e começar quebra-quebra. Na confusão quem toma conta são os comunistas.
6) Não vote a pedido de ninguém. — Vote pela sua consciência e não para agradar algum parente ou amigo.
7) Não vote em comunista. — Ninguém aparece abertamente como comunista, mas sempre disfarçado. Você os pode conhecer pela linguagem deles. Falam de socialismo e de capitalismo, de monopólio estatal, de Fidel Castro, das reivindicações populares, do voto para analfabetos, dos monopólios estrangeiros, do capital colonizador, das reivindicações dos trabalhadores, do nacionalismo, de proletariado, de camponeses, e ligas camponesas. Quem fala muito nestes assuntos e com estes termos é quase certo que seja comunista ou influenciado por eles.
8) Não vote em quem promete muito. — Quem promete demais não pretende dar nada. E' vigarista. Está pensando só em si.
9) Não vote em candidato populista. — Este é aquele sujeito que anda exibindo-se como homem do povo, em mangas de camisa na hora que devia estar de paletó e gravata, que fala linguagem de gíria. Este indivíduo é geralmente perigoso. Não tem linha, não tem escrúpulos, só quer eleger-se para enriquecer.
10) Não vote em heróis populares. — O que quero dizer é que não devemos votar em alguém simplesmente porque está em evidência pública. Pelé, Garrincha e Ângela Maria, são artistas do futebol e do rádio, são heróis populares com justíssima razão, mas talvez não sejam bons vereadores, deputados ou prefeitos. Respeite e admire cada um no seu lugar, mas não no lugar errado.
11) Vote em gente instruída. — Nem toda pessoa instruída tem capacidade para governar, mas a pessoa com pouca instrução é obrigada a agir e a pensar por palpite e não por estudo.
12) Vote em gente sensata. — O bom-senso é indispensável para dirigir ou governar qualquer coisa. Só instrução não basta.
13) Vote em candidato honrado. — Eu já ouvi dizer: "Voto nele porque ele rouba, mas faz alguma coisa". Ou então: "E' verdade que ele enriqueceu no governo, mas ele fez isto e aquilo de bom". São eleitores assim que prestigiam a desonestidade. Se todos os nossos governantes fossem honrados, honestos e sinceros não haveria as bandalheiras que conhecemos, nem a falta de compostura nos postos de governo.
14) Peça conselhos de uma pessoa capaz. — Quando se trata de cargos municipais, às vezes conhecemos alguns dos candidatos suficientemente para formar uma opinião própria. Mas quando se trata de cargos estaduais ou federais, é quase certo que não conhecemos nenhum dos candidatos. Não sabendo quem é bom, peça conselhos a uma pessoa capaz e respeitada, que mereça a sua confiança.


MONOPÓLIO ESTATAL

Já vimos no capítulo anterior que os nacionalistas querem impedir os estrangeiros de explorarem os nossos recursos naturais. Mas eles querem mais ainda. Querem impedir também os brasileiros. Querem que estes serviços sejam explorados pelo Governo.

Alguns desses serviços já estão sendo explorados pelo Governo, como a F. N. M., o Lloyd Brasileiro, a Companhia Nacional de Navegação Costeira, quase todos os portos, a Rede Ferroviária Nacional, a Companhia Nacional de Álcalis, e mais algumas.

Pois bem. Estas empresas deveriam dar lucro ao Governo. Mas dão prejuízo. E o prejuízo do governo é prejuízo do povo. Seu e meu. Dão prejuízo porque prestam maus serviços e estão infestados de empregados políticos que não trabalham. E para justificar os grandes ordenados dos que não trabalham, é preciso pagar grandes ordenados também aos que trabalham. Conheço um moço que trabalha na Petrobrás. Ele foi meu colega na mesma empresa onde eu trabalho e que paga bem. Se ele estivesse aqui estaria ganhando 30 ou 32 contos por mês, como os colegas da mesma categoria. Na Petrobrás ele ganha 60 contos, salário que ele não poderia ganhar em nenhuma empresa particular.

O resultado disto é que o prejuízo destas empresas do Governo nos custaram 80 bilhões de cruzeiros em 1961 e vão nos custar cerca de 120 bilhões em 1962. Trocando tudo isto em miúdos, sabe quanto dá? Cada brasileiro, homem, mulher e criança paga Cr$ 1.700,00 por ano para pagar esses grandes salários das empresas estatais. O prejuízo destas poucas empresas estatais é o dobro do lucro distribuído por todas as empresas privadas do Brasil! Isto é uma coisa fabulosa I Algumas dezenas de milhares de firmas privadas distribuem lucros de 40 bilhões. Uma dezena de empresas estatais dão prejuízo de 80 bilhões!

Mas não é só isto. Além de darem prejuízo, às vezes aumentam brutalmente os preços. A Companhia Nacional de Álcalis produz soda barrilha, que é utilizada na fabricação de sabão, de velas, nas fábricas de tecidos e em muitas outras indústrias. Quando ela começou a funcionar em 1961, o preço da barrilha importada era de Cr$ 9,90 por quilo. O imposto de importação, que era de 10%, foi aumentado para 40% e só se pode agora importar com quotas, depois de se comprar toda a produção nacional. Com isto a barrilha nacional passou a custar Cr$ 43,00. E o pior é que a importação só pode ser feita pela Cia. De Álcalis, que vai importar a Cr$ 9,90 para vender a Cr$ 43,00. Quem paga por isto? E' quem gasta sabão e quem gasta tecidos. Somos nós.

Agora vem a Eletrobrás, que já foi decretada, que vai ter o monopólio da energia elétrica e vai ser explorada pelo Governo. É um erro tremendo que vamos cometer. Em primeiro lugar, porque vamos gastar bilhões de cruzeiros para comprar o que já é nosso. Isto é, para comprar as empresas que já estão instaladas e servindo ao Brasil de energia elétrica. Segundo, porque vamos pagar muito mais caro pela energia da Eletrobrás. Vai ser a mesma coisa que com a soda barrilha. O custo da energia vai dobrar, para pagar funcionários que não trabalham. Em terceiro lugar, porque o fornecimento de energia elétrica é um dos negócios menos rendosos que existe. São precisos oito contos de capital para produzir um conto de energia, ao passo que outras indústrias em geral só precisam de dois contos de capital para produzir um conto de mercadorias. Se o governo gastasse esse mesmo dinheiro em produzir outras coisas que nos estão fazendo falta, teríamos quatro vezes mais benefícios com o mesmo dinheiro. Mas acontece que o governo nem tem o dinheiro que pretende gastar. Vai emitir dinheiro falso [sem base monetária] e aumentar a inflação.

É isto mesmo o que querem os comunistas disfarçados de nacionalistas. Querem que a nossa vida se torne insuportável até o desespero, para permitir-lhes fazer a revolução comunista.

Monopólio Estatal é Ditadura. O Governo já tem poderes exagerados e perigosos. Pode nomear milhares de funcionários, sem concurso, para o serviço público, autarquias e Institutos, que ele enche de protegidos e pelegos. Ele tem o poder de emitir dinheiro falso [moeda sem lastro] e de propiciar negociatas para os seus amigos. Tem o poder de perseguir os opositores, de corromper e comprar consciências. Só lhe falta botar a mão nas fontes de produção e de riquezas, para tornar-se empregador único, colocar os seus pelegos em toda parte e assim estabelecer a ditadura total.

Monopólio Estatal é Comunismo. No momento em que o Estado se torna o único empregador e dono das principais fontes de riqueza, isto é comunismo. Ninguém é mais dono do seu nariz. Ninguém arranja emprego sem curvar-se ao patrão único, nem mudar de emprego, porque o patrão é sempre o mesmo. Desaparecem a liberdade e a justiça, porque o Estado tem o poder de impor a sua vontade. Desaparece até a religião, porque o Estado se transforma em religião.

Os comunistas querem o monopólio estatal, porque é comunismo já prontinho. Só falta o Partido tomar conta, dissolver as Forças Armadas e o Congresso, assassinar a oposição, chamar os Russos para levar o que quiserem e botar aqui o seu exército para garantir o Partido quando o povo se revoltar. Exatamente como aconteceu em Cuba. Até os candidatos a Fidel Castro já estão ensaiando o seu papel.


terça-feira, 29 de novembro de 2011

O nome do jogo

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo

O nome do jogo de Will Eisner

Uma história em quadrinhos (HQ) que causou extensos comentários na Internet a partir de uma notícia veiculada pela afiliada da TV Globo em Vila Velha, depois que uma mãe denunciou o conteúdo. Seu filho teria recebido o livro da biblioteca da escola para fazer um trabalho escolar. A reportagem mostra algumas figuras de um homem na cama com uma mulher (ambos cobertos), e outra mulher recebendo bofetadas de um homem. Isto caracterizaria o livro como politicamente incorreto para a escola, que ao receber a notícia prometeu recolher o exemplar. Ocorre que o livro foi distribuído em todo o país pelo MEC e não se sabe de nenhum comunicado oficial do Ministério da Educação sobre o destino do livro.

Mas do que trata o livro, afinal, para que tenha causado tanta indignação? Trata-se da história fictícia de uma família judaica, os Arnheim, imigrantes da Alemanha, que se estabeleceu em Nova York e prosperou nos negócios de confecção de espartilhos, no final do século XIX. Com a mudança nos hábitos de vestir, o filho do patriarca Moses chamado Isidore passou para a área financeira, e a família tornou-se socialmente uma das mais importantes do início do século no ramo de corretagem de valores, disputando clientes e fortunas com negócios imobiliários e na bolsa de valores.

Entretanto, o propósito de Eisner é mostrar a disjunção entre as gerações de famílias cujos filhos não só não seguem o caminho dos pais, como naufragam na dissolução moral do caráter e relações familiares. Para os novos ricos emergentes, o único sentido da vida revela-se na ostentação e ambição que se materializam no modo de agir condizente com o auto-reconhecimento trazido pelo dinheiro.

Isidore casou-se e teve 2 filhos, Alex e Conrad. A história gira em torno destes 2 rapazes, que criados em um ambiente de superproteção descambam para a irresponsabilidade, para a vida endiabrada na adolescência e depois para a devassidão moral e ética na idade adulta. Todo o conflito ocorre entre o sentimento de ser aceito na comunidade judaica, como família endinheirada e influente, e na contradição entre a vida mundana, o desregramento social e os conflitos familiares.

A história avança com a injunção de outras famílias judaicas pelo casamento e pelo arranjo de interesses. Will Eisner trabalha com o temperamento humano, especialmente o caráter ambicioso das mulheres em ascender socialmente através do casamento e do ambiente social ancorado na hipocrisia e no dinheirismo. Com isso, Eisner se torna um crítico impiedoso da sociedade da época, mas escorrega demais na têmpera, deixando a porta aberta para que seu trabalho seja utilizado como propaganda contra os ricos, por apresentá-los muito mais sovinas e inescrupulosos do que na realidade, e mostrar as constantes humilhações a que são submetidas as pessoas de condição social inferior e as criadas, que até mesmo são estupradas pela licenciosidade dos 2 rapazes incontidos.

Não se trata, portanto, de literatura para adolescentes, pois Eisner não está interessado no conflito moral, mas apenas em mostrar o quadro de infelicidade resultante da busca desesperada pelo poder. Seu tom não esconde certa obsessão pela depravação. Traçando um perfil excessivamente negativo da vida social da alta classe, Eisner sem querer se prestou à propaganda política do petismo, razão pela qual foi patrocinada pelo MEC como instrumento de educação sobre a luta de classes nas escolas públicas.

O politicamente correto da história, na concepção petista em que ‘ricos não são felizes, nem intimamente boa gente’ segundo o estereótipo marxista, contrasta com o politicamente correto na educação juvenil – maridos espancando mulheres, frequentando lupanares, estuprando criadas, casamentos desfeitos na vida real mas mantidos por conveniência. Poderia ser um bom argumento para uma história que se passasse em Brasília dos dias atuais, exceto pela ausência total da pior de todas as hipocrisias: a de ladrões de dinheiro público que se fazem passar por revolucionários, representantes do povo e infâmias tais que Eisner, naturalmente, não poderia passar nem perto, uma vez que seus conflitos não pecam por falta de legitimidade na obtenção de riqueza.

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terça-feira, 22 de novembro de 2011

Uma Máscara Verde

"Retirado en la paz de estos desiertos,
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y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo

Uma máscara verde

Última atualização: 14/01/2011 — by Carlos U. Pozzobon

“A bem-sucedida fusão da ciência ambiental com uma espiritualidade efêmera e mal definida, com frequência, apressadamente tomada de empréstimo a povos nativos, também me incomodava. Parecia-me que a finalidade desta fusão era silenciar o debate. Uma ciência capenga e propostas de gerenciamento global atreladas podiam ser jogadas para o domínio do inquestionável, desde que embrulhadas na penumbra da santidade (p. 255. DEWAR, Elaine: Uma Demão de Verde (Cloak of Green), Capax Dei Editora Ltda., 2007).

No início de 1989 participei de um projeto de reativação das rotas de rádio de baixa capacidade, ao longo da estrada de ferro Carajás, sob um contrato que a Cia. Vale do Rio Doce tinha com a Promon Engenharia. Eram rádios que transmitiriam a sinalização ferroviária distribuída ao longo dos trilhos de exportação de minério de ferro. Parte do caminho era servido por rodovias asfaltadas, mas o acesso às estações de microondas era todo feito em estrada de terra. Obrigada a percorrer todas as estações de rádio, minha turma se deslocava a partir de São Luis do Maranhão cada vez mais longe, passando por locais em meio à selva amazônica onde as estradas se transformavam em açudes represados momentaneamente durante a chuva, obrigando-nos a empurrar o carro atolado, quando não tínhamos que desviar as fendas e valas abertas pela erosão, que desfiguravam qualquer ideia de estrada transitável. As pontes eram um verdadeiro desafio para qualquer motorista: frequentemente tínhamos que arrastar toras de madeira para completar as falhas na estrutura suspensa para permitir que o pneu passasse pelas valas entre uma e outra viga. Outras vezes o carro deslizava sobre tais pontes com pranchas perigosamente soltas, obrigando o motorista a ser comandado externamente e a fazer manobras espetaculares para desviar obstáculos de todo tipo.

Sentado na calçada de uma das estações bem próximas da asfaltada rodovia Belém-Brasília, eu ficava contando os caminhões carregados com toras de madeira extraídas ilegalmente da selva. Veículos caindo aos pedaços carregavam apenas uma árvore cortada em 3 toras e zuniam em direção ao sul. A cada 5 – 10 minutos passava um dos tais caminhões. Ao longo das rodovias secundárias frequentemente encontrávamos caminhões atolados em valas ou atravessados na estrada. Quase todos eram conduzidos por aventureiros do sul que além de motoristas eram empreendedores de motosserra, com 2 ou 3 auxiliares nativos, ex-garimpeiros e matutos que se prestavam ao serviço de carregar as toras para os caminhões.

O frenesi madeireiro eventualmente chamava a atenção da mídia, que dedicava matérias em suas publicações, mas o que vinha se alinhavando era um novo movimento internacional que misturava terras indígenas, depredação ambiental e negócios os mais diversos e imagináveis.


Índios latifundiários de boutique

É esse panaroma que nos oferece a canadense Elaine Dewar com seu livro “Uma Demão de Verde”. Preocupada com as denúncias de que a devastação das florestas tropicais causaria problemas ambientais em todo o mundo, Elaine começou a se interessar pela questão a partir de uma viagem do índio brasileiro Paulinho Paiakan a Toronto, em novembro de 1988, com a finalidade de chamar atenção para o problema da destruição das florestas tropicais. Paiakan era chefe dos caiapós, e suficientemente aculturado para expressar com clareza os reclames indígenas sobre áreas de demarcação de suas comunidades, e também um ícone evidente para ser mostrado em reuniões sociais e eventos públicos, mais tarde substituído por Raoni.

De proteção das florestas, Dewar mostra que uma grande rede de organizações no Canadá, EUA, Europa e Brasil se formava para tirar proveito delas. Por trás da cortina de fumaça da proteção ambiental, da proteção aos povos da floresta, moviam-se organizações com finalidades comerciais de exploração dos recursos indígenas. Aparentemente não deveria haver ilegalidade entre a demarcação de terras indígenas e a exploração ambiental. Mas uma análise detalhada mostrou que os subterfúgios dessas organizações iam desde a aquisição de matérias primas até a concessão de privilégios aos índios, menos aos moradores da região. Criou-se assim um monstro latifundiário controlado por índios que enriqueceram com a venda de direitos de exploração de madeira, mineração e produtos florestais a despeito dos demais habitantes da Amazônia.

Inicialmente, Paiakan ganhou notoriedade internacional como protetor das florestas. A partir daí, juntamente com seus caciques, passou a vender direitos de mineração, mogno para exportadores, e óleos especiais para empresas de cosméticos como a ‘Body Shop’ da Inglaterra, empresa fortemente envolvida em causas ambientais para interesse próprio.
De protetores da floresta, eles se transformaram em cúmplices e parceiros de sua depredação. Organizações não governamentais se associaram a organizações estatais na pilhagem dos recursos. De dentro do IBAMA, saíam autorizações para abate de árvores e exportação de produtos nativos. Em outra frente, a pecuária avançava ocupando territórios com a queima de florestas intactas. As fazendas se multiplicavam e o rebanho bovino brasileiro se transformou no maior do mundo.


Índios rentistas

O caso do garimpo é sintomático. Os caiapós recebiam 13% do ouro extraído pelo garimpo em suas terras. Em consequência, “o rio Fresco, perto de Gorotire [a aldeia Caiapó], se tornara tão poluído, que a água potável tinha que ser trazida de outro rio situado a duas horas de distância... Além do fato de que a chegada de garimpeiros vinha sempre acompanhada de doenças sexualmente transmissíveis, violência e exploração sexual. E os caiapós eram parceiros nesta devastação” (p. 94), conforme confidenciou um antropólogo ligado ao Banco Mundial, que não quis se identificar, para Elaine Dewar.

Ora, se as terras indígenas tinham função de reserva ecológica, por que os índios detinham o monopólio do direito à exploração? Se uma reserva ecológica (cuja evolução natural seria um parque nacional) é por definição um território reservado para impedir sua ocupação pelo agronegócio, que poderia transformar sua superfície nativa em fazendas para qualquer finalidade, como explicar que os índios tivessem direitos a esse patrimônio que pertence a toda a nação?

A explicação para isso vinha da mentalidade acadêmica terceiro-mundista distorcida pela visão ideológica da antropologia social ensinada em nossas universidades em que, segundo Dewar, o marxismo era como pedra de toque da antropologia. Seu informante dizia que “os antropólogos são românticos profissionalmente insatisfeitos com a sociedade em que vivem. Eles olham os povos primitivos como modelos para as formas sociais que faltam na nossa própria sociedade (p. 95)”. Essa corrente da antropologia atribuía absolutismo moral aos indígenas, que, se fossem favorecidos, iriam restaurar o meio ambiente, e esquecia que os indígenas eram parte do problema ambiental e não de uma solução simplista.

O ativismo antropológico levou a manifestações contra a construção de barragens ao longo do Rio Xingu, cuja materialização, vinte anos depois, encontra-se no projeto licitado em 2010 da Usina de Belo Monte. No final dos anos 80, equipes da Eletronorte percorreram o Xingu para demarcar pontos de possíveis aproveitamentos hidrelétricos. A publicação do relatório mostrando 8 desses pontos gerou uma polêmica que se espalhou mundo afora e resultou no grande encontro de Altamira em junho 1988. Nesse encontro, mais de 100 grupos ambientalistas disputaram as manifestações contra as barragens.


Entram em cena as ONGs

Com temas os mais diversos possíveis, o encontro de Altamira chamou a atenção de Dewar sobre a justificativa intelectual dos antropólogos para o ingresso dos indígenas no butim das riquezas da região. No velho estilo de transformar uma cultura em seres tutelados, os antropólogos diziam que “o ato da antropologia é uma elevação de consciências, dando a eles [índios] um vocabulário de defesa. Então, ocorre a abertura de oportunidades, há espaço político para que eles sejam ouvidos. Nós conhecemos e podemos ajudar a formar o espaço político para eles. Então, está a questão de tornar os povos nativos financeiramente independentes.... Se os caiapós não tivessem o dinheiro do garimpo, eles não poderiam ter-se organizado para insistir na inclusão de estatutos na Constituição [de 1988]. Eu não podia acreditar que tinha ouvido direito o que ele disse. Primeiro, ele havia desvalorizado a seriedade do fato de os caiapós estarem lucrando com a degradação ambiental; depois, reincorporou este comportamento em seu argumento como se fosse uma virtude.” (p. 97). Dewar inteligentemente percebeu que os índios ganhavam cada vez mais audiência internacional à medida que comercializavam seus produtos com empresas internacionais. Portanto, se quisessem ser ouvidos pelas sociedades maiores, “eles deveriam começar vendendo os seus recursos” (p. 97).

Mas tem o outro lado da moeda. Na mesma época, Pedro Malan era diretor-executivo vogal da representação brasileira no Banco Mundial, que também representava os países do Caribe. O Banco era o local onde as pressões se faziam sentir no tocante ao financiamento de fundos administrados por ele para assistência e consultoria ambiental e para projetos de desenvolvimento.

Inicialmente, o Banco resistiu ao ataque ambientalista. Mas, logo as manifestações de rua contra o Banco, durante sua reunião anual em Berlin, obrigaram-no a reconsiderar sua estratégia que então passou a se interessar em colaborar com a questão ambiental, distribuindo em todo o mundo um documento manifestando sua disposição de contratar consultores. A partir de então, milhares de consultas chegaram até Malan. Só em São Paulo, o Banco identificou 3000 ONGs, a maioria delas eram entidades locais, de base, ligadas a partidos políticos.

“O quadro pintado por Malan era de centenas, possivelmente milhares de grupos suspeitos se fazendo passar por organizações representativas, ou pior, atuando como frentes de partidos políticos e se agrupando em torno do Banco Mundial como moscas rodando um pote global de verbas eleitoreiras. Malan achava que o Banco deveria trabalhar com ONGs que tinham contribuições a fazer. ‘Mas o banco entrou no atacado, envolvendo qualquer um que estivesse preocupado, sem fazer distinção entre preocupações e conhecimento’ “ (p. 128-129).
A partir de então, inicia-se uma fase de interferência política nas decisões ambientais, que se transformam em plataforma eleitoral de candidatos e grupos atuantes em comunidades indígenas. Em alguns casos, ONGs internacionais chegavam a se imiscuir até mesmo em assuntos de soberania nacional. Em outros casos, as ONGs atuavam como pontas de lança de interesses de suas matrizes.


No vale-tudo proteção vira degradação ambiental

Assim, “a abertura da Amazônia ao pleno desenvolvimento ameaçava as indústrias de madeira e mineração canadenses, que compreendem uma proporção significativa dos postos de trabalho para os canadenses” (p. 170). Com essa finalidade, a rede de entidades ambientalistas poderia estar protestando em eventos tais como o Forum Econômico Mundial, na defesa dos interesses estrangeiros, com a cortina de fumaça de proteção da biodiversidade e das matas amazônicas. De fato, a confusão reinante até hoje na exploração florestal da Amazônia, a despeito de tantos projetos de autoconservação, demonstra como certas soluções técnicas esbarram em dificuldades políticas quando os órgãos ambientais do Estado se transformam em instrumentos de disputa de interesses. E, ao fim e ao cabo, o contraditório de interesses resvala para a degradação ambiental com o nome de proteção ambiental.

Um dos casos relatados por Dewar ocorreu contra a Paranapanema, que explorava estanho em terras indígenas. “No início da década de 1980, os índios, anteriormente amistosos, se tornaram hostis. Observou-se que entre os índios havia algumas pessoas que trabalhavam para uma organização católica. Esta organização recebia dinheiro da Suíça, Grã-Bretanha, França e Austrália. Um detetive particular suíço foi contratado para obter informações sobre quem dava dinheiro para esse grupo católico que parecia estar enraivecendo os índios contra a Paranapanema. O detetive relatou que certas empresas estrangeiras que tinham minas de estanho na África e na Austrália, preocupadas com a capacidade da Paranapanema de extrair estanho a baixo custo, estavam de alguma forma incentivando as atividades de ONGs em favor dos índios no Brasil. Por quê? Esperava-se que isto causasse problemas para a produção e aumentasse os custos para a colocação desse estanho no mercado” (p. 193-194).

Essas e outras histórias cobrem o período do nascimento das ONGs na esteira do ambientalismo, nos anos 70, até a conferência Rio 92, em que diversas ONGs fantasmas participaram para garantir a votação de propostas dos grupos organizados na “Agenda” internacional. Em seu livro, Elaine esmiuça cada uma dessas entidades, como a World Wildlife Fund, a CIDA (Agência de Desenvolvimento Canadense), o CEDI (Centro Ecumênico de Documentação de Informação), Sobrevivência Cultural, Pollution Probe e outras, com a intenção de conhecer seus dirigentes, seus orçamentos e suas nebulosas prestações de contas, quase sempre batendo de frente com a falta de transparência com despesas inqualificáveis, e, com isso, consome um excesso de páginas na descrição de biografias de dirigentes e suas conexões internacionais, transformando o livro mais em um alfarrábio de currículos do que em uma análise de casos de degradação ambiental.


Proteção ambiental do bolso dos ongueiros

O Brasil, por sua vez, sempre esteve aberto à cooperação internacional, e, de fato, diversas empresas de preservação se organizaram com verbas estrangeiras, como a Fundação SOS Mata Atlântica. A questão é saber como separar atividades preservacionistas do fundamentalismo ecológico, e este do financiamento para fins de estelionato eleitoral.

Como o livro de Elaine Dewar se encerra em 1995, podemos observar que a primeira década do século XXI ainda está para ser vasculhada pelo jornalismo independente, tendo em vista a omissão voluntária no governo Lula da publicação da lista de ONGs premiadas com financiamentos: uma atitude que não só desrespeita a transparência essencial ao processo democrático, como comprova que a questão ambiental se transformou em apêndice político-partidário para fins eleitorais.

Sem controle, e comandado pelo Estado aparelhado sem nenhum impedimento, o ambientalismo, juntamente com o movimento quilombola e o indigenismo, enfim aderiram ao totalitarismo, e se transformaram em uma espécie de cão-de-guarda de interesses do partido no poder e das organizações econômicas especialmente selecionadas para a pilhagem nos territórios demarcados como “reservas”.

No tocante ao governo, o próprio Estado não se vê coagido a cumprir com suas obrigações, especialmente na área de saneamento, a verdadeira tragédia da poluição nacional, já que seus ambientalistas estão entrincheirados nos cargos públicos para agir com o pilatismo de praxe. Em vista disso, o tratamento de esgotos em cidades continua defasado e sem solução, com o passar dos anos. Florianópolis, que se orgulha de seu desenvolvimento espetacular, acumula uma estrutura de esgotamento vergonhosa e incompatível com sua opulência. Não por acaso é uma cidade onde o ambientalismo xiita domina os órgãos públicos, e em que retirar uma árvore do pátio requer um calvário de requisições e autorizações, enquanto as verdadeiras questões ambientais de responsabilidade do Estado podem ficar postergadas indefinidamente.
Na área rural, o fundamentalismo ambientalista evoluiu para a mais deslavada picaretagem. A lei que estabelece a reserva legal de 20% para as propriedades rurais do leste/sul do país indiscriminadamente, acrescida da obrigatoriedade de manter a mata ciliar em 30 metros de córregos e rios que cruzam a propriedade, criou um verdadeiro pandemônio em propriedades já existentes. Um proprietário, que tinha diversos córregos cruzando sua propriedade, resolveu utilizar as áreas de mata ciliar para plantar pinhão manso para obter biodiesel, tentando com isso diminuir o prejuízo da perda da área cultivável. Foi barrado por ONGs que não admitem que na área ciliar possa existir qualquer atividade econômica.


Caça as bruxas para justificar financiamento público

A interferência das ONGs, agindo como se fossem o Ministério Público, foi autorizada por lei, o que significa mais um arranjo totalitário na estrutura social brasileira. Para justificar as verbas que recebem do governo, as ONGs ambientalistas saem à caça de propriedades rurais irregulares e entram com ações civis públicas requerendo a punição com multa por descumprimento da lei. É a privatização do Ministério Público, para fins de coação legal. Com isso, não é preciso muita imaginação para saber por que a corrupção aumenta desenfreadamente no país.

Ora, uma lei que cria área de preservação permanente em encostas de montanhas com declividade superior a 45º, mananciais e várzeas, pode bater de frente em cultivos que já estão historicamente instalados em encostas, como o de videiras e macieiras, muito comuns no RS e SC. Obrigados a se enquadrar na lei, não faltarão defensores do direito adquirido, e com isso a lei passa a produzir distorções no processo produtivo, condenando extensas culturas permanentes a serem dizimadas ou sobreviverem à custa de liminares. É o inferno verde totalitário que, a fim de defender o ambiente, provoca um estado de permanente desgosto, incerteza, radicalização e intranquilidade, enquanto o governo assiste com sua característica anomia.

Como uma legislação supostamente protecionista, mas, na verdade, criada para servir de anteparo ao enriquecimento de picaretas e acadêmicos organizados em uma máfia de laudos, pareceres e levantamentos de campo, um neodoutorismo a serviço do cartorialismo legal, aliados a burocratas furiosamente contrários ao agronegócio, o ambientalismo se transforma em ideologia pelo completo desprezo para com a produção e o trabalho de nossos antepassados. O resultado é a inversão, onde por um atavismo histórico, os ambientalistas terminam protegendo índios, quilombolas e todos os que não contribuem para o pão que lhes chega à mesa, e terminam perseguindo a cultura de seus próprios avós e bisavós, que com o braço forte da perseverança transformaram o Brasil nativo e fértil em um dos maiores celeiros do mundo.

FIM


segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Memórias do Sobrinho de meu Tio

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo

Joaquim Manoel de Macedo (RJ 1820-1882).

Para quem se esqueceu das aulas de literatura brasileira, Joaquim Manoel de Macedo foi o autor de ‘A Moreninha’ de 1823, o primeiro romance brasileiro de importância histórica incontestável. A obra de Macedo não deveria ser esquecida da intelectualidade brasileira: uma coletânea de mais de 30 títulos, entre ensaios, história, novelas e teatro, alguns ainda não digitalizados (e desconhecidos) na biblioteca de domínio público.

O livro ‘Memórias do Sobrinho de Meu Tio’, escrito entre 1867-68, foi reeditado recentemente por mais de uma casa editorial. Sua importância extraordinária deve-se ao fato de ter sido a primeira novela a abordar o problema da corrupção política no Brasil. Os que acreditam que no tempo do Império havia mais seriedade com o dinheiro público deveriam ler este livro para se inteirar de que, no Brasil, a falência política do século XIX se manteve até o século XXI. As tentativas de se criar um novo sistema político foram todas frustradas, e a degradação moral dos tempos atuais é a mesma do tempo da guerra do Paraguai.

A história narrada por Macedo é bastante simples, mas surpreende que tenha sido contada em primeira pessoa, um artifício ainda não utilizado naquela época. Como o tio do narrador não tinha descendentes diretos, com a sua morte a herança foi distribuída entre os sobrinhos e parentes. Por conta do testamento, o narrador recebe 1/3 da herança, enquanto outra sobrinha mais distante, a Xiquinha, recebe ¼. O narrador decide então casar com a Xiquinha para aproveitar o dinheiro do dote na sua campanha política a deputado federal.

As peripécias do narrador constituem a grande revelação do mundo político de sua época. Com uma verve satírica lúcida, perspicaz e inconfundível, o narrador vai mostrando como desfilam as figuras parlamentares que detêm o poder no mundo social. Não é preciso muito esforço para concluir que se trata de uma confraria de saqueadores a serviço de si mesmos, com todas as divergências de opinião e conflito de interesses. Como diz o narrador se apresentando:

“Escreverei as minhas Memórias e, portanto, a história de minha vida, vida jeitosa e ilustre, como a de muitos outros varões da nossa terra que são o meu retrato por dentro, embora nenhum deles queira se parecer comigo por fora. Semelhança por dentro, dessemelhança por fora é simples questão de aparências que no fundo não pode prejudicar a fidelidade do retrato da família, pois que os pronunciados traços característicos que denunciam nossa irmandade estão muito mais no miolo que na casca” (p. I).

Com isso, sua primeira observação diz respeito à caracterização biológica desse bicho político chamado ministro de estado: “Que é mamífero não se pode contestar, pois aleita, embora à custa da nação, centenas de filhotes que compõem a sua imensa ninhada que se chama ou é a maioria artificial que ele próprio engendra.

“Que é ave, tudo o demonstra; porque não só modula e grazina, e ainda conforme as suas numerosas espécies, este é águia pelo voo, aquele águia pelas unhas, um papagaio que repete o que lhe ensinam, e dá o pé a seu dono, outro coruja pelo símbolo que representa: mas também porque a oposição o depena, e o deixa, pelo menos, sem asas, poupando-lhe as penas da cauda para que esta se mostre completa na exposição dada ao público.
“Que é réptil, tudo indica, porque rasteja pela terra, e morde até a quem o aqueceu no seio, como a serpente; é guloso, devorador a ponto de engolir sem mastigar, como o jacaré, e assemelha-se à tartaruga pelo número de ovos que empolha, e pelo das tartaruguinhas que vai arranjando para a glória da nação.
“Que é anfíbio, todos sabem, pois é capaz de viver no mar, e na terra, e até viveria perfeitamente no inferno: onde não pode viver é no céu.
“Que é peixe, ninguém o ignora, porque em primeiro lugar a isca é a sua paixão; em segundo, tem escamas com as quais nada para o sul ou para o norte, conforme as marés cheias do seu interesse; e em terceiro lugar, porque tem espinhas, e tão grandes que há muitos anos anda o Brasil engasgado com elas”.

Eis aí como se coloca ainda no prefácio o espírito satírico de Macedo. E logo após ele descreve os tipos de caras que compõem as situações políticas do país, uma preciosidade em qualquer texto sobre a nossa aparência quando investidos de mandatos políticos: uma cara oficial e outra cara natural, havendo ministros que têm umas cinquenta caras, sendo por isso verdadeiros polifrontes. Sua caracterização abrange:

“Cara de organização de gabinete: expansiva e pronta para exprimir todos os sentimentos.
“Cara de apresentação de programa: com ares de sacrifício, insondável, grave, dura, como a do convidado de pedra.
“Cara de primeiro dia de conselho no paço: meiga, contemplativa como tendo a alma em êxtase, comprida e fazendo sempre inclinações de cima para baixo, como a de manso cavalo de montaria.
“Cara de arranjo de maioria: risonha, alentadora, promissora e até patusca; mas pronta a modificar-se em ameaçadora, colérica, vingativa, como a face de Júpiter ao empunhar o raio.
“Cara de dia de despacho na secretaria: amarrotada, enfadada, malcriada e tudo que acaba em ada.
“Cara de hora de aperto por emprego que um pouco antes dera, cedendo ao empenho de um compadre imprescindível, e apesar dos compromissos tomados com um deputado ministerial que pedira o arranjo para si e que com ele contava;
Cara mefistofélica, enrugada, misteriosa, transpiradora de segredo fingido, dizendo em contrações eloquentes: ‘que havia eu de fazer? O homem não quis ...’
“Cara de resposta à oposição em minoria: sarcástica, desprezadora, soberba, como a de quem manda plantar batatas a todo ignóbil vulgacho.
“Cara de crise que começa a pronunciar-se: aquela cara séria e estúpida que eu chamei de prólogo, e que melhor se chamará cara de epílogo de romance desconchavado, ou de desfecho de comédia burlesca.
“Cara de crise sem remédio e sem remendo, e de queda sem recurso, transtornada, quase chorona, desconsolada, como a de ator que fez fiasco e que é despedido pelo empresário da companhia.
“Quantas caras e todavia não são só estas! Mas estas só que caras! Vou reproduzi-las em miniatura.
“Cara de nenê que faz festa, vendo a teteia que vão lhe dar.
“Cara de Tartufo representando a primeira cena da hipocrisia.
“Cara de animal de sela que parece pedir que o cavalguem.
“Cara de mercador de verduras que trata de arranjar freguesia.
‘Cara de vilão que se acha com a vara na mão.
“Cara de mordomo que caloteia a confraria e lança a culpa sobre o juiz.
“Cara de Nabucodonosor pouco antes de comer capim.
“Cara de comilão que vê o caldo entornado.
“E cara de dançarino que torceu o pé em uma pirueta”.

Depois da impagável ‘cara de Nabucodonosor pouco antes de comer capim’ já sabemos que estamos na frente de um gênio da sátira e a sensacional coleção de definições burlescas sobre as caras humanas mostra que neste livro vêm coisas com muito apuro, com muito espírito de gozação e de fina ironia. E acrescido de excelentes construções hiperbólicas como esta ainda no prólogo:

“A vida do homem é um enorme acervo de erros misturados com um punhado de acertos abismados em um dilúvio de niilidades. Cada erro, cada acerto, cada niilidade é obra de um momento quase imperceptível que se chama o presente, e vão todos se ajuntando em montões mais ou menos escuros que formam o passado, sorvedouro imenso, que tem o tragadouro aberto para engolir os desenganos que têm de sair do seio misterioso de um monstro que está sempre em gravidez de esperanças e em parto de desilusões e que se denomina futuro” (p. VII).


Ironia e Sarcasmo

Logo a seguir faz um anúncio da filosofia do governo brasileiro, uma espécie de introdução ao modo com que o narrador irá tratar seus interesses de vida no livro:

“... porque o homem de juízo não faz caso nem dá contas do seu passado, e não pensa no futuro senão para perpetuar e multiplicar por todos e quaisquer meios os gozos que está fruindo: os gozos que desfrutou são bagaços de frutos que deitou fora, os que está gozando representam a verdadeira vida, os que há de gozar são frutos que estão amadurecendo, e por pior que corra o tempo, sempre escapa alguma fruta, que perpetua o gozo.

“Não pensem que esta filosofia é minha só: não! É de uma escola filosófica muito nobre, elevada e prestigiosa: o chefe da escola é o governo do Brasil.

...”Digam-me os que duvidarem: já houve no Brasil governo que aproveitasse as chamadas lições do passado, e que compreendesse e criasse uma série de medidas que tivessem relação com o futuro? (p. VIII – IX)”.

E, depois, confessando que escreve por desforra por não ter sido eleito deputado em uma eleição que irá descrever ao longo do livro para nosso divertimento e riso, continua a analisar o que sente do Brasil de seu tempo:

“No Brasil ninguém morre moralmente, enquanto não morre fisicamente, exceto os criminosos pobres condenados pelo júri.

“Nas camas de tábuas duras da Casa de Correção dorme muita gente, que é menos vil, e menos criminosa, do que alguns ou talvez muitos que se deitam livremente em colchões fofos, e macios, que se envolvem em cobertas de seda para passar a noite, e que de dia zombam da chamada consciência pública, ostentando a opulência que bem ou mal adquirida é sempre a mais preciosa e considerada das recomendações; ou que, no mundo político, pulando de partido em partido, não tendo crenças nem fé, subindo por isso cada dia mais, explorando em seu proveito a fortuna pública, rindo-se dos tolos, enganando a todos, vão andando seu caminho sem se incomodar com as pragas do povo, e com a gritaria dos censores que ficam por fim de bocas abertas, admirando essa vitalidade corrupta, essa putrefação que tem vida.

“Não tenho medo de morte moral na minha terra: o Brasil é um país criado por Deus, e conquistado ao seu inocente povo pelos diabos.

“Olhem o que vai por aí e decidam se tem ou não fundamento a minha confiança na impunidade do vício agaloado e na regeneração dos leprosos-morais.

“Há empregados demitidos de repartições fiscais por prevaricação provada, e poucos meses depois reintegrados nas mesmas, ou arranjados em melhores empregos.

“Há negociante tantas vezes quebrado que parece ter negócio de falências e que quanto mais quebra, mais se regenera.

“Há presidentes de províncias exonerados pela sua desenvoltura no arbítrio e nas violências e logo depois é pelo mesmo ministério nomeado para presidir outras províncias.

“Há chamados estadistas que apenas entram no governo, encalham a nau do Estado, e logo que alguns menos desastrados conseguem fazê-la safar, voltam a eles, sem se saber por quê, a tomar conta do leme.

“Há ministros-comparsas que espantam os próprios amigos pela incapacidade: pois são uns achados! Em qualquer organização ministerial podem contar com eles no museu da combinação” (p. XIV – XV).

E arremata dizendo em tom exponencialmente satírico:

“Aceite o público estas Memórias, como obra generosa, virginal, puríssima, inspirada exclusivamente no amor da pátria.

É verdade que eu já confessei que vou escrever por desejo de vingança, por empenho de desforra da derrota de minha candidatura; mas o público já tem aceitado e recebido tantos contrabandos, tantas falcatruas da ambição, tantos desconcertos e desatinos da inveja, tantas obras desordenadas do ódio com o nome ou em nome do amor à pátria, que, apesar da minha ingênua confissão, pode fazer igual favor a estas Memórias (p. XVI)”.

Parece incrível que Macedo tivesse o atrevimento de usar palavras duras contra o sistema. No século XIX isso me parece uma declaração de guerra, especialmente vinda de dentro do sistema, uma vez que ele foi deputado por 2 legislaturas federais e umas quantas distritais. Provavelmente a desilusão com a atividade parlamentar tenha lhe jogado para sua mais carinhosa e prestigiada atividade: a de escritor e professor. Amigo do Imperador e de figuras ligadas diretamente a ele, Macedo tinha as costas quentes: podia, portanto, falar tudo o que sabia do mundo que estava abaixo da corte e não poupou palavras.

Ele usa o método da listagem para caracterizar as variações de um mesmo tema, por exemplo, não só nas descrições das caras e dos tipos biológicos que formam os políticos, mas também nas explicações que estes políticos costumam dar à Nação:

“Primeira: mentira grossa: desfiguram-se os fatos; calunia-se a oposição e quando se faz preciso, jura-se que um homem que foi morto a tiros, ou à cutiladas, morreu de tubérculos mesentéricos, e neste caso acha-se um médico que ateste os tubérculos que não viu, de mesentério que não sabe o que seja.

Segunda: imposição de silêncio: declara-se que há negociações pendentes e enquanto o pau vai e vem, folgam as excelentíssimas costas.

Terceira: recurso extremo: apela-se para o salvamento das circunstâncias extraordinárias, e pede-se um Bill de indenidade com a certeza de alcançá-lo, graças ao encanto da maioria dedicada e da mobília parlamentar” (p. 22).

Com a ressalva do anglicismo, “Bill de indenidade” que deve significar um decreto ou lei de anistia ou de perdão, ou até de absolvição de culpa. Logo após faz uma digressão sobre a primeira explicação, observando que a mentira quando praticada pelos que trajam casaca ou farda, mesmo que usada para a dilapidação do Estado, não causa maiores problemas, pois que os dilapidadores em alta escala não são considerados ladrões. Assim, a mentira depende do que o seu propagador veste. E as relações entre a mentira e a vestimenta ficam determinadas com a seguinte categoria:

“A mentira só pode se chamar mentira, quando sai da boca de um homem de jaqueta, ou de alguma patuléia de cotovelos rotos.

“A mentira de um cidadão de paletó (convém saber que o paletó é veste eminentemente parlamentar) chama-se má informação.

“A mentira de um cavalheiro de casaca chama-se apreciação menos fundamentada.

“A mentira de um senhor de farda ministerial chama-se – reserva ou conveniência política.
.........
A mentira é a base da legitimidade da maior parte dos diplomas eleitorais dos senadores e deputados e, portanto, é a base da expressão da soberania nacional. “A mentira é a madrinha do patronato e por consequência a comadre dos ministros de estado.

“A mentira é o cajado de Caim com que os tribunos que atraiçoam o povo ferem os irmãos que não degeneram nem se deixam corromper com eles (p. 23).”

E numa referência ao nosso inefável apedeuta, um diagnóstico de sua época que se tornaria um lugar comum no início do século XXI:

“A mentira é a escadinha dos ambiciosos que na oposição pregam doutrinas que, subindo ao poleiro, hão de desesperadamente combater.

“A mentira é o santo pretexto dos golpes de Estado: é a explicação das despesas secretas da polícia; é a espada de dois gumes que serve às oposições facciosas e aos governos sem razão de ser nos partidos legítimos do país.

“A mentira é um manjar delicioso e inocente preparado na cozinha de alguns ministérios e de algumas oposições para alimento e engodo do povo, e a prova de que o manjar é inocente, está em que eu tenho visto e estou vendo o povo brasileiro come-lo constantemente desde longos anos, e não me consta que até hoje tenha havido caso de indigestão popular.

Por consequência, viva a mentira! (p. 24)


A dualidade moral

Macedo articula o romance entre a ambição de poder e dinheiro da personagem principal, fazendo contraponto com a personagem ética. Essa dualidade moral inverte o sentido convencional do romance em que a primeira pessoa e, portanto, a personagem principal, deveria ser a pessoa ética. Ao contrário, é a pessoa corrupta, e a consciência ética só aparece nas ponderações do compadre Paciência, amigo de família do Sobrinho de Meu Tio, o homem que enxerga o abismo do sistema político na época da Guerra do Paraguai. A explicação é simples: ao transformar a personagem principal em vilã, abre mais espaço para a denúncia e para a exposição das falcatruas intrínsecas ao momento histórico. O compadre Paciência, por sua vez, age como o elemento moderador, o necessário equilíbrio que se espera de um poder democrático. Naturalmente que sua frustração vai lhe amargurar cada vez mais. Inicialmente, o compadre Paciência vai para a prisão por não fazer concessões ao seu espírito liberal. Com base na constituição elabora um agravo de instrumento contra a ordem de prisão a partir da cadeia. O juiz, seu inimigo por conveniência, subverte a ordem e lhe aumenta a pena.

Tendo feito carreira política no Partido Liberal, Macedo coloca o Sobrinho contra seu próprio Partido, como forma de autoironia, para demonstrar como o espírito da época era totalmente avesso ao cumprimento da lei. Com seu compadre na prisão, o Sobrinho tomou a si os cuidados da mula-ruça, o animal de montaria do compadre Paciência, mandando milho e capim, além de servir pão-de-ló e vinho ao “enfezado” preso. Pois eis que o pão-de-ló era comido pelo escrivão da delegacia, e o vinho consumido pelo carcereiro, ao passo que o milho ficava com o cavalo do escrivão e o capim com o burro do carcereiro. E conclui que semelhante desfaçatez tem suas semelhanças com os demais serviços do Estado, em que o butim é repartido conforme cada função.

Neste momento morre seu tio, que deixando um testamento introduz a narrativa para a conquista da herança, ao ser obrigado a jurar perante testemunhas, que a receberia somente na condição de que:

“Primeiro: nunca se afastará da Constituição do Império.

Segundo: será leal ao partido político a que se achar ligado e não mudará de partido sem fortes razões de consciência.

Terceiro: nunca e, sob pena de maldição lançada por mim da eternidade, se venderá, ou venderá o seu voto a ministério algum (p. 32)”.

São estas, portanto, as condições éticas que a cobiça irá transgredir ao longo da obra. Nada mais atual ao quadro político brasileiro.
Seu julgamento não foi dos mais prazerosos. Numa conclusão cética, mostra que:

“o amor da liberdade e da Constituição quando chega ao grau de mania, é a mais perigosa de todas as loucuras. Decididamente meu Tio morreu louco furioso (p.32)”.

A prisão do compadre Paciência provoca sentimentos que podem ser expressos em mais uma variedade de situações:

Há a voz da consciência, como chama os padres, e, segundo eles, voz do dever que impõe, ou do remorso que pune, e, em uma palavra, mas ainda segundo os padres, voz de Deus falando na alma do homem.

Há a voz do coração, como a denominam os poetas, e, no dizer deles, a voz do sentimento, voz dos anjos sempre generosa e pura dos interesses e das misérias da terra.

E há a voz da razão, fria e positiva, voz humana que fala as realidades da terra e da vida, e que é luz que guia os homens nas sombras atrapalhadoras da viagem deste mundo” (p. 34).

Depois contesta estas vozes, dizendo que não se deve seguir a voz da consciência. Para ele a voz do coração é uma voz perigosa e estúpida.

“O sentimento é cego, e portanto o pior dos condutores”.

Mas como seu hábito consiste em julgar tudo sob o ponto de vista político, naturalmente que estes sentimentos são causadores de confusão e perda de discernimento. Eis aí como o ceticismo invade sua obra para dar o tom da realidade nacional. Destituído de escrúpulos, o Sobrinho pode muito bem revelar suas ambições secretas:

“não sou pior que muitos outros que têm enriquecido dedicando-se ao serviço do Estado: francamente eu desejo arranjar vida esplêndida, mamando nas tetas do tesouro público e, ainda mais, aproveitando a influência de uma alta posição oficial para ganhar dinheiro, que é o essencial e a grande realidade da vida. Como porém chegarei a realizar este sublime desideratum, vivendo grudado com a Constituição do Império, sendo leal ao partido a que me ligar e nunca me vendendo a ministério algum?” (p. 39).

O drama moral está posto. De um lado, a obrigação do testamento com seu tio, de outro a realidade das ambições de quem quer enriquecer a qualquer custo. Este é o fio condutor da obra. Macedo quer mostrar como funciona o Brasil político oficialista, o país onde tudo se resolve no fisiologismo. Eis aí a razão de seu livro ter caído no esquecimento. Não sendo ufanista do ponto de vista político, não sendo futurista, do ponto de vista do “país do futuro”, Macedo mostra como a falta de escrúpulos é o melhor caminho para a ascensão social. E o que ele está nos dizendo, há 150 anos, é que o SISTEMA está configurado para obter sucesso desta forma.

Tal qual o apedeuta, nosso indefectível dublê de Mazzaropi, o Sobrinho resolve carregar uma constituição no bolso do paletó, para com tal arranjo nunca se afastar da Constituição, mas nem por isso sentir-se obrigado a respeitá-la, pelo simples fato de que olhando para os ministros de estado verifica que eles também mantêm um exemplar sobre a mesa do gabinete de trabalho, e “fazem dela gato e sapato”.

E para resolver a exigência de nunca se vender a qualquer ministério, desanda a sofismar:

“o aluguel não é compra: o alugado não se vende. Protesto e juro que nunca me venderei a ministério algum; fica-me, porém, o direito de me alugar a todos os ministérios (p. 41).”

E por que cargas d’água haveria de ter escrúpulos sabendo que os que se arranjaram seguiram a mesma trilha? Coberto de sofismas, pede perdão ao tio na Eternidade. E, no solilóquio do corrupto, tresanda sua confissão:

“Consola-te do logro que vou te pregar, oh venerando finado! Consola-te com o Brasil; porque o Brasil é um tio velho e rico, cercado, atropelado de sobrinhos que o devoram, que o reduzem à miséria, e que se dizem patriotas, sem dúvida porque se consideram donos ou proprietários da Pátria (p. 42)”.


Lua de mel em Paris

Assim, para reforçar sua fortuna, o Sobrinho resolve casar com a prima Xiquinha e desfrutar uma saborosa lua de mel em Paris.

Enquanto isso, cavila sobre a importância que a sociedade atribui ao dinheiro, ao culto do bezerro de ouro, prometendo mandar às favas quem se atrever a censurar seus princípios egoístas.

Mas Xiquinha tinha uma mãe, que felizmente apresentava as melhores condições para quem quer namorar a filha: era surda e tinha a vista curta. Uma grande vantagem para quem desfruta da presença constante da sogra no sofá da sala, malgrado sua tagarelice verborrágica alucinante. E quando soube das reais intenções do genro ficou ainda mais surda e quase completamente cega.

Mas como era Xiquinha? Macedo traça um paralelo entre a noiva e as figuras da sociedade de sua época, arrematando com uma brasileiríssima e conhecidíssima imagem do nosso mundo político:

“o seu andar é tão mimoso e seguro, como o de um ator, digo mal, como o de um augusto digníssimo que é também conselheiro de estado, que ontem fazia oposição, e que hoje vai à casa do chefe do ministério pedir uma sinecura para seu sobrinho (p. 63-64).”

E conclui debochadamente que “a natureza da mulher não é totalmente humana: ela reune em si e em partes iguais alguma coisa do céu, alguma coisa da terra, e alguma coisa do inferno; sopro de Deus, costela do homem e tentação da serpente (p. 68).”

Vem o casamento e o banquete. De repente se lembra de ter esquecido completamente o compadre Paciência na cadeia. Pudera: “as duas preocupações do meu espírito eram dinheiro e mulher; dinheiro que levanta a cabeça do homem, e mulher que o faz andar com a cabeça à roda (p. 79).”

A dualidade moral é exemplificada em parábolas bem inseridas no contexto do andamento da obra. Como acreditar nas palavras dos conselheiros, se eles representam uma moral inexistente? Pregar a verdade, a retidão, os escrúpulos e a decência são coisas muito bonitas. Mas onde estão? Quem as pratica nas lides políticas?

Porém, o casamento foi um grande achado. A Xiquinha se revela uma pessoa extraordinária. Para sua surpresa, descobre nela sentimentos tão elevados, perspicácia e agudeza de espírito tal que se convence de que ela nascera para ser estadista, para organizar ministérios. Estando no século XIX, onde a mulher sequer tinha direito de votar, quanto mais a esses assuntos, novamente Macedo transgride as regras sociais, colocando a mulher como a portadora dos melhores conselhos políticos para o marido. E mostra que Xiquinha estava inteirada de todas as malandragens da política e disposta a seguir o marido em suas ambições.

“Hão de ver o que dá de si esta rapariga, que tem o pensamento no futuro: que aprecia devidamente o mundo em que vive; que é mulher pelo sexo, homem pela ambição, e o diabo pelo cálculo e pela tentação (p. 93)”.

E em amores pela Xiquinha, com a cabecinha recostada em seu ombro, desfila quem semeia e quem colhe na sociedade. Semeia o empreendedor e colhe o caloteiro, “semeia o estudioso e abalizado chefe de secretaria, projetos, melhoramentos, e bem combinados planos, que um ministro, tábua rasa ou pouco mais do que isso, apresenta às câmaras como seus, e colhe os aplausos, e as honras que a outro não a ele deviam cabe (p. 103)”, e, assim sucessivamente, numa longa lista de virtuosos e oportunistas, o que hoje se chamaria de produtores e saqueadores.

A parvoíce oficial assume um dos temas mais recorrentes na obra: de um lado a maneira como são escolhidos os ministros e secretários; de outro lado, como governam. Macedo diz que os ministros dirigem suas repartições por instinto e por tutoria. Por instinto, “fazendo parvoíces de todos os calibres, e por tutoria obrigada, assinando com uma cruz tudo quanto lhe escrevem os oficiais de gabinete que chama para lhe dar o trabalho de governar e administrar por eles” (p. 106). E fala de um relatório de ministro escrito por três oficiais de gabinete em que na segunda página atacavam-se as ideias da primeira, e na quarta, as ideias da terceira, de tal sorte que a oposição ficou basbaque e sem argumentos. E passa a discorrer da política de um Estado, como a maior das comédias. Atores, palco, contracenantes, plateia e camarotes, a companhia inteira é metáfora de sua incursão pela política oficial.

Mas não se pense que a mulher tinha um papel secundário no governo do Império. Ao contrário, era o melhor dos papéis, pois poderia mandar sem o incômodo de governar.

“A senhora sagaz, inteligente, e de vontade forte, faz prodígios em política: enquanto o marido é candidato à deputação, ela é o seu maravilhoso recurso de cabala, arranja votos, cantando um lundu, conquista um colégio eleitoral, dançando uma valsa, e firma o triunfo da candidatura, passeando e conversando num baile com o presidente da província” (p. 120).

Em suma, semeia para o marido: “faz nomeações, escolhe presidentes de províncias, elege deputados, resolve contratos de obras públicas, distribui pensões, suspende e demite empregados públicos, reforma a Constituição pelo capricho de um momento quando se penteia, faz das leis do Império e dos papéis de expediente que vêm da secretaria, papelotes para anelar os cabelos, e finalmente, quando tem ciúmes do marido, põe o ministério em crise” (p. 121).

Examinando-se a história dos desatinos ministeriais encontra-se o leque da mulher dentro da pasta do ministro. Ao término, Xiquinha exclama agitada: “Primo, você será eleito deputado!” Ao que ele responde: “Peço a palavra!, gritei, como se já estivesse na câmara” (p 122).

Passa os dias a conversar com Xiquinha sobre assuntos diversos em linguagem poética, para observar uma curiosidade etimológica:

“a raiz da palavra soldo é sol, porque a verdadeira luz é aquela que o ouro irradia. Há todavia mundos que são ao mesmo tempo do sol e da lua conforme se consideram as classes da sua população. O Brasil é o mundo do sol, porque há nele muita gente que vive a soldo do governo, e o seu governo tem sido muitas vezes verdadeiro Machiavel em ação. Mas o Brasil é também o mundo da lua para a nação que anda sempre a comprar nabos em saco, que grita ‘Viva a Constituição’ na festa oficial de 25 de Março, e passa sem Constituição em todos os outros dias do ano: mundo da lua para o povo, estupendíssimo soberano de comédia, que serve à mesa, e ainda em cima paga o pato” (p. 127-128).

E para zombar da sociedade, propõe à Xiquinha uma viagem a Paris em lua-de-mel com a condição de se autopromover, anunciando que vai estudar

“por exemplo, instrução pública, colonização, correios, estradas de ferro, etc., e um dia depois da nossa volta ao Brasil, os mesmos jornais proclamarão a sua chegada, e os profundos conhecimentos adquiridos em todos aqueles assuntos. Em Paris pagaremos a quem escreva e publique na imprensa artigos laudativos da sua aplicação, dos seus talentos, da sua constância no trabalho; esses artigos serão traduzidos e transcritos em todas ou em muitas gazetas aqui: para a mais alta fama do seu nome, você assinará e dará ao prelo memórias compostas por homens habilitados, a quem compraremos o trabalho intelectual, que aparecerá como de sua lavra, e tornando à pátria, meu marido, que na Europa só se ocupou em passear e divertir-se com a sua dedicada e terníssima esposa, será recebido no seio do país como um filho distinto, que o soube honrar no estrangeiro, e considerado pelos seus concidadãos capaz de desempenhar as mais altas comissões, e os mais elevados cargos” (p. 129-130).

E lá se foram os pombinhos para Paris. Esta preciosidade de crítica que haveria de se disseminar na literatura brasileira, como o gazeteio remunerado em Paris, foi retomada por Lobato, no conto Cartas de Paris, no livro ‘Ideias de Jeca Tatu’, 50 anos depois. A mesma artimanha colocada no encontro de um suposto jornalista com Graça Aranha, Olavo Bilac e outros em Paris, que Lobato prudentemente encapsula em pseudônimos.

E também essa descrição da “Paris dos nossos sonhos” foi a atitude mental responsável pela caracterização do brasileiro como o mazombo do célebre trabalho ‘Bandeirantes e Pioneiros’ de Viana Moog. Para o célebre crítico brasileiro, o mazombo tinha como ideal uma sinecura qualquer, e melhor ainda se em Paris. Incapaz de trabalho sério e compenetrado, sofria de falta de identidade, suspirava uma Europa civilizada capaz de lhe arrancar da melancolia tropical. Seu tipo psicológico pontificava “ausência de determinação e satisfação de ser brasileiro, ausência de gosto por qualquer tipo de atividade orgânica, carência de iniciativa e inventividade, falta de crença na possibilidade de aperfeiçoamento moral do homem, descaso por tudo quanto não fosse fortuna rápida e, sobretudo, falta de um ideal coletivo, na quase total ausência de sentimento de pertencer o indivíduo ao lugar e à comunidade em que vivia” (Bandeirantes e Pioneiros, Ed. Globo, 1954 – vol. 1, p. 146).

Mas o Sobrinho do meu Tio não deixou a viagem lhe escapar sem as benesses da remuneração, tão folgadamente presente hoje em dia nos roteiros elaborados dentro do Congresso Nacional, no Senado, nos Ministérios e Órgãos Judiciais.

Assim, enquanto Xiquinha iria apurar sua educação em Paris, o Sobrinho aprofundaria seus estudos de importantíssimas instituições na Europa, com o fim de melhor servir à pátria; “por consequência, a pátria tinha a obrigação de pagar as despesas da nossa viagem” (p. 130).

Quando se analisa a prestação de conta nos tribunais, ficamos sabendo que no Brasil de 1860,

“o Estado tem dinheiro como terra, e uma pequena parte dos tributos que o povo paga, sendo despendida com os passeios dos filhotes dos estadistas, não faz falta ao tesouro público. E nem há de ralhar por ninharia tão insignificante: os ministros sabem fazer as coisas: nenhum deles diz que seu filhote vai passear na Europa, e todos dizem que os seus filhotes vão em comissão de governo, uns para estudar isso, outros para examinar aquilo; mas por fim de contas, o isto e o aquilo acabam em coisa nenhuma, e os pequenos regalar-se-ão, o que é o essencial” (p. 131).

“Há filhotes para magistratura, filhotes para a marinha e para o exército, que atiram com os direitos de antiguidade e das promoções para os cantos da senzala do desprezo: há filhotes para as repartições públicas, filhotes para deputados, e mesmo filhotes de quarenta e mais anos para o senado, que ficam de improviso com merecimento que espanta e sabedoria que assombra; mas de que há somente testemunhas por ouvir dizer, e nem uma só de vista: há filhotes para obras públicas, filhotes para subvenções do Estado, filhotes para sinecura, ainda muitos outros, e finalmente, filhotes para passeios à Europa, que todos comem bons bocados, excelente doce que abunda na mesa do orçamento, e que os ministros repartem com obsequiosa prodigalidade por duas poderosas e convincentes razões, primeiro porque não lhes custa nada a eles, e não há coisa mais suave do que fazer favores com o alheio; segundo, porque uma mão lava a outra, e semelhantes favores rendem sempre aos ministros, ou votos no parlamento, ou apoio em eleições, e às vezes até demonstrações de gratidão tão pudibunda e melindrosa, que se esconde em segredo para que a luz não lhe faça mal. Em regra, são os padrinhos dos filhotes que manifestam o seu reconhecimento, e, sublimes transações, estupendos contratos! Nunca houve um só que fosse lesivo aos contratantes! Ganha o que dá, e ganha o que recebe: quem, segundo dizem, perde quase sempre é o Estado; mas o Estado é um feliz animal cego, surdo e mudo, que nunca vê, quando lhe deitam fora o dinheiro, nunca ouve quando lhe dizem blasfêmias, e nunca fala, nunca se queixa ou grita, nem mesmo quando lhe dão pancadas, e o arrastam pelas ruas da amargura” (p. 131-132).

O Estado é, portanto, um instrumento claro de pilhagem, e essa característica o sistema político tem conseguido manter, malgrado todas as nossas turbulências políticas intatas nos albores do novo milênio que parece não dar sinais de moralizar-se.

O Sobrinho parte pois a Paris, consciente de que ninguém vai à capital francesa que não volte sábio. Mas se recusa a comentar sua estadia na cidade das luzes, para não desviar o leitor de seus feitos na terrinha, e também para não abusar do direito de mentir. E comprando dissertações de trabalhos para apresentar ao governo, confirmou, com seu estilo de malandro empolado, que se pode comprar ideias como se compram peixes e verduras na praça do mercado.


A candidatura

De volta ao Brasil, começa uma das partes mais interessantes da obra. O Sobrinho prepara sua candidatura a presidente de província, como ponta de lança para retornar à capital e dali eleger-se deputado. Desenvolve seu método a partir da análise dos procedimentos dos ministros e membros da alta hierarquia do Império. Descobre logo que o oportunismo é a chave da ascensão e que a concessão aos amigos é a munição que lhe fará vitorioso. Primeiro, nos conta do savoir faire da Xiquinha lindamente vestida e preparada para encantar a corte do Rio de Janeiro: “a Xiquinha alegre, espirituosa, expansiva, bela e hábil começou a causar delírio, sem contudo arriscar-se a comprometimento algum: deixava que lhe fizessem a corte; mas só até o limite que a honestidade permite. Estávamos em mar de rosas, que é o mar das esperanças” (p. 155).

Com tantas providências, não deixa de analisar a situação da governança do país, descrevendo o peculiar tratamento dos ministros com a coisa pública: “mentiam cem vezes por dia: faltavam à palavra dada cem vezes por mês; adoravam as pastas, acordavam à noite sobressaltados, sonhando com crises ministeriais, e juravam a todas as horas que estavam fazendo votos ao céu para se verem fora das cadeiras de Procusto onde se viam atados.

“Asseveram que lhes faltava o tempo para o desempenho de todos os seus deveres e para atender a todos os assuntos da administração e que não tinham sossego, nem consolações; mas não perdiam um banquete, nem baile, não sentiam fastio, palestravam com os amigos até alta noite, os amantes da cena frequentavam os teatros e não iam ao Alcazar Lyrico somente pelo receio de alguma pateada. Uns eram senadores, outros deputados: os que não eram senadores e contavam quarenta anos, pensavam em sê-lo, e informavam-se caridosamente do estado dos vitalícios doentes; e os que estavam longe do oitavo lustro faziam estudos profundos sobre a teoria e a prática das compensações” (p. 158).

Mas, por estranho que pareça, esses ministros, antes na oposição, tinham falado muito em Constituição, sistema representativo e liberdades públicas; agora entrados nos ministérios “fizeram da primeira – peteca – do segundo – fantasmagoria – e da terceira – palitos” (p. 159). Com a ressalva de que palito era na época uma pessoa objeto de divertimento dos outros, Macedo trata de se defender: “quem tem razão sou eu que não acredito na coisa, e trato de arranjar a minha vida sem me importar com honra, virtude, e dedicação à pátria, três estúpidas atrapalhadoras do conseguimento das grandezas sociais e políticas.

E o senhor Brasil não se vexe nem se envergonhe destas misérias humanas; porque lá pela Europa civilizada o que eu vi foi isto mesmo, salvas impertinentes exceções que felizmente não abundam. Lá também a adulação é escada segura, a mentira é dogma para os ministros, a traição é recurso que aproveita, e a desmoralização substitui perfeitamente a forca de Richelieu, ao quero de Luiz XIV, à guilhotina de Robespierre e etc” (p. 159).

E como bom gozador, trata de demonstrar como estavam as coisas no domínio dos ritos democráticos, com uma denúncia tão familiar aos nossos ouvidos 150 anos depois.

"O Brasil continuava na posição astronômica marcada pelos geógrafos, e no gozo perfeito e afortunado dos benefícios do calor e da umidade.

O governo era, como d’antes, monárquico, hereditário, constitucional, representativo, conforme está escrito no art. 3º da Constituição, ..... o gabinete encerrara a sessão legislativa sem haver feito passar o orçamento anual, e por isso estava sendo muito censurado pelos últimos e penúltimos ex-ministros, que do mesmo modo tinham governado o país, dispensando essa recomendação essencial da defunta” (p. 160).

Para um país atualmente próximo dos 30 partidos políticos, a observação de Macedo não poderia causar estranheza:

“Não havia ministro, senador, deputado, jornalista, simples cidadão que não se entusiasmasse, falando do seu partido, e todos também se ocupavam de uma coisa que chamavam de reorganização dos partidos (p. 160).

“Estavam na moda três questões principais:

“Regeneração do sistema representativo, pobre soneto com versos de pés quebrados de que cada qual por sua vez mostrava os defeitos, e subindo ao governo, apresentava emenda pior que o soneto.

“Questão financeira, problema em resolução consecutiva e que se resolvia, mudando-se o sistema e de escola econômica de seis em seis meses.

“Emancipação de escravos, gato em cujo pescoço não se amarra facilmente o guizo: nó górdio que em meu parecer deve cortar-se de um golpe: porque eu já tinha vendido todos os escravos que me couberam na herança de meu Tio” (p. 161).

Mas havia outros sinais que marcavam a situação política: os que estavam encima não queriam descer, e os que estavam embaixo queriam subir: daí provinha uma gritaria infernal. E resumia a situação como um grande embrulho a desembrulhar que cada vez se embrulhava mais.

E conclui: “eu não conheço no mundo país como o Brasil, onde se fale mais em partidos políticos, e onde menos se façam sentir os políticos na governança do Estado” (p. 164). Soa familiar ao século XXI. Como o Brasil é enfadonho!

“A verdade é que felizmente para os egoístas e especuladores políticos... não há desde muitos anos partidos legítimos governando franca e lealmente o Estado, há sucessivamente no poder uma poli-farmácia de homens que não podem decentemente entender-se, de ideias que não se combinam, de aspirações que se repelem, imbróglio político que faz as delícias dos egoístas e especuladores e por consequência a fonte aberta da imoralidade política, fonte para mim dulcíssima, onde hei de beber, e beber até a saciedade” (p. 165-166).

“O que eu tenho visto e espero ainda continuar a ver, é o mais feliz e engenhoso jogo do aí vai o papelão político, em que aí vão se sucedendo no governo séries de homens antigos e novos, que juram, protestam ser de família diferente dos antecessores e sucessores, e que entretanto são todos irmãos gêmeos, falam todos a mesma língua, têm todos os mesmos sestros, fazem todos a mesma coisa e até se parecem perfeitamente uns com os outros naquilo que lhes falta; porque poucos deles têm religião de princípios, firmeza e lealdade de crenças, amor do poder pelas ideias, e desapego do poder pelas suas individualidades. Convenho em que haja exceções (raríssimas) desta regra: mas tais exceções são notas desafinadas no grande coro do egoísmo” (p. 167).

Então, depois de percuciente análise, decide escolher o partido para lançar sua candidatura. Porém sabe que a capacidade de desempenhar-se no cargo depende mais das amizades que da competência, até porque eleição é coisa que nos dias atuais é diferente dos tempos revolucionários em que a patuleia realmente elegia seus representantes. Atualmente “são os delegados de polícia, e os chefes da guarda nacional que elegem os eleitores em nome da ignóbil patuleia, que ou se submete, ou é recrutada e apanha pancadas, e são os ministros, os presidentes de província, e os chefes de polícia que elegem os deputados em nome dos eleitores, quer eles queiram, quer não; porque ao governo sobram os meios de fazer querer contra a vontade” (p. 168).


O Plano Político de eleger-se

Para conseguir eleger-se, o Sobrinho articula uma trama cheia de aliciamentos, malícias e manipulação. Com sua adorada Xiquinha, amiga de toilete da mulher de um ministro, começa a puxar seu saco para despertar as mais regaladas manifestações de apreço. Transforma sua casa no ponto de encontro do alto escalão, onde eventos se sucedem em bailes e contradanças ao estilo vienense. Com isso, o Sobrinho mergulha numa febrilante atividade social. Convidado para ser padrinho de casamento do filho do ministro, ele encomenda um soneto a 10 mil reis para ler ao rapaz: soneto lacrimejoso, ideal para marcar fundo nos corações que haveriam de subscrever sua candidatura.

Segundo Macedo, naquela época, o candidato só se elegia se a polícia deixasse, pois o voto era aberto, o eleitor constrangido ao máximo, e a célula eleitoral indesejada frequentemente desaparecia. Eleitores de um curral eleitoral eram barrados e espancados para não chegarem à urna eleitoral. Para ser candidato, não era necessário nenhum diploma de idoneidade moral e probidade ética, tampouco demonstrar serviços prestados ao país.

Para poder chamar atenção para si, resolveu fundar um jornal, e colocar em circulação suas ideias em 3 edições semanais. Com isso, sabia que elogiar as figuras do governo lhe renderia extraordinários benefícios políticos. Contratou as cabeças de aluguel entre a juventude estudantil, e fundou A Espada da Justiça.

Sua discussão com Xiquinha para definir a linha editorial do jornal mostra Macedo como um profundo analista social: “porque o povo, à força de se ver mil vezes enganado, perdeu as crenças, e assiste quase indiferente às lutas” (p. 176), ressalvando os seguintes tipos de jornais em sua época: “há a gazeta excepcional, a gazeta séria, que discute as questões, aprofundando-as, que não faz arma da calúnia, nem da injúria pessoal; há a gazeta exaltada e violenta que tem princípios definidos; mas que insulta o adversário, e nunca enxerga nele nem merecimento, nem ato acertado, nem honra, limitando-se porém a atacar a pessoa do adversário, e parando nela” (p. 178)

Mas qual deveria ser o perfil de A Espada da Justiça? Em seu diálogo com Xiquinha, o Sobrinho fala abertamente: “o pelourinho civilizado: a gazeta sem ideias e que se proclama idealista, que não tem consciência e que fala em nome dela, que afeta gravidade nos artigos de redação, e que espalha veneno em artigos anônimos, mas de lavra própria, e que com esses recursos assassina ou faz assassinar a honra alheia, quando isso convém ao seu interesse, ou aos ódios de que o aluga...” (p. 178).

Aconselhado por Xiquinha, resolveu combinar os dois tipos: o pelourinho civilizado com a gazeta exaltada. Contra sua expectativa, pois o jornal tinha a missão de servir apenas como veículo eleitoral por 3 ou 4 meses da campanha, teve numerosos leitores,

“um certo esmero, às vezes pedantesco, na redação, devido ao talento dos meus jovens colaboradores, a audácia nos ataques, a exaltação das ideias, a impostura de independência deram interesse ao periódico” (p. 180).

A estratégia deu certo: em pouco tempo passou a receber bilhete dos ministros, com rasgados elogios e copiosos oferecimentos de ajuda nessa missão cívica sem precedentes de ser um órgão de apuro ético e civilidade social.

Na encruzilhada entre entregar-se imediatamente ao primeiro apetite de verbas secretas, e resistir até abocanhar mais, o Sobrinho ficou vacilante e resolveu não afrouxar a ambição imediata: com isso, o povo bate palmas e o egoísta fica desfrutando da confiança popular para consumar sua traição sem peias mais adiante quando sua ambição for satisfeita.

Sua análise é uma preciosidade da Era Lula, que fluía diretamente para blogueiros as verbas da Secretaria de Comunicação Social:

“os ministros no Brasil estão tão habituados a pagar com o dinheiro da nação a imprensa que os defende, que o uso já tem feito lei...” (p. 184).

E penetrando no nosso mundo original, na formação íntima do nosso sistema político, nos conduz a esta reflexão arrasadora:

“a imprensa política deve ter obrigação de considerar impecáveis os ministros que reputa do seu credo político: a boa disciplina de um partido exige que os partidistas de um ministério abdiquem o direito de pensar e de ter consciência, limitando-se a dizer amém a tudo quanto quiser e fizer o ministério: em política é loucura querer viver pela verdade, e é prova de bom juízo arranjar a vida pela condescendência com a mentira: o Brasil já é prática muito antiga que os ministérios se organizem, manifestem a procedência, não direi dos partidos, mas dos lados ou dos grupos parlamentares d’onde saíram, não realizando no governo os princípios que sustentaram na tribuna, sim, repartindo as posições políticas influentes, e os empregos lucrativos pelos sócios da comandita que conseguiram o monopólio temporário do governo do Estado.

“Com imprensa política livre e independente, com imprensa zeladora dos princípios, sem condescendências contraditórias dos princípios não haveria no Brasil ministério regular, porque no Brasil o que é regular, é que o governo não tenha princípios definidos. E os patetas ainda querem reformar a sociedade!” (p. 185-586).

Com semelhante diagnóstico, com 150 anos de antecedência, Macedo comprova como a verdade nos conduz em rota de colisão com as nossas instituições oficiais dedicadas ao progresso político. Desfeitas todas as camadas, descarnada até o osso a verdadeira natureza do mundo político, o Sobrinho parte então para o arranjo de sua candidatura.


Como se faz um candidato

Em que consiste mesmo as eleições no Império? Como se fazem candidatos em um regime cuja principal ocupação é mesmo o desgaste com os arranjos, a dissipação no toma lá da cá, o consumo suntuoso de tempo e dinheiro na montagem de combinações, no desmonte e traições miúdas, nas desculpas e nas promessas?

Sim, porque a política é a arte de criar arranjos sobre uma realidade caótica, na qual uma parte do mundo político participa como um saqueador e outra parte como bombeiro.

Na época do Império, o voto era diferente do voto atual. Primeiro fazia-se a eleição geral de eleitores, chamada de eleição primária, e um mês depois, a eleição secundária, ou dos deputados. Os presidentes de província, correspondentes aos nossos governadores, eram todos nomeados.

A eleição era feita pela apresentação do eleitor no local indicado para inscrever-se, impedindo assim que o governo fizesse eleições de improviso. Macedo critica esse sistema, porque fazia a oposição movimentar toda uma máquina de eleitores para se inscrever, e no dia da votação, novamente levar os eleitores ao local de votação, o que encarecia as campanhas e não impedia a fraude do governo, que usava de todas as artimanhas imagináveis para impedir o eleitor de chegar na segunda eleição. O diagnóstico é, portanto, importante de ser citado, pois ele reflete mais que a situação propriamente eleitoral, isto é, a paisagem geral do Poder no Império:.......

“Primeiro: o ministério muda ou faz contradança de presidentes de províncias e de chefes de polícia, os quais são escolhidos a dedo entre os já provados conquistadores, que têm realizado a fortuna de Cesar: veni, vidi, vinci.

‘Segundo: em cada província o respectivo presidente ou faz tábua rasa na máquina policial existente, e enche os jornais com portarias e demissões e nomeações de delegados e subdelegados, ou aperfeiçoa e fortalece todas as malhas da rede já preparada: às vezes em certas províncias até se nomeiam para cargos policiais de municípios suspeitos homens que são réus de polícia, e ainda mesmo assassinos: mais, quem têm culpa disso é o povo desses municípios que não quer obedecer as ordens do governo, votando livremente, como o governo manda.

Terceiro: em todas as paróquias opera-se mudança ou aperfeiçoamento igual no exército pedestre dos inspetores de quarteirão.

Os inspetores de quarteirão eram os que faziam a triagem dos eleitores no dia do voto. Acompanhados da polícia, aqueles eleitores indesejados eram simplesmente mandados circular para outro lado do povoado, bem longe da urna.

Quarto: as malas do correio não chegam para as cartas que recebem, e o selo rende novecentos e noventa e nove porcento mais.

Quinto: descobrem-se parentescos e amizades com que nunca d’antes se havia sonhado.

Sexto: multiplica-se o número de excelências de um modo extraordinário: esse tratamento torna-se quase geral.

Sétimo: tem alta excepcional na praça a mercadoria dos protestos de patriotismo, dedicação à causa pública, e, sobretudo, de eterna gratidão.

Oitavo: os negociantes com relações no interior, e principalmente os consignatários, não têm mãos bastantes para escrever post scriptum nas cartas que mandam aos fregueses.

Nono: quadruplica a despesa do chá e dos sorvetes nos salões dos ministros.

Décimo: estragam-se em três ou seis semanas seiscentos chapéus à força de muito cortejar a ignóbil patuleia.

Undécimo: chega das províncias à capital do Império cada bicho que mete medo.

Duodécimo: descompõe-se o passado, o presente e o futuro de Adão e Eva em todas as gazetas da capital e de todas as províncias do Império.

Décimo terceiro: há patronato como chuva em Dezembro, traições como ratos em casa velha, adulações como farrapos em casa da miséria, dinheiro como nas casas de jogo, infâmias como nos lupanares.

Quando semelhantes sintomas se pronunciam, podem contar que há eleições batendo à porta, e que o governo está, por exceção, em época de gloriosa atividade” (p. 191-192).


A campanha política

Excelente sátira da situação social dos períodos eleitorais do Brasil arcaico. Conseguindo uma vaga nas eleições distritais de então, o Sobrinho constatou que seu distrito – ganho como atenção aos esforços em um quadro inflacionado de candidatos, todos em busca de se arrumar na vida – ficava em local onde o diabo perdeu as botas. Esbaldado em tentar conseguir o distrito de seus padrinhos de casamento sem sucesso, o Sobrinho não tem outro remédio senão partir para o interiorzão, situação humilhante para o redator de A Espada da Justiça.

Como as escolhas partidárias para os distritos era uma tarefa cruel “o partido que sustenta o ministério, ou para falar com mais precisão, o partido que o ministério sustenta”(p. 195) tinham que decidir quem era quem nas atualmente conhecidas convenções partidárias, naquela época chamada de etiqueta. Ora, tal como hoje, as reuniões não resolviam coisa alguma, as decisões já tinham sido tomadas nos conchavos precedentes. Cabiam às reuniões apenas referendar os candidatos dos distritos. Mas lá dentro se discursava, discorria, esbravejava, trovejava alhos e bugalhos como se tudo fosse ser resolvido no teatro do palavrório inútil, e então se votava e aprovava conforme os conchavos. E Macedo conclui:

“Por que acontece assim? Porque, infelizmente para os homens de juízo, para os especuladores políticos à cuja grei pertenço, ou não há, como sustento, verdadeiros partidos políticos no Brasil, isto é, partidos de ideias, cujos chefes só o sejam pelas ideias e pela capacidade e leal disposição de as realizar no poder, sine qua non, e há somente bandos e sequelas que se unem por simpatias a certos homens, e por oposição a outros bandos e sequelas, e que tomam nomes sem dar importância às ideias que esses nomes significam” (p. 198).

Eis a situação enfrentada pelo Sobrinho. Na província designada pelo ministério para concorrer a uma vaga, governava o comendador Bisnaga (“ah, no Brasil, há até bisnagas comendadores!”). Este presidente de província tinha a peculiaridade de ser vesgo de um olho e coxo da perna direita. Além disso, tinha uma filha quarentona solteira “feia como um jaboti”, de nome Desideria. Macedo faz um trocadilho com o nome para dizer que a tal Desideria nunca tinha sido desejada.

Nessa época os presidentes de província não eram eleitos, porém nomeados e encarregados de executar as eleições (não havia justiça eleitoral).

Mas o panorama de apreensões se acentuou quando o Sobrinho soube dos candidatos concorrentes ao mesmo posto que ele: um era o sobrinho de um ministro, considerado eleito de antemão; e o outro era o filho do barão mais rico da província: um candidato recém saído da Faculdade de Direito do Largo do São Francisco, “inteligente, travesso, ambicioso, que tinha a alcunha de doutor Milhão” (p. 200). O tal doutor Milhão era o concorrente direto do Sobrinho, que logo se descobriu tratar-se de um oposicionista, liberal e republicano, portanto, um subversivo nato, um perigo público, só tolerado por ser filho de papai. Logo, o Sobrinho começou a intensificar a campanha para tentar convencer o eleitorado de seus propósitos políticos muito mais afinados com a ordem constitucional vigente. E neste ponto Macedo revela sua reflexão fabulosa sobre o processo eleitoral:

“... quando o governo quer, vence eleições, zombando dos mais colossais elementos de oposição, e do próprio poder da mais opulenta riqueza. Imagine-se uma paróquia em que 490 em 500 votantes sejam contrários ao governo, contrários a todas as influências legítimas, todas as autoridades eletivas, toda a riqueza da paróquia: pois bem, aí mesmo o governo ganha a eleição e até por unanimidade de votos. Basta querer: o meio é simples e já muitas vezes posto em prática. No dia solene do voto livre amanhece a matriz com as portas guardadas por soldados com espingardas carregadas e de baionetas caladas: o povo quer entrar na matriz e não lhe dão licença, protesta que tem o direito de votar e tem em resposta uma gargalhada do subdelegado. Se, em desespero tenta penetrar na Igreja, os soldados fazem fogo, morrem 4 ou 6 cidadãos livres e os outros, feridos ou não, deitam a fugir e vão fazer uma duplicata inútil; mas no maior nr. de casos o povo soberano retira-se prudentemente antes que a história acabe em banho de sangue e ou nesta ou na primeira hipótese, a polícia procede à eleição suave e naturalmente, a urna fica atopetada de listas, embora ninguém votasse e ‘entrou por uma porta, saiu pela outra, manda El-rei meu Senhor que me conte outra“ (p. 201).

Para alavancar sua candidatura, o Sobrinho começou a fazer visitas, convidar membros da comunidade para reuniões, realizar festas em sua casa com boca livre para todos os participantes. Em pouco tempo, a movimentação eleitoral era intensa. Enquanto isso, seu adversário, o doutor Milhão também percorria a província trabalhando com furor. Comportava-se como se não fosse adversário político, fazendo visitas ao Sobrinho e achegando-se em amizades. A princípio, o Sobrinho achou esquisita aquela atitude, pois o jovem advogado se acercou de Xiquinha e começou a declamar versos como se fora um membro da família. Rindo-se à toa, o Sobrinho começou a conchavar com o doutor Milhão como se nem fossem adversários. Certo dia, o comendador Bisnaga chama o Sobrinho para pedir, confidencialmente, que se afastasse do doutor Milhão por se tratar de um inimigo declarado do governo, e além disso, republicano confesso e ostentoso. O Sobrinho achou estranha semelhante atitude, pois que o doutor Milhão era homem de boa sociedade e recebido com todas as honras na própria família do Comendador. Ao que o comendador então redarguiu que como presidente da província tinha que receber a todos sem distinção, mas que enfatizava sua recomendação para que se afastasse do doutor Milhão.

Comentando o fato estranho com a Xiquinha, esta afligiu-se um pouco e disse que a candidatura do marido estava perdida. Surpreso, mas incapaz de perceber a realidade, o Sobrinho caiu em gargalhadas. Depois, a Xiquinha explicou que seu pressentimento era coisa de mulher, esse sentido especial de que os homens não são dotados e que deixam as coisas em suspense. Como um processo eleitoral tão viciado poderia lhe escapar se o seu adversário era contra o governo e não tinha as simpatias do presidente da província, o comendador Bisnaga? Não poderia haver outra situação que não fosse a sua vitória, apesar de volta e meia Xiquinha advertir que sua candidatura corria sérios riscos, sem indicar quais eram.

Quando chegaram as eleições, o partido de Bisnaga venceu em todas as paróquias da província, sem violência. A apuração dos votos deu a vitória para os candidatos oficiais que, para perplexidade geral, era o doutor Milhão. Dez dias depois, o doutor Milhão casa-se com a filha do comendador Bisnaga, ele com 22 anos, ela nos 40 anos ainda burra e feia. Foi a mais espetacular derrota que o Sobrinho sofrera. Humilhado, ainda teve que esperar 30 dias na cidade a chegada do paquete que lhe levaria até a capital, e ainda ter que suportar uma saraivada de foguetes na partida no cais do porto. Na contagem geral de todos os colégios, o Sobrinho obteve apenas 7 votos. Imagine o fiasco, o candidato oficial com 7 votos!

Jurando que o dia em que se tornasse presidente de província iria destituir o Bisnaga de todos os cargos, obrigá-lo a assentar praça como soldado raso, mesmo com o título de comendador e a perna coxa, o Sobrinho chegou ao Rio de Janeiro

“transpirando princípios liberais e máximas de severa moralidade política por todos os poros” (p. 212).

Começou a preparar sua vingança, transformando A Espada da Justiça em um periódico com o novo nome de Raio do Desengano, para “fulminar todos os perversos e opressores do povo” (p. 213).

Mas eis que entra em cena o espetáculo do Brasil eterno: o suborno dos cargos públicos. Sabendo das intenções, o ministro que tinha designado a candidatura do Sobrinho veio pedir-lhe desculpas pela derrota, oferecendo a Sobrinho a presidência de uma província como compensação. Foram-lhe agraciadas tantas compensações que o Sobrinho chegou a confidenciar que teria se vendido por muito menos. E para divertimento da Xiquinha, o Sobrinho teve que confessar que seus arroubos de moralidade terminaram tão rápido quanto uma tempestade de verão.

Para Xiquinha, o que lhe tinha sido dado ainda não era o bastante. Ela queria que o Sobrinho conquistasse o título de Barão. Depois de algumas perplexidades com semelhante proposta, Xiquinha finalmente confessa que queria ser Baronesa. E como não era mulher de mudar de ideia quando alguma coisa se metesse em sua cabeça, o Sobrinho começa a cavilar uma estratégia para obter mais essa condecoração gloriosa.

Neste ambiente, é que seus diálogos com Xiquinha recuperam mais uma observação contundente sobre o papel da oposição. A de que o sistema representativo sem uma oposição

“o governo nem examina, se desvaira: corre sem cuidado à rédea solta, e às vezes se lança em precipícios; e pelo contrário, as censuras e os brados da oposição o trazem alerta e cuidadoso; dão-lhe faróis, mostram-lhe os perigos, e até lhe emprestam força para resistir às exigências inadmissíveis dos falsos, ou pesadíssimos amigos” (p. 219).

Nesse momento, o Sobrinho lembra-se do compadre Paciência, apodrecendo na prisão por sua intransigência com os princípios liberais e com a Constituição do Império. Acorre em soltá-lo e a partir de então a obra inicia o diálogo com o lado moral da política, na figura do pensamento do compadre Paciência.

O diálogo dos dois é saboroso, pois ao saber que o Sobrinho tinha conseguido o cargo de presidente de província, o compadre Paciência logo atinou que este deveria estar muito ocupado em assuntos administrativos e em política econômica, ao que o Sobrinho logo respondeu que em matéria de administração enxergava tanto como o menino analfabeto que entra para a escola.

“ – E conhece a província que tem de presidir? Sabe quais são as suas circunstâncias políticas e econômicas? Quais as suas grandes necessidades? Que fontes naturais de riqueza podem nela ser exploradas?

“ – Nem migalha de tudo isso.

“ – Então que vai fazer?

“ – É boa pergunta! Vou ser presidente de província, vestir farda bordada, ter tratamento de excelência, bocejar nas audiências, comer nos banquetes e dançar nos bailes que me derem, arranjar a maioria na assembleia provincial, recrutar na oposição, despender dinheiro da província sem me importar com a lei do orçamento, ter o meu exército de afilhados, e antes de tudo e principalmente arranjar a vida” (p. 225-226).

E então a perplexidade do Compadre Paciência é revelada no diálogo entre o bem e o mal, entre a virtude cívica da administração voltada para o interesse público e a política sempiterna do interesse pessoal, a mesquinharia política. O contraponto entre o que deve ser um governo e aquilo que ele realmente pratica permite que Macedo mostre toda a sua lucidez na interpretação do drama político do século XIX. Realmente a única coisa a lamentar é que Macedo não tenha dado um nome próprio para o Sobrinho de Meu Tio, porque se isto lhe ocorresse certamente teríamos na cultura brasileira mais um superlativo do tipo quixotesco, molieresco, dantesco, etc.

A análise que o compadre Paciência faz do Brasil vai da insanidade do nosso sistema político até pontos interessantes como os segredos de estado. São denúncias da realidade social, dos modos de governar, do torvelinho de ilegalidades que se comete no país. Um livro dos mais atualíssimos para se conhecer um país cujo sistema político pouco se modificou ao longo de 150 anos, e que agora, no auge do petismo, retorna aos tempos do Império.

Ao narrar seu governo provincial, o Sobrinho desfila a lista completa da doença política brasileira mais resistente: o nepotismo, o empreguismo na administração e o concessionismo. Mas também e, sobretudo, o fisiologismo na fabricação da maioria nas assembleias legislativas.

Com o compadre Paciência sempre ao lado, como se fosse sua consciência moral, o Sobrinho intercala seus desastrosos atos de governo com as críticas pertinentes sobre o estilo de governar no Brasil.

Ao todo foram 4 nomeações como presidente de província, sucedendo-se em prazos variáveis de 9 a 12 meses. Em todas, a contradição entre as ações reais do mau governo e a consciência moral do bom governo nas críticas do compadre Paciência, seu Sancho Pança.

As governanças foram como um desterro a que o Sobrinho se submeteu até conseguir na eleição seguinte uma vaga de deputado na Assembleia Geral, correspondente ao Congresso Nacional hoje. Retornando ao Rio de Janeiro, começa a esfuziante vida na Corte, com seus saraus, bailes, festas e o dolce far niente da vida parlamentar.

Mas sua presença na Câmara mostra a hilaridade de Macedo com os atrapalhos da vida parlamentar, dos discursos improvisados, das gafes e da ridicularização. Foi em um baile que Xiquinha inspirou-se em conseguir um título de Barão para o marido.

As peripécias para conseguir tal título correspondem à parte final desta obra mestre de sarcasmo e ironia de Joaquim Manoel de Macedo. Como se pode prever, as cavilações não deram certo e a novela acaba sob o peso ridículo do Sobrinho ter sido descoberto pela mulher envolvido com uma Madame Quelque Chose, atriz de teatro em passagem pelo Rio de Janeiro. Caído em uma cilada preparada pela própria mulher, o Sobrinho retorna à vida parlamentar com a humilhação do ridículo e as caras com que descreve os membros do governo no início da novela.

Uma obra que deveria ser lida por todos os estudantes que pretendem se iniciar nos estudos dos problemas brasileiros. Até hoje desconheço outra novela que trate de nossas mazelas políticas com a intensidade e ironia de Memórias do Sobrinho de Meu Tio. Certamente deve ser a causa do esquecimento a que tem sido relegada por tanto tempo.

Memórias do Sobrinho de Meu Tio pode ser adquirido via internet nas livrarias ou como exemplar usado no site da Estante Virtual. Infelizmente ainda não está disponível digitalizado em domínio público. Um exemplar escaneado, com a sintaxe de 1904 pode ser obtido em http://www.caminhosdoromance.iel.unicamp.br/biblioteca/0273/index.htm