com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo
Joaquim Manoel de Macedo (RJ 1820-1882).
Para quem se esqueceu das aulas de literatura brasileira, Joaquim Manoel de Macedo foi o autor de ‘A Moreninha’ de 1823, o primeiro romance brasileiro de importância histórica incontestável. A obra de Macedo não deveria ser esquecida da intelectualidade brasileira: uma coletânea de mais de 30 títulos, entre ensaios, história, novelas e teatro, alguns ainda não digitalizados (e desconhecidos) na biblioteca de domínio público.
O livro ‘Memórias do Sobrinho de Meu Tio’, escrito entre 1867-68, foi reeditado recentemente por mais de uma casa editorial. Sua importância extraordinária deve-se ao fato de ter sido a primeira novela a abordar o problema da corrupção política no Brasil. Os que acreditam que no tempo do Império havia mais seriedade com o dinheiro público deveriam ler este livro para se inteirar de que, no Brasil, a falência política do século XIX se manteve até o século XXI. As tentativas de se criar um novo sistema político foram todas frustradas, e a degradação moral dos tempos atuais é a mesma do tempo da guerra do Paraguai.
A história narrada por Macedo é bastante simples, mas surpreende que tenha sido contada em primeira pessoa, um artifício ainda não utilizado naquela época. Como o tio do narrador não tinha descendentes diretos, com a sua morte a herança foi distribuída entre os sobrinhos e parentes. Por conta do testamento, o narrador recebe 1/3 da herança, enquanto outra sobrinha mais distante, a Xiquinha, recebe ¼. O narrador decide então casar com a Xiquinha para aproveitar o dinheiro do dote na sua campanha política a deputado federal.
As peripécias do narrador constituem a grande revelação do mundo político de sua época. Com uma verve satírica lúcida, perspicaz e inconfundível, o narrador vai mostrando como desfilam as figuras parlamentares que detêm o poder no mundo social. Não é preciso muito esforço para concluir que se trata de uma confraria de saqueadores a serviço de si mesmos, com todas as divergências de opinião e conflito de interesses. Como diz o narrador se apresentando:
“Escreverei as minhas Memórias e, portanto, a história de minha vida, vida jeitosa e ilustre, como a de muitos outros varões da nossa terra que são o meu retrato por dentro, embora nenhum deles queira se parecer comigo por fora. Semelhança por dentro, dessemelhança por fora é simples questão de aparências que no fundo não pode prejudicar a fidelidade do retrato da família, pois que os pronunciados traços característicos que denunciam nossa irmandade estão muito mais no miolo que na casca” (p. I).
Com isso, sua primeira observação diz respeito à caracterização biológica desse bicho político chamado ministro de estado: “Que é mamífero não se pode contestar, pois aleita, embora à custa da nação, centenas de filhotes que compõem a sua imensa ninhada que se chama ou é a maioria artificial que ele próprio engendra.
“Que é ave, tudo o demonstra; porque não só modula e grazina, e ainda conforme as suas numerosas espécies, este é águia pelo voo, aquele águia pelas unhas, um papagaio que repete o que lhe ensinam, e dá o pé a seu dono, outro coruja pelo símbolo que representa: mas também porque a oposição o depena, e o deixa, pelo menos, sem asas, poupando-lhe as penas da cauda para que esta se mostre completa na exposição dada ao público.
“Que é réptil, tudo indica, porque rasteja pela terra, e morde até a quem o aqueceu no seio, como a serpente; é guloso, devorador a ponto de engolir sem mastigar, como o jacaré, e assemelha-se à tartaruga pelo número de ovos que empolha, e pelo das tartaruguinhas que vai arranjando para a glória da nação.
“Que é anfíbio, todos sabem, pois é capaz de viver no mar, e na terra, e até viveria perfeitamente no inferno: onde não pode viver é no céu.
“Que é peixe, ninguém o ignora, porque em primeiro lugar a isca é a sua paixão; em segundo, tem escamas com as quais nada para o sul ou para o norte, conforme as marés cheias do seu interesse; e em terceiro lugar, porque tem espinhas, e tão grandes que há muitos anos anda o Brasil engasgado com elas”.
Eis aí como se coloca ainda no prefácio o espírito satírico de Macedo. E logo após ele descreve os tipos de caras que compõem as situações políticas do país, uma preciosidade em qualquer texto sobre a nossa aparência quando investidos de mandatos políticos: uma cara oficial e outra cara natural, havendo ministros que têm umas cinquenta caras, sendo por isso verdadeiros polifrontes. Sua caracterização abrange:
“Cara de organização de gabinete: expansiva e pronta para exprimir todos os sentimentos.
“Cara de apresentação de programa: com ares de sacrifício, insondável, grave, dura, como a do convidado de pedra.
“Cara de primeiro dia de conselho no paço: meiga, contemplativa como tendo a alma em êxtase, comprida e fazendo sempre inclinações de cima para baixo, como a de manso cavalo de montaria.
“Cara de arranjo de maioria: risonha, alentadora, promissora e até patusca; mas pronta a modificar-se em ameaçadora, colérica, vingativa, como a face de Júpiter ao empunhar o raio.
“Cara de dia de despacho na secretaria: amarrotada, enfadada, malcriada e tudo que acaba em ada.
“Cara de hora de aperto por emprego que um pouco antes dera, cedendo ao empenho de um compadre imprescindível, e apesar dos compromissos tomados com um deputado ministerial que pedira o arranjo para si e que com ele contava;
Cara mefistofélica, enrugada, misteriosa, transpiradora de segredo fingido, dizendo em contrações eloquentes: ‘que havia eu de fazer? O homem não quis ...’
“Cara de resposta à oposição em minoria: sarcástica, desprezadora, soberba, como a de quem manda plantar batatas a todo ignóbil vulgacho.
“Cara de crise que começa a pronunciar-se: aquela cara séria e estúpida que eu chamei de prólogo, e que melhor se chamará cara de epílogo de romance desconchavado, ou de desfecho de comédia burlesca.
“Cara de crise sem remédio e sem remendo, e de queda sem recurso, transtornada, quase chorona, desconsolada, como a de ator que fez fiasco e que é despedido pelo empresário da companhia.
“Quantas caras e todavia não são só estas! Mas estas só que caras! Vou reproduzi-las em miniatura.
“Cara de nenê que faz festa, vendo a teteia que vão lhe dar.
“Cara de Tartufo representando a primeira cena da hipocrisia.
“Cara de animal de sela que parece pedir que o cavalguem.
“Cara de mercador de verduras que trata de arranjar freguesia.
‘Cara de vilão que se acha com a vara na mão.
“Cara de mordomo que caloteia a confraria e lança a culpa sobre o juiz.
“Cara de Nabucodonosor pouco antes de comer capim.
“Cara de comilão que vê o caldo entornado.
“E cara de dançarino que torceu o pé em uma pirueta”.
Depois da impagável ‘cara de Nabucodonosor pouco antes de comer capim’ já sabemos que estamos na frente de um gênio da sátira e a sensacional coleção de definições burlescas sobre as caras humanas mostra que neste livro vêm coisas com muito apuro, com muito espírito de gozação e de fina ironia. E acrescido de excelentes construções hiperbólicas como esta ainda no prólogo:
“A vida do homem é um enorme acervo de erros misturados com um punhado de acertos abismados em um dilúvio de niilidades. Cada erro, cada acerto, cada niilidade é obra de um momento quase imperceptível que se chama o presente, e vão todos se ajuntando em montões mais ou menos escuros que formam o passado, sorvedouro imenso, que tem o tragadouro aberto para engolir os desenganos que têm de sair do seio misterioso de um monstro que está sempre em gravidez de esperanças e em parto de desilusões e que se denomina futuro” (p. VII).
Ironia e Sarcasmo
Logo a seguir faz um anúncio da filosofia do governo brasileiro, uma espécie de introdução ao modo com que o narrador irá tratar seus interesses de vida no livro:
“... porque o homem de juízo não faz caso nem dá contas do seu passado, e não pensa no futuro senão para perpetuar e multiplicar por todos e quaisquer meios os gozos que está fruindo: os gozos que desfrutou são bagaços de frutos que deitou fora, os que está gozando representam a verdadeira vida, os que há de gozar são frutos que estão amadurecendo, e por pior que corra o tempo, sempre escapa alguma fruta, que perpetua o gozo.
“Não pensem que esta filosofia é minha só: não! É de uma escola filosófica muito nobre, elevada e prestigiosa: o chefe da escola é o governo do Brasil.
...”Digam-me os que duvidarem: já houve no Brasil governo que aproveitasse as chamadas lições do passado, e que compreendesse e criasse uma série de medidas que tivessem relação com o futuro? (p. VIII – IX)”.
E, depois, confessando que escreve por desforra por não ter sido eleito deputado em uma eleição que irá descrever ao longo do livro para nosso divertimento e riso, continua a analisar o que sente do Brasil de seu tempo:
“No Brasil ninguém morre moralmente, enquanto não morre fisicamente, exceto os criminosos pobres condenados pelo júri.
“Nas camas de tábuas duras da Casa de Correção dorme muita gente, que é menos vil, e menos criminosa, do que alguns ou talvez muitos que se deitam livremente em colchões fofos, e macios, que se envolvem em cobertas de seda para passar a noite, e que de dia zombam da chamada consciência pública, ostentando a opulência que bem ou mal adquirida é sempre a mais preciosa e considerada das recomendações; ou que, no mundo político, pulando de partido em partido, não tendo crenças nem fé, subindo por isso cada dia mais, explorando em seu proveito a fortuna pública, rindo-se dos tolos, enganando a todos, vão andando seu caminho sem se incomodar com as pragas do povo, e com a gritaria dos censores que ficam por fim de bocas abertas, admirando essa vitalidade corrupta, essa putrefação que tem vida.
“Não tenho medo de morte moral na minha terra: o Brasil é um país criado por Deus, e conquistado ao seu inocente povo pelos diabos.
“Olhem o que vai por aí e decidam se tem ou não fundamento a minha confiança na impunidade do vício agaloado e na regeneração dos leprosos-morais.
“Há empregados demitidos de repartições fiscais por prevaricação provada, e poucos meses depois reintegrados nas mesmas, ou arranjados em melhores empregos.
“Há negociante tantas vezes quebrado que parece ter negócio de falências e que quanto mais quebra, mais se regenera.
“Há presidentes de províncias exonerados pela sua desenvoltura no arbítrio e nas violências e logo depois é pelo mesmo ministério nomeado para presidir outras províncias.
“Há chamados estadistas que apenas entram no governo, encalham a nau do Estado, e logo que alguns menos desastrados conseguem fazê-la safar, voltam a eles, sem se saber por quê, a tomar conta do leme.
“Há ministros-comparsas que espantam os próprios amigos pela incapacidade: pois são uns achados! Em qualquer organização ministerial podem contar com eles no museu da combinação” (p. XIV – XV).
E arremata dizendo em tom exponencialmente satírico:
“Aceite o público estas Memórias, como obra generosa, virginal, puríssima, inspirada exclusivamente no amor da pátria.
É verdade que eu já confessei que vou escrever por desejo de vingança, por empenho de desforra da derrota de minha candidatura; mas o público já tem aceitado e recebido tantos contrabandos, tantas falcatruas da ambição, tantos desconcertos e desatinos da inveja, tantas obras desordenadas do ódio com o nome ou em nome do amor à pátria, que, apesar da minha ingênua confissão, pode fazer igual favor a estas Memórias (p. XVI)”.
Parece incrível que Macedo tivesse o atrevimento de usar palavras duras contra o sistema. No século XIX isso me parece uma declaração de guerra, especialmente vinda de dentro do sistema, uma vez que ele foi deputado por 2 legislaturas federais e umas quantas distritais. Provavelmente a desilusão com a atividade parlamentar tenha lhe jogado para sua mais carinhosa e prestigiada atividade: a de escritor e professor. Amigo do Imperador e de figuras ligadas diretamente a ele, Macedo tinha as costas quentes: podia, portanto, falar tudo o que sabia do mundo que estava abaixo da corte e não poupou palavras.
Ele usa o método da listagem para caracterizar as variações de um mesmo tema, por exemplo, não só nas descrições das caras e dos tipos biológicos que formam os políticos, mas também nas explicações que estes políticos costumam dar à Nação:
“Primeira: mentira grossa: desfiguram-se os fatos; calunia-se a oposição e quando se faz preciso, jura-se que um homem que foi morto a tiros, ou à cutiladas, morreu de tubérculos mesentéricos, e neste caso acha-se um médico que ateste os tubérculos que não viu, de mesentério que não sabe o que seja.
Segunda: imposição de silêncio: declara-se que há negociações pendentes e enquanto o pau vai e vem, folgam as excelentíssimas costas.
Terceira: recurso extremo: apela-se para o salvamento das circunstâncias extraordinárias, e pede-se um Bill de indenidade com a certeza de alcançá-lo, graças ao encanto da maioria dedicada e da mobília parlamentar” (p. 22).
Com a ressalva do anglicismo, “Bill de indenidade” que deve significar um decreto ou lei de anistia ou de perdão, ou até de absolvição de culpa. Logo após faz uma digressão sobre a primeira explicação, observando que a mentira quando praticada pelos que trajam casaca ou farda, mesmo que usada para a dilapidação do Estado, não causa maiores problemas, pois que os dilapidadores em alta escala não são considerados ladrões. Assim, a mentira depende do que o seu propagador veste. E as relações entre a mentira e a vestimenta ficam determinadas com a seguinte categoria:
“A mentira só pode se chamar mentira, quando sai da boca de um homem de jaqueta, ou de alguma patuléia de cotovelos rotos.
“A mentira de um cidadão de paletó (convém saber que o paletó é veste eminentemente parlamentar) chama-se má informação.
“A mentira de um cavalheiro de casaca chama-se apreciação menos fundamentada.
“A mentira de um senhor de farda ministerial chama-se – reserva ou conveniência política.
.........
A mentira é a base da legitimidade da maior parte dos diplomas eleitorais dos senadores e deputados e, portanto, é a base da expressão da soberania nacional.
“A mentira é a madrinha do patronato e por consequência a comadre dos ministros de estado.
“A mentira é o cajado de Caim com que os tribunos que atraiçoam o povo ferem os irmãos que não degeneram nem se deixam corromper com eles (p. 23).”
E numa referência ao nosso inefável apedeuta, um diagnóstico de sua época que se tornaria um lugar comum no início do século XXI:
“A mentira é a escadinha dos ambiciosos que na oposição pregam doutrinas que, subindo ao poleiro, hão de desesperadamente combater.
“A mentira é o santo pretexto dos golpes de Estado: é a explicação das despesas secretas da polícia; é a espada de dois gumes que serve às oposições facciosas e aos governos sem razão de ser nos partidos legítimos do país.
“A mentira é um manjar delicioso e inocente preparado na cozinha de alguns ministérios e de algumas oposições para alimento e engodo do povo, e a prova de que o manjar é inocente, está em que eu tenho visto e estou vendo o povo brasileiro come-lo constantemente desde longos anos, e não me consta que até hoje tenha havido caso de indigestão popular.
Por consequência, viva a mentira! (p. 24)
A dualidade moral
Macedo articula o romance entre a ambição de poder e dinheiro da personagem principal, fazendo contraponto com a personagem ética. Essa dualidade moral inverte o sentido convencional do romance em que a primeira pessoa e, portanto, a personagem principal, deveria ser a pessoa ética. Ao contrário, é a pessoa corrupta, e a consciência ética só aparece nas ponderações do compadre Paciência, amigo de família do Sobrinho de Meu Tio, o homem que enxerga o abismo do sistema político na época da Guerra do Paraguai. A explicação é simples: ao transformar a personagem principal em vilã, abre mais espaço para a denúncia e para a exposição das falcatruas intrínsecas ao momento histórico. O compadre Paciência, por sua vez, age como o elemento moderador, o necessário equilíbrio que se espera de um poder democrático. Naturalmente que sua frustração vai lhe amargurar cada vez mais. Inicialmente, o compadre Paciência vai para a prisão por não fazer concessões ao seu espírito liberal. Com base na constituição elabora um agravo de instrumento contra a ordem de prisão a partir da cadeia. O juiz, seu inimigo por conveniência, subverte a ordem e lhe aumenta a pena.
Tendo feito carreira política no Partido Liberal, Macedo coloca o Sobrinho contra seu próprio Partido, como forma de autoironia, para demonstrar como o espírito da época era totalmente avesso ao cumprimento da lei. Com seu compadre na prisão, o Sobrinho tomou a si os cuidados da mula-ruça, o animal de montaria do compadre Paciência, mandando milho e capim, além de servir pão-de-ló e vinho ao “enfezado” preso. Pois eis que o pão-de-ló era comido pelo escrivão da delegacia, e o vinho consumido pelo carcereiro, ao passo que o milho ficava com o cavalo do escrivão e o capim com o burro do carcereiro. E conclui que semelhante desfaçatez tem suas semelhanças com os demais serviços do Estado, em que o butim é repartido conforme cada função.
Neste momento morre seu tio, que deixando um testamento introduz a narrativa para a conquista da herança, ao ser obrigado a jurar perante testemunhas, que a receberia somente na condição de que:
“Primeiro: nunca se afastará da Constituição do Império.
Segundo: será leal ao partido político a que se achar ligado e não mudará de partido sem fortes razões de consciência.
Terceiro: nunca e, sob pena de maldição lançada por mim da eternidade, se venderá, ou venderá o seu voto a ministério algum (p. 32)”.
São estas, portanto, as condições éticas que a cobiça irá transgredir ao longo da obra. Nada mais atual ao quadro político brasileiro.
Seu julgamento não foi dos mais prazerosos. Numa conclusão cética, mostra que:
“o amor da liberdade e da Constituição quando chega ao grau de mania, é a mais perigosa de todas as loucuras. Decididamente meu Tio morreu louco furioso (p.32)”.
A prisão do compadre Paciência provoca sentimentos que podem ser expressos em mais uma variedade de situações:
Há a voz da consciência, como chama os padres, e, segundo eles, voz do dever que impõe, ou do remorso que pune, e, em uma palavra, mas ainda segundo os padres, voz de Deus falando na alma do homem.
Há a voz do coração, como a denominam os poetas, e, no dizer deles, a voz do sentimento, voz dos anjos sempre generosa e pura dos interesses e das misérias da terra.
E há a voz da razão, fria e positiva, voz humana que fala as realidades da terra e da vida, e que é luz que guia os homens nas sombras atrapalhadoras da viagem deste mundo” (p. 34).
Depois contesta estas vozes, dizendo que não se deve seguir a voz da consciência. Para ele a voz do coração é uma voz perigosa e estúpida.
“O sentimento é cego, e portanto o pior dos condutores”.
Mas como seu hábito consiste em julgar tudo sob o ponto de vista político, naturalmente que estes sentimentos são causadores de confusão e perda de discernimento. Eis aí como o ceticismo invade sua obra para dar o tom da realidade nacional. Destituído de escrúpulos, o Sobrinho pode muito bem revelar suas ambições secretas:
“não sou pior que muitos outros que têm enriquecido dedicando-se ao serviço do Estado: francamente eu desejo arranjar vida esplêndida, mamando nas tetas do tesouro público e, ainda mais, aproveitando a influência de uma alta posição oficial para ganhar dinheiro, que é o essencial e a grande realidade da vida. Como porém chegarei a realizar este sublime desideratum, vivendo grudado com a Constituição do Império, sendo leal ao partido a que me ligar e nunca me vendendo a ministério algum?” (p. 39).
O drama moral está posto. De um lado, a obrigação do testamento com seu tio, de outro a realidade das ambições de quem quer enriquecer a qualquer custo. Este é o fio condutor da obra. Macedo quer mostrar como funciona o Brasil político oficialista, o país onde tudo se resolve no fisiologismo. Eis aí a razão de seu livro ter caído no esquecimento. Não sendo ufanista do ponto de vista político, não sendo futurista, do ponto de vista do “país do futuro”, Macedo mostra como a falta de escrúpulos é o melhor caminho para a ascensão social. E o que ele está nos dizendo, há 150 anos, é que o SISTEMA está configurado para obter sucesso desta forma.
Tal qual o apedeuta, nosso indefectível dublê de Mazzaropi, o Sobrinho resolve carregar uma constituição no bolso do paletó, para com tal arranjo nunca se afastar da Constituição, mas nem por isso sentir-se obrigado a respeitá-la, pelo simples fato de que olhando para os ministros de estado verifica que eles também mantêm um exemplar sobre a mesa do gabinete de trabalho, e “fazem dela gato e sapato”.
E para resolver a exigência de nunca se vender a qualquer ministério, desanda a sofismar:
“o aluguel não é compra: o alugado não se vende. Protesto e juro que nunca me venderei a ministério algum; fica-me, porém, o direito de me alugar a todos os ministérios (p. 41).”
E por que cargas d’água haveria de ter escrúpulos sabendo que os que se arranjaram seguiram a mesma trilha? Coberto de sofismas, pede perdão ao tio na Eternidade. E, no solilóquio do corrupto, tresanda sua confissão:
“Consola-te do logro que vou te pregar, oh venerando finado! Consola-te com o Brasil; porque o Brasil é um tio velho e rico, cercado, atropelado de sobrinhos que o devoram, que o reduzem à miséria, e que se dizem patriotas, sem dúvida porque se consideram donos ou proprietários da Pátria (p. 42)”.
Lua de mel em Paris
Assim, para reforçar sua fortuna, o Sobrinho resolve casar com a prima Xiquinha e desfrutar uma saborosa lua de mel em Paris.
Enquanto isso, cavila sobre a importância que a sociedade atribui ao dinheiro, ao culto do bezerro de ouro, prometendo mandar às favas quem se atrever a censurar seus princípios egoístas.
Mas Xiquinha tinha uma mãe, que felizmente apresentava as melhores condições para quem quer namorar a filha: era surda e tinha a vista curta. Uma grande vantagem para quem desfruta da presença constante da sogra no sofá da sala, malgrado sua tagarelice verborrágica alucinante. E quando soube das reais intenções do genro ficou ainda mais surda e quase completamente cega.
Mas como era Xiquinha? Macedo traça um paralelo entre a noiva e as figuras da sociedade de sua época, arrematando com uma brasileiríssima e conhecidíssima imagem do nosso mundo político:
“o seu andar é tão mimoso e seguro, como o de um ator, digo mal, como o de um augusto digníssimo que é também conselheiro de estado, que ontem fazia oposição, e que hoje vai à casa do chefe do ministério pedir uma sinecura para seu sobrinho (p. 63-64).”
E conclui debochadamente que “a natureza da mulher não é totalmente humana: ela reune em si e em partes iguais alguma coisa do céu, alguma coisa da terra, e alguma coisa do inferno; sopro de Deus, costela do homem e tentação da serpente (p. 68).”
Vem o casamento e o banquete. De repente se lembra de ter esquecido completamente o compadre Paciência na cadeia. Pudera: “as duas preocupações do meu espírito eram dinheiro e mulher; dinheiro que levanta a cabeça do homem, e mulher que o faz andar com a cabeça à roda (p. 79).”
A dualidade moral é exemplificada em parábolas bem inseridas no contexto do andamento da obra. Como acreditar nas palavras dos conselheiros, se eles representam uma moral inexistente? Pregar a verdade, a retidão, os escrúpulos e a decência são coisas muito bonitas. Mas onde estão? Quem as pratica nas lides políticas?
Porém, o casamento foi um grande achado. A Xiquinha se revela uma pessoa extraordinária. Para sua surpresa, descobre nela sentimentos tão elevados, perspicácia e agudeza de espírito tal que se convence de que ela nascera para ser estadista, para organizar ministérios. Estando no século XIX, onde a mulher sequer tinha direito de votar, quanto mais a esses assuntos, novamente Macedo transgride as regras sociais, colocando a mulher como a portadora dos melhores conselhos políticos para o marido. E mostra que Xiquinha estava inteirada de todas as malandragens da política e disposta a seguir o marido em suas ambições.
“Hão de ver o que dá de si esta rapariga, que tem o pensamento no futuro: que aprecia devidamente o mundo em que vive; que é mulher pelo sexo, homem pela ambição, e o diabo pelo cálculo e pela tentação (p. 93)”.
E em amores pela Xiquinha, com a cabecinha recostada em seu ombro, desfila quem semeia e quem colhe na sociedade. Semeia o empreendedor e colhe o caloteiro, “semeia o estudioso e abalizado chefe de secretaria, projetos, melhoramentos, e bem combinados planos, que um ministro, tábua rasa ou pouco mais do que isso, apresenta às câmaras como seus, e colhe os aplausos, e as honras que a outro não a ele deviam cabe (p. 103)”, e, assim sucessivamente, numa longa lista de virtuosos e oportunistas, o que hoje se chamaria de produtores e saqueadores.
A parvoíce oficial assume um dos temas mais recorrentes na obra: de um lado a maneira como são escolhidos os ministros e secretários; de outro lado, como governam. Macedo diz que os ministros dirigem suas repartições por instinto e por tutoria. Por instinto, “fazendo parvoíces de todos os calibres, e por tutoria obrigada, assinando com uma cruz tudo quanto lhe escrevem os oficiais de gabinete que chama para lhe dar o trabalho de governar e administrar por eles” (p. 106). E fala de um relatório de ministro escrito por três oficiais de gabinete em que na segunda página atacavam-se as ideias da primeira, e na quarta, as ideias da terceira, de tal sorte que a oposição ficou basbaque e sem argumentos. E passa a discorrer da política de um Estado, como a maior das comédias. Atores, palco, contracenantes, plateia e camarotes, a companhia inteira é metáfora de sua incursão pela política oficial.
Mas não se pense que a mulher tinha um papel secundário no governo do Império. Ao contrário, era o melhor dos papéis, pois poderia mandar sem o incômodo de governar.
“A senhora sagaz, inteligente, e de vontade forte, faz prodígios em política: enquanto o marido é candidato à deputação, ela é o seu maravilhoso recurso de cabala, arranja votos, cantando um lundu, conquista um colégio eleitoral, dançando uma valsa, e firma o triunfo da candidatura, passeando e conversando num baile com o presidente da província” (p. 120).
Em suma, semeia para o marido: “faz nomeações, escolhe presidentes de províncias, elege deputados, resolve contratos de obras públicas, distribui pensões, suspende e demite empregados públicos, reforma a Constituição pelo capricho de um momento quando se penteia, faz das leis do Império e dos papéis de expediente que vêm da secretaria, papelotes para anelar os cabelos, e finalmente, quando tem ciúmes do marido, põe o ministério em crise” (p. 121).
Examinando-se a história dos desatinos ministeriais encontra-se o leque da mulher dentro da pasta do ministro. Ao término, Xiquinha exclama agitada: “Primo, você será eleito deputado!” Ao que ele responde: “Peço a palavra!, gritei, como se já estivesse na câmara” (p 122).
Passa os dias a conversar com Xiquinha sobre assuntos diversos em linguagem poética, para observar uma curiosidade etimológica:
“a raiz da palavra soldo é sol, porque a verdadeira luz é aquela que o ouro irradia. Há todavia mundos que são ao mesmo tempo do sol e da lua conforme se consideram as classes da sua população. O Brasil é o mundo do sol, porque há nele muita gente que vive a soldo do governo, e o seu governo tem sido muitas vezes verdadeiro Machiavel em ação. Mas o Brasil é também o mundo da lua para a nação que anda sempre a comprar nabos em saco, que grita ‘Viva a Constituição’ na festa oficial de 25 de Março, e passa sem Constituição em todos os outros dias do ano: mundo da lua para o povo, estupendíssimo soberano de comédia, que serve à mesa, e ainda em cima paga o pato” (p. 127-128).
E para zombar da sociedade, propõe à Xiquinha uma viagem a Paris em lua-de-mel com a condição de se autopromover, anunciando que vai estudar
“por exemplo, instrução pública, colonização, correios, estradas de ferro, etc., e um dia depois da nossa volta ao Brasil, os mesmos jornais proclamarão a sua chegada, e os profundos conhecimentos adquiridos em todos aqueles assuntos. Em Paris pagaremos a quem escreva e publique na imprensa artigos laudativos da sua aplicação, dos seus talentos, da sua constância no trabalho; esses artigos serão traduzidos e transcritos em todas ou em muitas gazetas aqui: para a mais alta fama do seu nome, você assinará e dará ao prelo memórias compostas por homens habilitados, a quem compraremos o trabalho intelectual, que aparecerá como de sua lavra, e tornando à pátria, meu marido, que na Europa só se ocupou em passear e divertir-se com a sua dedicada e terníssima esposa, será recebido no seio do país como um filho distinto, que o soube honrar no estrangeiro, e considerado pelos seus concidadãos capaz de desempenhar as mais altas comissões, e os mais elevados cargos” (p. 129-130).
E lá se foram os pombinhos para Paris. Esta preciosidade de crítica que haveria de se disseminar na literatura brasileira, como o gazeteio remunerado em Paris, foi retomada por Lobato, no conto Cartas de Paris, no livro ‘Ideias de Jeca Tatu’, 50 anos depois. A mesma artimanha colocada no encontro de um suposto jornalista com Graça Aranha, Olavo Bilac e outros em Paris, que Lobato prudentemente encapsula em pseudônimos.
E também essa descrição da “Paris dos nossos sonhos” foi a atitude mental responsável pela caracterização do brasileiro como o mazombo do célebre trabalho ‘Bandeirantes e Pioneiros’ de Viana Moog. Para o célebre crítico brasileiro, o mazombo tinha como ideal uma sinecura qualquer, e melhor ainda se em Paris. Incapaz de trabalho sério e compenetrado, sofria de falta de identidade, suspirava uma Europa civilizada capaz de lhe arrancar da melancolia tropical. Seu tipo psicológico pontificava “ausência de determinação e satisfação de ser brasileiro, ausência de gosto por qualquer tipo de atividade orgânica, carência de iniciativa e inventividade, falta de crença na possibilidade de aperfeiçoamento moral do homem, descaso por tudo quanto não fosse fortuna rápida e, sobretudo, falta de um ideal coletivo, na quase total ausência de sentimento de pertencer o indivíduo ao lugar e à comunidade em que vivia” (Bandeirantes e Pioneiros, Ed. Globo, 1954 – vol. 1, p. 146).
Mas o Sobrinho do meu Tio não deixou a viagem lhe escapar sem as benesses da remuneração, tão folgadamente presente hoje em dia nos roteiros elaborados dentro do Congresso Nacional, no Senado, nos Ministérios e Órgãos Judiciais.
Assim, enquanto Xiquinha iria apurar sua educação em Paris, o Sobrinho aprofundaria seus estudos de importantíssimas instituições na Europa, com o fim de melhor servir à pátria; “por consequência, a pátria tinha a obrigação de pagar as despesas da nossa viagem” (p. 130).
Quando se analisa a prestação de conta nos tribunais, ficamos sabendo que no Brasil de 1860,
“o Estado tem dinheiro como terra, e uma pequena parte dos tributos que o povo paga, sendo despendida com os passeios dos filhotes dos estadistas, não faz falta ao tesouro público. E nem há de ralhar por ninharia tão insignificante: os ministros sabem fazer as coisas: nenhum deles diz que seu filhote vai passear na Europa, e todos dizem que os seus filhotes vão em comissão de governo, uns para estudar isso, outros para examinar aquilo; mas por fim de contas, o isto e o aquilo acabam em coisa nenhuma, e os pequenos regalar-se-ão, o que é o essencial” (p. 131).
“Há filhotes para magistratura, filhotes para a marinha e para o exército, que atiram com os direitos de antiguidade e das promoções para os cantos da senzala do desprezo: há filhotes para as repartições públicas, filhotes para deputados, e mesmo filhotes de quarenta e mais anos para o senado, que ficam de improviso com merecimento que espanta e sabedoria que assombra; mas de que há somente testemunhas por ouvir dizer, e nem uma só de vista: há filhotes para obras públicas, filhotes para subvenções do Estado, filhotes para sinecura, ainda muitos outros, e finalmente, filhotes para passeios à Europa, que todos comem bons bocados, excelente doce que abunda na mesa do orçamento, e que os ministros repartem com obsequiosa prodigalidade por duas poderosas e convincentes razões, primeiro porque não lhes custa nada a eles, e não há coisa mais suave do que fazer favores com o alheio; segundo, porque uma mão lava a outra, e semelhantes favores rendem sempre aos ministros, ou votos no parlamento, ou apoio em eleições, e às vezes até demonstrações de gratidão tão pudibunda e melindrosa, que se esconde em segredo para que a luz não lhe faça mal. Em regra, são os padrinhos dos filhotes que manifestam o seu reconhecimento, e, sublimes transações, estupendos contratos! Nunca houve um só que fosse lesivo aos contratantes! Ganha o que dá, e ganha o que recebe: quem, segundo dizem, perde quase sempre é o Estado; mas o Estado é um feliz animal cego, surdo e mudo, que nunca vê, quando lhe deitam fora o dinheiro, nunca ouve quando lhe dizem blasfêmias, e nunca fala, nunca se queixa ou grita, nem mesmo quando lhe dão pancadas, e o arrastam pelas ruas da amargura” (p. 131-132).
O Estado é, portanto, um instrumento claro de pilhagem, e essa característica o sistema político tem conseguido manter, malgrado todas as nossas turbulências políticas intatas nos albores do novo milênio que parece não dar sinais de moralizar-se.
O Sobrinho parte pois a Paris, consciente de que ninguém vai à capital francesa que não volte sábio. Mas se recusa a comentar sua estadia na cidade das luzes, para não desviar o leitor de seus feitos na terrinha, e também para não abusar do direito de mentir. E comprando dissertações de trabalhos para apresentar ao governo, confirmou, com seu estilo de malandro empolado, que se pode comprar ideias como se compram peixes e verduras na praça do mercado.
A candidatura
De volta ao Brasil, começa uma das partes mais interessantes da obra. O Sobrinho prepara sua candidatura a presidente de província, como ponta de lança para retornar à capital e dali eleger-se deputado. Desenvolve seu método a partir da análise dos procedimentos dos ministros e membros da alta hierarquia do Império. Descobre logo que o oportunismo é a chave da ascensão e que a concessão aos amigos é a munição que lhe fará vitorioso. Primeiro, nos conta do savoir faire da Xiquinha lindamente vestida e preparada para encantar a corte do Rio de Janeiro: “a Xiquinha alegre, espirituosa, expansiva, bela e hábil começou a causar delírio, sem contudo arriscar-se a comprometimento algum: deixava que lhe fizessem a corte; mas só até o limite que a honestidade permite. Estávamos em mar de rosas, que é o mar das esperanças” (p. 155).
Com tantas providências, não deixa de analisar a situação da governança do país, descrevendo o peculiar tratamento dos ministros com a coisa pública: “mentiam cem vezes por dia: faltavam à palavra dada cem vezes por mês; adoravam as pastas, acordavam à noite sobressaltados, sonhando com crises ministeriais, e juravam a todas as horas que estavam fazendo votos ao céu para se verem fora das cadeiras de Procusto onde se viam atados.
“Asseveram que lhes faltava o tempo para o desempenho de todos os seus deveres e para atender a todos os assuntos da administração e que não tinham sossego, nem consolações; mas não perdiam um banquete, nem baile, não sentiam fastio, palestravam com os amigos até alta noite, os amantes da cena frequentavam os teatros e não iam ao Alcazar Lyrico somente pelo receio de alguma pateada. Uns eram senadores, outros deputados: os que não eram senadores e contavam quarenta anos, pensavam em sê-lo, e informavam-se caridosamente do estado dos vitalícios doentes; e os que estavam longe do oitavo lustro faziam estudos profundos sobre a teoria e a prática das compensações” (p. 158).
Mas, por estranho que pareça, esses ministros, antes na oposição, tinham falado muito em Constituição, sistema representativo e liberdades públicas; agora entrados nos ministérios “fizeram da primeira – peteca – do segundo – fantasmagoria – e da terceira – palitos” (p. 159). Com a ressalva de que palito era na época uma pessoa objeto de divertimento dos outros, Macedo trata de se defender: “quem tem razão sou eu que não acredito na coisa, e trato de arranjar a minha vida sem me importar com honra, virtude, e dedicação à pátria, três estúpidas atrapalhadoras do conseguimento das grandezas sociais e políticas.
E o senhor Brasil não se vexe nem se envergonhe destas misérias humanas; porque lá pela Europa civilizada o que eu vi foi isto mesmo, salvas impertinentes exceções que felizmente não abundam. Lá também a adulação é escada segura, a mentira é dogma para os ministros, a traição é recurso que aproveita, e a desmoralização substitui perfeitamente a forca de Richelieu, ao quero de Luiz XIV, à guilhotina de Robespierre e etc” (p. 159).
E como bom gozador, trata de demonstrar como estavam as coisas no domínio dos ritos democráticos, com uma denúncia tão familiar aos nossos ouvidos 150 anos depois.
"O Brasil continuava na posição astronômica marcada pelos geógrafos, e no gozo perfeito e afortunado dos benefícios do calor e da umidade.
O governo era, como d’antes, monárquico, hereditário, constitucional, representativo, conforme está escrito no art. 3º da Constituição, ..... o gabinete encerrara a sessão legislativa sem haver feito passar o orçamento anual, e por isso estava sendo muito censurado pelos últimos e penúltimos ex-ministros, que do mesmo modo tinham governado o país, dispensando essa recomendação essencial da defunta” (p. 160).
Para um país atualmente próximo dos 30 partidos políticos, a observação de Macedo não poderia causar estranheza:
“Não havia ministro, senador, deputado, jornalista, simples cidadão que não se entusiasmasse, falando do seu partido, e todos também se ocupavam de uma coisa que chamavam de reorganização dos partidos (p. 160).
“Estavam na moda três questões principais:
“Regeneração do sistema representativo, pobre soneto com versos de pés quebrados de que cada qual por sua vez mostrava os defeitos, e subindo ao governo, apresentava emenda pior que o soneto.
“Questão financeira, problema em resolução consecutiva e que se resolvia, mudando-se o sistema e de escola econômica de seis em seis meses.
“Emancipação de escravos, gato em cujo pescoço não se amarra facilmente o guizo: nó górdio que em meu parecer deve cortar-se de um golpe: porque eu já tinha vendido todos os escravos que me couberam na herança de meu Tio” (p. 161).
Mas havia outros sinais que marcavam a situação política: os que estavam encima não queriam descer, e os que estavam embaixo queriam subir: daí provinha uma gritaria infernal. E resumia a situação como um grande embrulho a desembrulhar que cada vez se embrulhava mais.
E conclui: “eu não conheço no mundo país como o Brasil, onde se fale mais em partidos políticos, e onde menos se façam sentir os políticos na governança do Estado” (p. 164). Soa familiar ao século XXI. Como o Brasil é enfadonho!
“A verdade é que felizmente para os egoístas e especuladores políticos... não há desde muitos anos partidos legítimos governando franca e lealmente o Estado, há sucessivamente no poder uma poli-farmácia de homens que não podem decentemente entender-se, de ideias que não se combinam, de aspirações que se repelem, imbróglio político que faz as delícias dos egoístas e especuladores e por consequência a fonte aberta da imoralidade política, fonte para mim dulcíssima, onde hei de beber, e beber até a saciedade” (p. 165-166).
“O que eu tenho visto e espero ainda continuar a ver, é o mais feliz e engenhoso jogo do aí vai o papelão político, em que aí vão se sucedendo no governo séries de homens antigos e novos, que juram, protestam ser de família diferente dos antecessores e sucessores, e que entretanto são todos irmãos gêmeos, falam todos a mesma língua, têm todos os mesmos sestros, fazem todos a mesma coisa e até se parecem perfeitamente uns com os outros naquilo que lhes falta;
porque poucos deles têm religião de princípios, firmeza e lealdade de crenças, amor do poder pelas ideias, e desapego do poder pelas suas individualidades. Convenho em que haja exceções (raríssimas) desta regra: mas tais exceções são notas desafinadas no grande coro do egoísmo” (p. 167).
Então, depois de percuciente análise, decide escolher o partido para lançar sua candidatura. Porém sabe que a capacidade de desempenhar-se no cargo depende mais das amizades que da competência, até porque eleição é coisa que nos dias atuais é diferente dos tempos revolucionários em que a patuleia realmente elegia seus representantes. Atualmente “são os delegados de polícia, e os chefes da guarda nacional que elegem os eleitores em nome da ignóbil patuleia, que ou se submete, ou é recrutada e apanha pancadas, e são os ministros, os presidentes de província, e os chefes de polícia que elegem os deputados em nome dos eleitores, quer eles queiram, quer não; porque ao governo sobram os meios de fazer querer contra a vontade” (p. 168).
O Plano Político de eleger-se
Para conseguir eleger-se, o Sobrinho articula uma trama cheia de aliciamentos, malícias e manipulação. Com sua adorada Xiquinha, amiga de toilete da mulher de um ministro, começa a puxar seu saco para despertar as mais regaladas manifestações de apreço. Transforma sua casa no ponto de encontro do alto escalão, onde eventos se sucedem em bailes e contradanças ao estilo vienense. Com isso, o Sobrinho mergulha numa febrilante atividade social. Convidado para ser padrinho de casamento do filho do ministro, ele encomenda um soneto a 10 mil reis para ler ao rapaz: soneto lacrimejoso, ideal para marcar fundo nos corações que haveriam de subscrever sua candidatura.
Segundo Macedo, naquela época, o candidato só se elegia se a polícia deixasse, pois o voto era aberto, o eleitor constrangido ao máximo, e a célula eleitoral indesejada frequentemente desaparecia. Eleitores de um curral eleitoral eram barrados e espancados para não chegarem à urna eleitoral. Para ser candidato, não era necessário nenhum diploma de idoneidade moral e probidade ética, tampouco demonstrar serviços prestados ao país.
Para poder chamar atenção para si, resolveu fundar um jornal, e colocar em circulação suas ideias em 3 edições semanais. Com isso, sabia que elogiar as figuras do governo lhe renderia extraordinários benefícios políticos. Contratou as cabeças de aluguel entre a juventude estudantil, e fundou A Espada da Justiça.
Sua discussão com Xiquinha para definir a linha editorial do jornal mostra Macedo como um profundo analista social: “porque o povo, à força de se ver mil vezes enganado, perdeu as crenças, e assiste quase indiferente às lutas” (p. 176), ressalvando os seguintes tipos de jornais em sua época: “há a gazeta excepcional, a gazeta séria, que discute as questões, aprofundando-as, que não faz arma da calúnia, nem da injúria pessoal; há a gazeta exaltada e violenta que tem princípios definidos; mas que insulta o adversário, e nunca enxerga nele nem merecimento, nem ato acertado, nem honra, limitando-se porém a atacar a pessoa do adversário, e parando nela” (p. 178)
Mas qual deveria ser o perfil de A Espada da Justiça? Em seu diálogo com Xiquinha, o Sobrinho fala abertamente: “o pelourinho civilizado: a gazeta sem ideias e que se proclama idealista, que não tem consciência e que fala em nome dela, que afeta gravidade nos artigos de redação, e que espalha veneno em artigos anônimos, mas de lavra própria, e que com esses recursos assassina ou faz assassinar a honra alheia, quando isso convém ao seu interesse, ou aos ódios de que o aluga...” (p. 178).
Aconselhado por Xiquinha, resolveu combinar os dois tipos: o pelourinho civilizado com a gazeta exaltada. Contra sua expectativa, pois o jornal tinha a missão de servir apenas como veículo eleitoral por 3 ou 4 meses da campanha, teve numerosos leitores,
“um certo esmero, às vezes pedantesco, na redação, devido ao talento dos meus jovens colaboradores, a audácia nos ataques, a exaltação das ideias, a impostura de independência deram interesse ao periódico” (p. 180).
A estratégia deu certo: em pouco tempo passou a receber bilhete dos ministros, com rasgados elogios e copiosos oferecimentos de ajuda nessa missão cívica sem precedentes de ser um órgão de apuro ético e civilidade social.
Na encruzilhada entre entregar-se imediatamente ao primeiro apetite de verbas secretas, e resistir até abocanhar mais, o Sobrinho ficou vacilante e resolveu não afrouxar a ambição imediata: com isso, o povo bate palmas e o egoísta fica desfrutando da confiança popular para consumar sua traição sem peias mais adiante quando sua ambição for satisfeita.
Sua análise é uma preciosidade da Era Lula, que fluía diretamente para blogueiros as verbas da Secretaria de Comunicação Social:
“os ministros no Brasil estão tão habituados a pagar com o dinheiro da nação a imprensa que os defende, que o uso já tem feito lei...” (p. 184).
E penetrando no nosso mundo original, na formação íntima do nosso sistema político, nos conduz a esta reflexão arrasadora:
“a imprensa política deve ter obrigação de considerar impecáveis os ministros que reputa do seu credo político: a boa disciplina de um partido exige que os partidistas de um ministério abdiquem o direito de pensar e de ter consciência, limitando-se a dizer amém a tudo quanto quiser e fizer o ministério: em política é loucura querer viver pela verdade, e é prova de bom juízo arranjar a vida pela condescendência com a mentira: o Brasil já é prática muito antiga que os ministérios se organizem, manifestem a procedência, não direi dos partidos, mas dos lados ou dos grupos parlamentares d’onde saíram, não realizando no governo os princípios que sustentaram na tribuna, sim, repartindo as posições políticas influentes, e os empregos lucrativos pelos sócios da comandita que conseguiram o monopólio temporário do governo do Estado.
“Com imprensa política livre e independente, com imprensa zeladora dos princípios, sem condescendências contraditórias dos princípios não haveria no Brasil ministério regular, porque no Brasil o que é regular, é que o governo não tenha princípios definidos. E os patetas ainda querem reformar a sociedade!” (p. 185-586).
Com semelhante diagnóstico, com 150 anos de antecedência, Macedo comprova como a verdade nos conduz em rota de colisão com as nossas instituições oficiais dedicadas ao progresso político. Desfeitas todas as camadas, descarnada até o osso a verdadeira natureza do mundo político, o Sobrinho parte então para o arranjo de sua candidatura.
Como se faz um candidato
Em que consiste mesmo as eleições no Império? Como se fazem candidatos em um regime cuja principal ocupação é mesmo o desgaste com os arranjos, a dissipação no toma lá da cá, o consumo suntuoso de tempo e dinheiro na montagem de combinações, no desmonte e traições miúdas, nas desculpas e nas promessas?
Sim, porque a política é a arte de criar arranjos sobre uma realidade caótica, na qual uma parte do mundo político participa como um saqueador e outra parte como bombeiro.
Na época do Império, o voto era diferente do voto atual. Primeiro fazia-se a eleição geral de eleitores, chamada de eleição primária, e um mês depois, a eleição secundária, ou dos deputados. Os presidentes de província, correspondentes aos nossos governadores, eram todos nomeados.
A eleição era feita pela apresentação do eleitor no local indicado para inscrever-se, impedindo assim que o governo fizesse eleições de improviso. Macedo critica esse sistema, porque fazia a oposição movimentar toda uma máquina de eleitores para se inscrever, e no dia da votação, novamente levar os eleitores ao local de votação, o que encarecia as campanhas e não impedia a fraude do governo, que usava de todas as artimanhas imagináveis para impedir o eleitor de chegar na segunda eleição. O diagnóstico é, portanto, importante de ser citado, pois ele reflete mais que a situação propriamente eleitoral, isto é, a paisagem geral do Poder no Império:.......
“Primeiro: o ministério muda ou faz contradança de presidentes de províncias e de chefes de polícia, os quais são escolhidos a dedo entre os já provados conquistadores, que têm realizado a fortuna de Cesar: veni, vidi, vinci.
‘Segundo: em cada província o respectivo presidente ou faz tábua rasa na máquina policial existente, e enche os jornais com portarias e demissões e nomeações de delegados e subdelegados, ou aperfeiçoa e fortalece todas as malhas da rede já preparada: às vezes em certas províncias até se nomeiam para cargos policiais de municípios suspeitos homens que são réus de polícia, e ainda mesmo assassinos: mais, quem têm culpa disso é o povo desses municípios que não quer obedecer as ordens do governo, votando livremente, como o governo manda.
Terceiro: em todas as paróquias opera-se mudança ou aperfeiçoamento igual no exército pedestre dos inspetores de quarteirão.
Os inspetores de quarteirão eram os que faziam a triagem dos eleitores no dia do voto. Acompanhados da polícia, aqueles eleitores indesejados eram simplesmente mandados circular para outro lado do povoado, bem longe da urna.
Quarto: as malas do correio não chegam para as cartas que recebem, e o selo rende novecentos e noventa e nove porcento mais.
Quinto: descobrem-se parentescos e amizades com que nunca d’antes se havia sonhado.
Sexto: multiplica-se o número de excelências de um modo extraordinário: esse tratamento torna-se quase geral.
Sétimo: tem alta excepcional na praça a mercadoria dos protestos de patriotismo, dedicação à causa pública, e, sobretudo, de eterna gratidão.
Oitavo: os negociantes com relações no interior, e principalmente os consignatários, não têm mãos bastantes para escrever post scriptum nas cartas que mandam aos fregueses.
Nono: quadruplica a despesa do chá e dos sorvetes nos salões dos ministros.
Décimo: estragam-se em três ou seis semanas seiscentos chapéus à força de muito cortejar a ignóbil patuleia.
Undécimo: chega das províncias à capital do Império cada bicho que mete medo.
Duodécimo: descompõe-se o passado, o presente e o futuro de Adão e Eva em todas as gazetas da capital e de todas as províncias do Império.
Décimo terceiro: há patronato como chuva em Dezembro, traições como ratos em casa velha, adulações como farrapos em casa da miséria, dinheiro como nas casas de jogo, infâmias como nos lupanares.
Quando semelhantes sintomas se pronunciam, podem contar que há eleições batendo à porta, e que o governo está, por exceção, em época de gloriosa atividade” (p. 191-192).
A campanha política
Excelente sátira da situação social dos períodos eleitorais do Brasil arcaico. Conseguindo uma vaga nas eleições distritais de então, o Sobrinho constatou que seu distrito – ganho como atenção aos esforços em um quadro inflacionado de candidatos, todos em busca de se arrumar na vida – ficava em local onde o diabo perdeu as botas. Esbaldado em tentar conseguir o distrito de seus padrinhos de casamento sem sucesso, o Sobrinho não tem outro remédio senão partir para o interiorzão, situação humilhante para o redator de A Espada da Justiça.
Como as escolhas partidárias para os distritos era uma tarefa cruel “o partido que sustenta o ministério, ou para falar com mais precisão, o partido que o ministério sustenta”(p. 195) tinham que decidir quem era quem nas atualmente conhecidas convenções partidárias, naquela época chamada de etiqueta. Ora, tal como hoje, as reuniões não resolviam coisa alguma, as decisões já tinham sido tomadas nos conchavos precedentes. Cabiam às reuniões apenas referendar os candidatos dos distritos. Mas lá dentro se discursava, discorria, esbravejava, trovejava alhos e bugalhos como se tudo fosse ser resolvido no teatro do palavrório inútil, e então se votava e aprovava conforme os conchavos. E Macedo conclui:
“Por que acontece assim? Porque, infelizmente para os homens de juízo, para os especuladores políticos à cuja grei pertenço, ou não há, como sustento, verdadeiros partidos políticos no Brasil, isto é, partidos de ideias, cujos chefes só o sejam pelas ideias e pela capacidade e leal disposição de as realizar no poder, sine qua non, e há somente bandos e sequelas que se unem por simpatias a certos homens, e por oposição a outros bandos e sequelas, e que tomam nomes sem dar importância às ideias que esses nomes significam” (p. 198).
Eis a situação enfrentada pelo Sobrinho. Na província designada pelo ministério para concorrer a uma vaga, governava o comendador Bisnaga (“ah, no Brasil, há até bisnagas comendadores!”). Este presidente de província tinha a peculiaridade de ser vesgo de um olho e coxo da perna direita. Além disso, tinha uma filha quarentona solteira “feia como um jaboti”, de nome Desideria. Macedo faz um trocadilho com o nome para dizer que a tal Desideria nunca tinha sido desejada.
Nessa época os presidentes de província não eram eleitos, porém nomeados e encarregados de executar as eleições (não havia justiça eleitoral).
Mas o panorama de apreensões se acentuou quando o Sobrinho soube dos candidatos concorrentes ao mesmo posto que ele: um era o sobrinho de um ministro, considerado eleito de antemão; e o outro era o filho do barão mais rico da província: um candidato recém saído da Faculdade de Direito do Largo do São Francisco, “inteligente, travesso, ambicioso, que tinha a alcunha de doutor Milhão” (p. 200). O tal doutor Milhão era o concorrente direto do Sobrinho, que logo se descobriu tratar-se de um oposicionista, liberal e republicano, portanto, um subversivo nato, um perigo público, só tolerado por ser filho de papai. Logo, o Sobrinho começou a intensificar a campanha para tentar convencer o eleitorado de seus propósitos políticos muito mais afinados com a ordem constitucional vigente. E neste ponto Macedo revela sua reflexão fabulosa sobre o processo eleitoral:
“... quando o governo quer, vence eleições, zombando dos mais colossais elementos de oposição, e do próprio poder da mais opulenta riqueza. Imagine-se uma paróquia em que 490 em 500 votantes sejam contrários ao governo, contrários a todas as influências legítimas, todas as autoridades eletivas, toda a riqueza da paróquia: pois bem, aí mesmo o governo ganha a eleição e até por unanimidade de votos. Basta querer: o meio é simples e já muitas vezes posto em prática. No dia solene do voto livre amanhece a matriz com as portas guardadas por soldados com espingardas carregadas e de baionetas caladas: o povo quer entrar na matriz e não lhe dão licença, protesta que tem o direito de votar e tem em resposta uma gargalhada do subdelegado. Se, em desespero tenta penetrar na Igreja, os soldados fazem fogo, morrem 4 ou 6 cidadãos livres e os outros, feridos ou não, deitam a fugir e vão fazer uma duplicata inútil; mas no maior nr. de casos o povo soberano retira-se prudentemente antes que a história acabe em banho de sangue e ou nesta ou na primeira hipótese, a polícia procede à eleição suave e naturalmente, a urna fica atopetada de listas, embora ninguém votasse e ‘entrou por uma porta, saiu pela outra, manda El-rei meu Senhor que me conte outra“ (p. 201).
Para alavancar sua candidatura, o Sobrinho começou a fazer visitas, convidar membros da comunidade para reuniões, realizar festas em sua casa com boca livre para todos os participantes. Em pouco tempo, a movimentação eleitoral era intensa. Enquanto isso, seu adversário, o doutor Milhão também percorria a província trabalhando com furor. Comportava-se como se não fosse adversário político, fazendo visitas ao Sobrinho e achegando-se em amizades. A princípio, o Sobrinho achou esquisita aquela atitude, pois o jovem advogado se acercou de Xiquinha e começou a declamar versos como se fora um membro da família. Rindo-se à toa, o Sobrinho começou a conchavar com o doutor Milhão como se nem fossem adversários. Certo dia, o comendador Bisnaga chama o Sobrinho para pedir, confidencialmente, que se afastasse do doutor Milhão por se tratar de um inimigo declarado do governo, e além disso, republicano confesso e ostentoso. O Sobrinho achou estranha semelhante atitude, pois que o doutor Milhão era homem de boa sociedade e recebido com todas as honras na própria família do Comendador. Ao que o comendador então redarguiu que como presidente da província tinha que receber a todos sem distinção, mas que enfatizava sua recomendação para que se afastasse do doutor Milhão.
Comentando o fato estranho com a Xiquinha, esta afligiu-se um pouco e disse que a candidatura do marido estava perdida. Surpreso, mas incapaz de perceber a realidade, o Sobrinho caiu em gargalhadas. Depois, a Xiquinha explicou que seu pressentimento era coisa de mulher, esse sentido especial de que os homens não são dotados e que deixam as coisas em suspense. Como um processo eleitoral tão viciado poderia lhe escapar se o seu adversário era contra o governo e não tinha as simpatias do presidente da província, o comendador Bisnaga? Não poderia haver outra situação que não fosse a sua vitória, apesar de volta e meia Xiquinha advertir que sua candidatura corria sérios riscos, sem indicar quais eram.
Quando chegaram as eleições, o partido de Bisnaga venceu em todas as paróquias da província, sem violência. A apuração dos votos deu a vitória para os candidatos oficiais que, para perplexidade geral, era o doutor Milhão. Dez dias depois, o doutor Milhão casa-se com a filha do comendador Bisnaga, ele com 22 anos, ela nos 40 anos ainda burra e feia. Foi a mais espetacular derrota que o Sobrinho sofrera. Humilhado, ainda teve que esperar 30 dias na cidade a chegada do paquete que lhe levaria até a capital, e ainda ter que suportar uma saraivada de foguetes na partida no cais do porto. Na contagem geral de todos os colégios, o Sobrinho obteve apenas 7 votos. Imagine o fiasco, o candidato oficial com 7 votos!
Jurando que o dia em que se tornasse presidente de província iria destituir o Bisnaga de todos os cargos, obrigá-lo a assentar praça como soldado raso, mesmo com o título de comendador e a perna coxa, o Sobrinho chegou ao Rio de Janeiro
“transpirando princípios liberais e máximas de severa moralidade política por todos os poros” (p. 212).
Começou a preparar sua vingança, transformando A Espada da Justiça em um periódico com o novo nome de Raio do Desengano, para “fulminar todos os perversos e opressores do povo” (p. 213).
Mas eis que entra em cena o espetáculo do Brasil eterno: o suborno dos cargos públicos. Sabendo das intenções, o ministro que tinha designado a candidatura do Sobrinho veio pedir-lhe desculpas pela derrota, oferecendo a Sobrinho a presidência de uma província como compensação. Foram-lhe agraciadas tantas compensações que o Sobrinho chegou a confidenciar que teria se vendido por muito menos. E para divertimento da Xiquinha, o Sobrinho teve que confessar que seus arroubos de moralidade terminaram tão rápido quanto uma tempestade de verão.
Para Xiquinha, o que lhe tinha sido dado ainda não era o bastante. Ela queria que o Sobrinho conquistasse o título de Barão. Depois de algumas perplexidades com semelhante proposta, Xiquinha finalmente confessa que queria ser Baronesa. E como não era mulher de mudar de ideia quando alguma coisa se metesse em sua cabeça, o Sobrinho começa a cavilar uma estratégia para obter mais essa condecoração gloriosa.
Neste ambiente, é que seus diálogos com Xiquinha recuperam mais uma observação contundente sobre o papel da oposição. A de que o sistema representativo sem uma oposição
“o governo nem examina, se desvaira: corre sem cuidado à rédea solta, e às vezes se lança em precipícios; e pelo contrário, as censuras e os brados da oposição o trazem alerta e cuidadoso; dão-lhe faróis, mostram-lhe os perigos, e até lhe emprestam força para resistir às exigências inadmissíveis dos falsos, ou pesadíssimos amigos” (p. 219).
Nesse momento, o Sobrinho lembra-se do compadre Paciência, apodrecendo na prisão por sua intransigência com os princípios liberais e com a Constituição do Império. Acorre em soltá-lo e a partir de então a obra inicia o diálogo com o lado moral da política, na figura do pensamento do compadre Paciência.
O diálogo dos dois é saboroso, pois ao saber que o Sobrinho tinha conseguido o cargo de presidente de província, o compadre Paciência logo atinou que este deveria estar muito ocupado em assuntos administrativos e em política econômica, ao que o Sobrinho logo respondeu que em matéria de administração enxergava tanto como o menino analfabeto que entra para a escola.
“ – E conhece a província que tem de presidir? Sabe quais são as suas circunstâncias políticas e econômicas? Quais as suas grandes necessidades? Que fontes naturais de riqueza podem nela ser exploradas?
“ – Nem migalha de tudo isso.
“ – Então que vai fazer?
“ – É boa pergunta! Vou ser presidente de província, vestir farda bordada, ter tratamento de excelência, bocejar nas audiências, comer nos banquetes e dançar nos bailes que me derem, arranjar a maioria na assembleia provincial, recrutar na oposição, despender dinheiro da província sem me importar com a lei do orçamento, ter o meu exército de afilhados, e antes de tudo e principalmente arranjar a vida” (p. 225-226).
E então a perplexidade do Compadre Paciência é revelada no diálogo entre o bem e o mal, entre a virtude cívica da administração voltada para o interesse público e a política sempiterna do interesse pessoal, a mesquinharia política. O contraponto entre o que deve ser um governo e aquilo que ele realmente pratica permite que Macedo mostre toda a sua lucidez na interpretação do drama político do século XIX. Realmente a única coisa a lamentar é que Macedo não tenha dado um nome próprio para o Sobrinho de Meu Tio, porque se isto lhe ocorresse certamente teríamos na cultura brasileira mais um superlativo do tipo quixotesco, molieresco, dantesco, etc.
A análise que o compadre Paciência faz do Brasil vai da insanidade do nosso sistema político até pontos interessantes como os segredos de estado. São denúncias da realidade social, dos modos de governar, do torvelinho de ilegalidades que se comete no país. Um livro dos mais atualíssimos para se conhecer um país cujo sistema político pouco se modificou ao longo de 150 anos, e que agora, no auge do petismo, retorna aos tempos do Império.
Ao narrar seu governo provincial, o Sobrinho desfila a lista completa da doença política brasileira mais resistente: o nepotismo, o empreguismo na administração e o concessionismo. Mas também e, sobretudo, o fisiologismo na fabricação da maioria nas assembleias legislativas.
Com o compadre Paciência sempre ao lado, como se fosse sua consciência moral, o Sobrinho intercala seus desastrosos atos de governo com as críticas pertinentes sobre o estilo de governar no Brasil.
Ao todo foram 4 nomeações como presidente de província, sucedendo-se em prazos variáveis de 9 a 12 meses. Em todas, a contradição entre as ações reais do mau governo e a consciência moral do bom governo nas críticas do compadre Paciência, seu Sancho Pança.
As governanças foram como um desterro a que o Sobrinho se submeteu até conseguir na eleição seguinte uma vaga de deputado na Assembleia Geral, correspondente ao Congresso Nacional hoje. Retornando ao Rio de Janeiro, começa a esfuziante vida na Corte, com seus saraus, bailes, festas e o dolce far niente da vida parlamentar.
Mas sua presença na Câmara mostra a hilaridade de Macedo com os atrapalhos da vida parlamentar, dos discursos improvisados, das gafes e da ridicularização. Foi em um baile que Xiquinha inspirou-se em conseguir um título de Barão para o marido.
As peripécias para conseguir tal título correspondem à parte final desta obra mestre de sarcasmo e ironia de Joaquim Manoel de Macedo. Como se pode prever, as cavilações não deram certo e a novela acaba sob o peso ridículo do Sobrinho ter sido descoberto pela mulher envolvido com uma Madame Quelque Chose, atriz de teatro em passagem pelo Rio de Janeiro. Caído em uma cilada preparada pela própria mulher, o Sobrinho retorna à vida parlamentar com a humilhação do ridículo e as caras com que descreve os membros do governo no início da novela.
Uma obra que deveria ser lida por todos os estudantes que pretendem se iniciar nos estudos dos problemas brasileiros. Até hoje desconheço outra novela que trate de nossas mazelas políticas com a intensidade e ironia de Memórias do Sobrinho de Meu Tio. Certamente deve ser a causa do esquecimento a que tem sido relegada por tanto tempo.
Memórias do Sobrinho de Meu Tio pode ser adquirido via internet nas livrarias ou como exemplar usado no site da Estante Virtual. Infelizmente ainda não está disponível digitalizado em domínio público. Um exemplar escaneado, com a sintaxe de 1904 pode ser obtido em http://www.caminhosdoromance.iel.unicamp.br/biblioteca/0273/index.htm
ótimo resumo!
ResponderExcluirParabéns pelo excelente trabalho! Li "A carteira de me tio" e agora estou louco para ler essas "Memórias"...
ResponderExcluirQuem sao os personagens princiapais desta obra?
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