terça-feira, 22 de outubro de 2019

O BRASIL PARA PRINCIPIANTES

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo

O BRASIL PARA PRINCIPIANTES – PETER KELLEMEN

A crônica brasileira é um gênero que, analisado em sua revelação de costumes, pode se considerar situada entre a narrativa histórica e a literatura.
O ano era 1946. Um imigrante húngaro, decidido a fugir de seu país depois da II Guerra, consegue chegar a Paris onde busca visto de entrada na representação consular brasileira. Sendo médico de profissão, o Cônsul atendeu-o perfeitamente, mas, ao perguntar se ele pretendia exercer a profissão no Brasil, e ante a resposta evasiva decidiu que ele deveria se registrar como agrônomo. O imigrante ficou desconcertado. Aquilo poderia ser uma cilada para que prestasse uma declaração falsa e depois tivesse o visto negado ou uma complicação maior se chegasse ao Brasil.

Relutou o quanto pôde, mas o Cônsul insistia para que entrasse no Brasil como agrônomo. Naquele pós-guerra, o Brasil calculava ter recebido 2 milhões entre refugiados e imigrantes voluntários das terras europeias, dispostos a começar vida nova no país das maravilhas.

Frente a hesitação do solicitante, o Cônsul percebeu o constrangimento e foi logo abrindo o jogo:

– “Meu filho, este negócio de agrônomo não vai ser problema. Assim que chegar, quando estiver no Brasil.....” tropeçou nas palavras porque, falando em inglês, não sabia dizer “você vai dar um jeito”. Pediu socorro a um auxiliar catarinense que também falava alemão e não conseguiu se explicar em inglês. Mas ao fim, o húngaro percebeu “que não se tratava de provocação, mas não sabia que acabara de falar com dois representantes de um povo onde as leis são reinterpretadas, onde regulamentos e instruções centrais do governo já são decretados com um cálculo prévio de percentagem em que serão cumpridas, onde o povo é um grande filtro das leis e os funcionários, pequenos ou poderosos, criam sua própria jurisprudência”.

E assim, promovido à agrônomo, o nosso médico conseguiu a promessa do visto de entrada no Brasil assim que conseguisse o atestado de vacina que deveria ser aplicada por um médico, perto do consulado. Por acaso era um francês que tinha morado vinte anos no Brasil e, para mais uma surpresa do húngaro, recomendou que não se vacinasse, fornecendo um atestado como se o tivesse feito. Era um mundo de perplexidades para o futuro imigrante húngaro, mas perguntando para o ilustre médico como tinha sido sua vida no Brasil, ele foi direto: – “Que país! Que mulheres! Não há nada no mundo comparável à carioca”. O candidato a imigrante recebeu a primeira lição: o que era uma carioca. E os conselhos começaram a brotar de forma a multiplicar sua perplexidade, pois o médico insistia para que ele chegando no Brasil, se preocupasse em entender as duas línguas vigentes que se falava no território.

– “Duas?”

– “Sim. O Português que é o idioma que se fala no Brasil... e depois, o código secreto”. O húngaro quase caiu para trás. “Se não conheces o código estás perdido. É uma coisa que liquida com os nervos e pode até acabar com a vida dos forasteiros. É falado em português mas precisa ser reinterpretado porque tem outro sentido. Varia de pessoa para pessoa e não tem tradução geral”.


Esta introdução serve de preparação para o leitor entender nas crônicas que se seguem qual é o Brasil que se aprende nas ruas e que funciona ao revés do que é propagado. Um Brasil real que não tem nada a ver com o Brasil oficial.

Para saber como as coisas funcionavam no Brasil é inútil buscar em livros de história. Somente a crônica e a literatura nos fornecem os costumes preciosos de um determinado momento, as vezes de pequena duração, outras que se arrastam por décadas. É o caso das linhas de bonde elétrico inauguradas em São Paulo no início do século XX. Para andar de bonde era necessário que o passageiro masculino estivesse portando gravata. Lobato conta que, tendo esquecido a gravata certo dia, ao lembrar-se levou imediatamente a mão ao pescoço para que não o convidassem a sair do bonde.

No final da construção do Viaduto do Chá, para amortizar o investimento, a Prefeitura terceirizou o serviço de exploração do viaduto que consistia em cobrar pedágio dos pedestres que pretendessem passar da Sé para a República. Quem não podia pagar era obrigado a descer o barranco do Anhangabaú e depois subir do outro lado. Este não é um fato isolado no mundo. Diversas pontes foram construídas em diferentes países com esse espírito de cobrança de pedágio na época, e todas elas acabaram sendo de livre circulação em consequência de revoltas populares.

Um dos depoimentos importantes do livro "O Brasil Para Principiantes" de Peter Kellemen, é relativo a situação dos telefones no Rio de Janeiro no tempo da exploração privada que antecedeu os anos 70.

Para entender o problema, basta saber como funcionavam os telefones na capital, coisa que já foi apagada da memória dos brasileiros, sujeitos a lavagem mental nacionalista e socialista. Já no Rio em 1947, depois de 6 meses, saindo do hotel com a intenção de alugar um apartamento com telefone, o imigrante deparou-se com uma charada: “aluga-se apartamento de dois quartos e uma sala, com telefone e sem luvas”.

Era o que ele queria. Seguem-se as peripécias para entender que raios eram as tais luvas e porque deveria pagar 35 mil cruzeiros pelo telefone. E mais, o telefone não podia ser transferido para o seu nome. Preocupado com um possível logro, procurou um contato com a comunidade húngara que lhe antecipou se tratar de um negócio perfeitamente normal, posto que o amigo já estava há sete anos na fila para receber um telefone no próprio nome. Porém, recomendou que deveria oferecer 15 mil cruzeiros, o que ao final da negociação, pagou 20 mil.

Mas se o telefone não podia ser registrado em seu nome, como ele iria fazer para que o achassem na lista telefônica? A solução foi colocar em seu cartão de apresentação o nome da inquilina que tinha lhe alugado o apartamento: “se quiserem localizar o meu número, procure na lista por Dona Adélia Brito”. E assim funcionava o telefone até mesmo para as inconvenientes chamadas de pessoas querendo falar com a própria Dona Adélia Brito. A partir de então, o autor explica como funcionava o sistema:

“A falta de telefone no Rio de Janeiro é explicável. A cidade cresceu e o serviço telefônico não conseguiu acompanhar esse rápido desenvolvimento. Porque não o conseguiu é outra questão, outro problema, provavelmente a história antiga das empresas particulares receberem concessões do governo; no início vai tudo bem, mas depois de alguns anos de lua-de-mel, o governo descobre que a Companhia 'ganha demais', começa a 'estudar' e protelar os aumentos necessários nas épocas oportunas, sempre em 'benefício público'; o dinheiro inflacionado nunca mais consegue proporcionar o necessário equilíbrio e, a Companhia... por sua vez se assusta com medo do amanhã e não tem mais coragem de investir novos capitais, necessários ao seu rápido progresso. Cria-se, assim, o círculo vicioso: o desenvolvimento estaciona; tudo fica parado ou caminha em marcha lenta....”

“Acho que todos os governos do mundo, inclinados a intervir na economia privada, deveriam possuir folhetos explicativos, uma espécie de bula de 'Modo de usar' ”, que tratasse diretamente do assunto: “não assuste sua empresa privada, com medo de que ela não produza. Deixe-a pensar que tudo vai bem. Encampe as empresas de surpresa, de um dia para o outro, sem ameaças constantes. Assim elas ficarão bem mais fortes e gordinhas”.

Avisando que o crescimento da oferta de terminais beneficiava apenas uma elite privilegiada, enquanto dezenas de milhares aguardavam na fila, o autor adverte para este ser o caso talvez único no mundo em que “indivíduos, supostamente negocistas, não terem o direito de passar os seus telefones para o nome de outros”.

Era a triste realidade. Se um respeitado carioca “se dirigisse à Companhia Telefônica pedindo para transferir seu telefone para o genro, receberia sumariamente uma recusa. Ninguém pode passar um telefone porque não é um negócio, é uma negociata que precisa ser evitada a qualquer preço”.

E ele se pergunta: como alguém que tenha um automóvel pode vendê-lo, mas um telefone não, por tratar-se de uma negociata? “Se um cidadão procurar um juiz competente e manifestar o desejo de entregar para sempre o filho menor para outro, depois de cautelosas investigações e precauções, o juiz pode concordar em transferir o pátrio poder da criança ao outro. Mas esse juiz dificilmente poderá interferir na transferência de um telefone, independentemente da desistência voluntária, expressa e irrevogável do assinante original.”

No livro “Memórias Sem Maquiagem” (ver resena neste blog), Carlos Machado, boêmio, dançarino, animador e diretor musical do Cassino da Urca, conta o episódio de uma garota de programa do cassino que, prestando serviços a João Goulart teria recebido um apartamento com telefone, na mesma época do húngaro.

A garota em questão “morava num apartamento que não dispunha de telefone. Para simplificar a burocracia indispensável à obtenção deste aparelho, que às vezes tem o dom de falar, Jango mandou instalar um telefone oficial na casa da moça. O problema é que, para encontrarmos o seu número, nunca descobrimos onde procurá-lo na lista telefônica: ‘Procuradoria Geral’, ‘Ipase’ ou ‘IBC’?”

Eu próprio recordo de ter amigos no Rio de Janeiro nos anos 80 que avisavam não procurar seus nomes em listas telefônicas, porque não seriam encontrados.

Curiosa consequência: a demanda é reprimida NÃO pelo preço extorsivo que se poderia esperar de um monopólio cruel, mas pela intervenção do governo ao não permitir que a empresa amplie seus terminais. E, ao fim, com a inflação galopante e as Assembleias Legislativas sendo as únicas responsáveis pela concessão do aumento da tarifa, recusavam todo e qualquer correção que pudesse onerar a população, deixando a companhia telefônica sem condições sequer de fornecer uma manutenção adequada. Espoliadas pela politicagem, terminaram sendo encampadas no episódio de criação da Telebras.


É impossível resumir um livro de crônicas tão rico em cultura brasileira, tão palpável em descrever os meandros psicológicos das interações da vida social carioca. Somente um olhar estrangeiro, carregado de ironia e condescendência pode nos apurar aquilo que passa batido pelos historiadores: o caráter do brasileiro frente as suas instituições. Trata-se de uma literatura perdida, esquecida e que, no entanto, é riquíssima em posturas culturais próprias.

Conta piadas da época, como a do cego que, de óculos escuros e bengala branca, pede esmolas, mas num momento de distração, abre o jornal e começa a ler. Um senhor idoso e respeitável que assiste à cena o interpela indignado:

– “Patife! Você não tem vergonha mesmo. Finge-se de cego engando as pessoas de bom coração!”

– “Perdão, meu senhor” responde o interpelado “eu não sou cego e tampouco vivo neste bairro. Estou apenas substituindo meu amigo, o cego verdadeiro que teve de se ausentar por duas horas”.

O respeitável senhor decide não mais discutir e, dando cinco cruzeiros, faz uma pergunta apenas para fingir interesse:

– “Onde foi o verdadeiro cego?”

– “Volta já. Foi ver a fita do Metro, pois hoje é o último dia”.


Os transportes na cidade do Rio de Janeiro ocupam mais de uma crônica. Sejam os bondes, sejam os ônibus, os trens da Central do Brasil, o que for. Um episódio interessante é o conselho para tomar um táxi na cidade, experiência que passei pessoalmente inúmeras vezes e só me vacinei depois de ler a crônica do húngaro, fato que, por si só, justifica o dinheiro gasto com a compra do livro. Trata-se do seguinte conselho de um homem experiente: nunca se deve dizer o destino final da corrida. Se isto ocorrer, o taxista reagirá de quatro ou cinco maneiras, todas catalogadas por ele e sempre desfavoráveis ao passageiro. O método consiste em sentar no banco de trás, para não dar chance de intimidade, e mandar seguir em frente, indicando as ruas em que deve dobrar. Se o taxista insistir no destino final, não se entregue. Diga que é logo ali, que não sabe o nome da rua, mas que conhece visualmente. É infalível e você não ficará andando por trajetos malucos e nunca antes frequentado, e tampouco sua corrida custará o olho da cara.


É impossível resumir um livro de crônicas tão rico em cultura brasileira, tão palpável em descrever os meandros psicológicos das interações da vida social carioca. Somente um olhar estrangeiro, carregado de ironia e condescendência pode nos apurar aquilo que passa batido pelos historiadores: o caráter do brasileiro frente as suas instituições. Trata-se de uma literatura perdida, esquecida e que, no entanto, é riquíssima em posturas culturais próprias.


Não há nada mais brasileiro do que o conhecimento do tratamento que se deve dar para uma determinada doença. O imigrante húngaro jura que todos os brasileiros são médicos experientes e de uma erudição fantástica no receituário de medicamentos.

“Que dor esquisita! Nunca senti coisa igual. Quem me dizia esta frase era Marly Affonso, moça simpática, morena, funcionária graduada do Ministério da Educação.”

“Poliglota, de grande cultura e instrução, Marly Affonso é quase solteirona, não por falta de pretendentes (ela é assim porque exagera na escolha); é também uma criatura segura de si, sem complexos. Eu a conhecia há muito tempo e nas poucas vezes em que nos encontrávamos sempre conseguíamos um tempinho para um bate-papo. Estávamos parados defronte à repartição e Marly se queixava de uma dor esquisita:

– “O que é que você acha? Uma dor constante.... o que será?” – perguntou ela, em tom confidencial.

“Pode ser que tenha falado um pouco alto demais pois, de repente, uma senhora alta e gorda, de uns sessenta anos mais ou menos, juntou-se a nós.

– “Perdão, minha senhora, – disse ela para Marly, – o que a senhora tem é 'fígado'. Eu também sofria disso mas graças a Deus melhorei muito. Estou quase boa. A senhora tomou alguma coisa?”

“Vim a saber, mas tarde, que aquela senhora se chamava D. Armanda. Marly respondeu prontamente:

– “Não. Nem sei o que tenho. É uma dor do lado.

– “É 'fígado' – disse um senhor calvo, magro e alto que repentinamente juntou-se ao grupo. – Minha senhora, tome Metialcal, duas pastilhas agora e mais duas depois de quatro horas. – E enquanto isso já ia tirando do bolso a caixa do remédio.

– “No caso dela, Medialcal não serve – retrucou D. Armanda . – Só Marovan, trinta gotas durante as refeições, três vezes por dia.

– “Marovan eu não conheço, nunca tomei, – observou o senhor calvo e magro, Sr. Esteves – João Esteves, seu criado, – apresentou-se ele, rapidamente, a D. Armanda. – Quer soletrar, minha senhora? “M-a-r-o-v-a-n. Muito agradecido, vou experimentar. A senhora já tomou Bilutal? Contém iodo e ferro, além de todas as vitaminas, e faz bem ao fígado. Minha filha tomou depois do parto. É um produto novo.”

E segue a crônica do húngaro sobre os conhecimentos infalíveis dos brasileiros nos diagnósticos das doenças, não esquecendo o “rapaz da farmácia”, a quem chama de “o soldado desconhecido das lutas contra todas as espécies de doenças”.

Ocorre que “se D. Mary tiver sorte, as dores aumentarão e, neste caso, irá correndo a um médico. Este mandará que ela tire algumas chapas, embora já as tenha, pois foram tiradas na semana passada”. E conclui: “O brasileiro médio possui mais retratos do seu interior do que Marilyn Monroe em roupa de banho”.

Falando em mania de expor suas doenças como algo tipicamente brasileiro, o assunto também é tratado no livro Bandeirantes e Pioneiros, um delicioso estudo do escritor Vianna Moog dos anos cinquenta onde, em um capítulo fala da doença como uma característica infalível de ...

... “as nossas suscetibilidades, as nossas idiossincrasias, as nossas alergias morais e físicas, os nossos sofrimentos, esses, sim, não temos o menor constrangimento em exibi-los, remirá-los, discuti-los, dissecá-los à luz do Sol. É o nosso fraco. Exibimo-los em nossas palestras, na constância de nossos suspiros, nas erupções de nossos melindres. Porque a pérola é a doença da ostra, não estar doente, entre nós, de alguma doença real ou imaginária, é quase prova de pobreza de espírito, uma falta de respeito para consigo mesmo, tanto o estar doente é, entre nós, a regra geral."

"Exagero? Caricatura?

“Invoquemos honestamente as nossas mesas particulares e as mesas de nossos hotéis, alastradas de frascos de remédio; invoquemos os nossos encontros, as nossas reuniões eriçadas de suscetibilidades. Qual o assunto mais persistente? Política, literatura, negócios, teatro, cinema, futebol? Não. Política, literatura, futebol acabam esgotando-se como temas. Há um assunto porém, que não se esgota nunca, que não falha nunca: doença.

“A conversa está frouxa, não ganha corpo e é preciso animá-la a todo transe? Mas é só falar em doença. Então é o delírio. E a chama dos espíritos, que bruxuleava, a conversa, que se arrastava, reanima-se, e a reunião ganha num instante nova vida, funde novas simpatias, prolonga-se até noite velha, e não termina antes que o último conviva tenha esgotado com luxo de pormenores os seus últimos padecimentos ou a sua última convalescença.

“E nem por muito repetidas deixam estas histórias de provocar o interesse geral. Desde que apareça no fundo de uma cama, debatendo-se entre a vida e a morte, o nosso inevitável enfermo, o êxito está assegurado. Quanto mais ele tiver recorrido a médicos, mais se tiver submetido a exames de laboratório, mais velas acendido a S. Antônio e aos santos do seu hagiológio, mais promessas tiver feito para os parentes e os amigos pagarem, mais passes espíritas levado do seu benzedor ou médium de estimação, tanto melhor.

"O importante é que num dado momento o nosso enfermo tenha estado completamente desenganado ou que haja para os inimigos fundadas esperanças de que ele não se salve. Nisto então deve aparecer o médico ou o curandeiro providencial.

"Examina o doente, tateia, cita ou não cita casos semelhantes, e conclui pela operação. Porque é indispensável haver operação para os efeitos de uma dramatização completa. Faz-se a operação, o doente equilibra-se entre a vida e a morte, reagem as resistências naturais do organismo, e o doente se salva, para reentrar no prosaísmo da vida cotidiana.

“Encha-se este arcabouço de história de pormenores, carregue-se nas tintas nas passagens dramáticas, multipliquem-se as aflições da família e a dos amigos nos lugares adequados, façam-se as mais prolongadas conjeturas sobre as doenças afins e os específicos de cura, no estilo das bulas dos remédios, acentue-se a ciência do médico e a sua dedicação pessoal (não esquecer o ponto das atenções pessoais; isto é particularmente importante, mais importante, por vezes, do que o conhecimento da especialidade), e ter-se-á uma novela falada de êxito tão certo entre nós como o são entre americanos as histórias de 'poor boys', em que tudo termina bem”.

Creio que esta deve ser a razão para os Médicos Cubanos se darem tão bem no Brasil. Com tão parcos conhecimentos, tenho certeza que voltaram para Cuba engrandecidos com nossos exemplos de cura e sintomas, de tratamentos e remédios, passes, orações e sabe Deus tudo o que a doença nos inspira.


segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Para quê filósofos?

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo


PARA QUÊ FILÓSOFOS? – Jean François Revel.

Depois da leitura de A Tentação do Totalitarismo e O Monge e o Filósofo, desfrutando do mesmo ceticismo agnóstico de Revel, encontrei outra pérola da crítica filosófica esquecida nos sebos poeirentos da memória.

Inicia perguntando se existe uma técnica na filosofia da mesma forma que nas ciências naturais, por exemplo, a física, que impossibilitaria um neófito questionar os fundamentos defendidos por um filósofo. Afirma que não, que toda a argumentação pode ser entendida e o filósofo que se recusa a fazê-lo não é mais que um criador de “geringonças de palavras sem ideias”, escreve citando Rousseau.

“Para esses filósofos [Descartes, Leibniz e Malebranche], lhes é estranha a ideia de que a falta de certo conhecimento a posteriori, ainda não obtido, proíbe a construção de um sistema completo de explicação, mas o a posteriori campeia no coração de sua filosofia em sua pior forma: o preconceito disfarçado de resultado científico. Todos os seus argumentos são reduzidos finalmente a este: que uma explicação é necessária. É, sem dúvida, necessária. Mas isso significa que é capaz de produzi-la imediatamente? E por que seria preciso exatamente dessa forma? Por que não seria de uma ordem totalmente diferente, tanto que, não só não poderíamos fornecê-la, como não poderíamos representar qual classe de explicação seria?”

Revel acerta em cheio na “philosophical rumination” dos filósofos:
“Um tratado sobre filosofia geralmente começa com uma exposição sombria e desdenhosa de teses simplistas atribuídas a predecessores imaginários ou a um "pensamento ingênuo" forjado para esse efeito; seguida por uma exposição afirmada imediatamente – em um tom não menos sombrio e tenebroso – de que a teoria do autor (ainda a ser apresentada), certamente será mal compreendida e distorcida. Atualmente é Heidegger que conseguiu elevar esse método a alturas apocalípticas. Eu vou falar sobre isso mais tarde. Mas adianto que o método é antigo e personagens de menor estatura o usam diariamente.”

Em seguida, ironiza a fenomenologia de Merleau Ponty e Sartre, mostrando como são conceitos em que o filósofo chama a atenção para coisas que não existem, com o agravante de que todo mundo sabe que não existem.

“Um filósofo começará proibindo, em termos cominatórios, que sejam tomados ao pé da letra, porque se isso acontecer, ele sempre quer dizer que há algo mais em seu livro, uma passagem que não terá sido prestada atenção ou que não haverá entendido. ”…“ E em vez de ser o raciocínio que sustenta sua filosofia, é a “filosofia” que paga por suas ignorâncias”.

Quantas vezes ouvi a mesma coisa dos reacionários tradicionalistas?

“Repetindo as consabidas frases sobre o "humanismo" mais insulso, [Heidegger] lamenta o progresso científico feito desde o Renascimento, seja um progresso que nos separa do Ser. Condena a "loucura técnica" de nosso tempo, fingindo confundir, como tantos outros, o maquinismo com o emprego lucrativo e imperialista feito dele, e contente de qualquer maneira, com a nostalgia hipócrita de um mundo pré-industrial”.

E na pg 24 continua burlando-se de Heidegger:

“O pensamento de Heidegger segue cada vez mais essencial, mais fundamental, mais original, mas sempre mais deformado, mais incompreendido, mais traído, para se transformar brutalmente em um amontoado macarrônico de palavras”.

“O caráter rigorosamente tautológico da intenção de Heidegger, o qual, quando se trata do Ser, se limita a nos dizer que nele surge o ente e, quando se trata do ente, nos diz que só é possível compreendê-lo à luz do Ser, tal caráter, digo, não deve impedir-nos de olhar atentamente o que diz sobre o ente, uma vez que é a única coisa que tratou explicitamente até agora”.

E descasca o abacaxi francês: “Se você é francês, é verdade que o orgulho de ser filósofo já deixou de ser sentido há muito tempo; nesse jardim de preguiça que é a filosofia, a França tira uma soneca particularmente longa: nunca o pensamento filosófico foi tão débil na França como desde o início do século XIX”... "A gente se pergunta como foi possível escreverem [os franceses] milhares e milhares de páginas sem o mais ínfimo traço de gênio, sem a mínima ideia interessante”.

Depois de Heidegger, sobra pra Bergson. Desmonta a insensatez filosófica do nobre francês em uma página e termina com uma conclusão arrasadora sobre a queda vertiginosa deste depois de desfrutar de grande fama:

“Pode, portanto, a filosofia francesa sem medo, se orgulhar de Bergson. Mas, pelo contrário, quando ouço alguns de nossos “filósofos” falarem em nome de Descartes, Pascal ou Rousseau, penso na frase de Nietzsche: “É nojento ver os grandes homens reverenciados pelos fariseus”. “Os filósofos não se acostumam a menosprezar seus talentos. Ao se acreditar neles, a humanidade apenas começa verdadeiramente a pensar com cada um deles”.
“Eles não deveriam se preocupar com o fato de que todas as grandes inovações filosóficas que ocorreram, especialmente desde um século atrás, são devidas a economistas, naturalistas, matemáticos, físicos, biólogos ou médicos, mas em nenhum caso a um filósofo de profissão?"

“O mais surpreendente é que, exatamente quando atinge seu nível mais baixo, reivindica a filosofia com mais intransigência sua infalibilidade e, de acordo com a frase de Leone-Battista Alberti, 'todos desunidos e com opiniões diversas, os filósofos concordam, no entanto, em algo; em que cada um deles tem aos demais mortais como dementes e imbecis'”.

Depois de arrasar com a pretensão tola dos filósofos, acrescenta uma nota: “Nota para uso de filósofos: Leone‐Battista Alberti (1404‐1472), matemático, arquiteto, teórico da pintura, etc... a frase citada se encontra no Momus, tratado que forma parte de suas obras morais e foi composto em torno de 1450.”

“A filosofia da matemática é o próprio desenvolvimento da matemática. Da mesma forma, em outro campo, a estética é o reflexo dos artistas sobre sua arte, uma reflexão que consiste na análise crítica de velhas fórmulas juntamente com a incorporação de novas fórmulas; o mesmo acontece com as obras de historiadores de arte que pensam, como Focillon, Panofsky ou Saxl, por exemplo. Ali se encontra estética que não está presente nos livros dos filósofos. E a filosofia da história são as inovações e extensões feitas ao método histórico pelos próprios historiadores."

“Desde um século, se produziu um aumento efetivo do conhecimento em todas as áreas que aniquilam claramente as antigas formas de filosofar. Os filósofos, no entanto, pretendem continuar servindo-se, para refletir sobre a ciência e os fatos atuais, de conceitos que remontam a uma época em que o conhecimento não tinha relação alguma com o que é hoje."

É uma indireta para o surto de Platão que nos aflige partindo da academia. E inicia um parágrafo com a seguinte observação percuciente: “Por consistir o dogmatismo contemporâneo em 'sacralizar' tudo o que é 'filosófico', ...” dando a entender que não se conhece pensamento dogmático que não esteja escorado em garimpagens filosóficas.

E mais, ao começar o capítulo 7: “Anteriormente, falei sobre as críticas e as "revisões" às quais Freud foi submetido por psicólogos "científicos", bem como por espíritas e certos epígonos da fenomenologia, isto é, de todas as pessoas cuja característica comum é a de nunca terem inventado nada."

E, como não poderia faltar, não deixa barato para Lacan, talvez o maior charlatão da França:

"Para começar, essa franqueza nos faz sentir confortáveis e, como se trata de linguagem, digamos, sem rodeios, que na maneira de o Dr. Lacan se expressar nos parece, onde quer que a olhemos, um conjunto de clichês pseudo-fenomenológicos, uma confusão das mais deformadas e distorcidas que existem na verborreia existencialista e que cada uma de suas frases manca de uma aspiração forçada no estilo grandiloqüente, à agudeza, ao retorcimento, ao rodeio rebuscado, à formulação rara, ao giro pretensioso, embora alcance apenas o suficiente para ser um preciosismo pesado, um mallarmeísmo de bairro e um hermetismo para donzelas cansadas. "

“Acontece, porém, que os filósofos de nosso tempo permanecem mais ou menos conscientemente fiéis a aquele ideal medieval, àquela noção implicitamente religiosa de seu papel, e chamam de filosofia a tal sonho de disciplina orientadora, que seria ciência e prudência, conhecimento do absoluto e princípio hierarquizante de outros conhecimentos, que obteria daquela seu significado último. A filosofia de nosso tempo é uma tentativa desesperada de dissimular e disfarçar-se, a própria desintegração dessa concepção."

Pg 83: “Husserl quer fazer da filosofia uma “ciência rigorosa…. uma vez que a filosofia terá precisamente a tarefa de "fundamentar" tais ciências, substanciando seu significado, algo de que elas próprias são incapazes por causa do naturalismo, que é sua atitude espontânea. Observe-se que, nesse caso, a filosofia deve fundamentar as ciências já constituídas como ciências "rigorosas", quando sucede que ela própria ainda não é uma ciência”.

E já ao fim (p 88) “É comum ouvir-se que a literatura de nosso tempo é baseada na filosofia. Diz-se, inclusive com frequência, para deplorar. Muita metafísica no teatro e no romance, gemem os defensores da literatura pura. Curioso paradoxo, ainda que generalizado, mas como não vê-lo? O exato oposto acontece há um século, uma vez que é a literatura a base da filosofia de nosso tempo”.

"Certamente mais de uma obra literária manifesta hoje, em linhas gerais, intenções filosóficas mais explícitas do que a maioria das obras do século passado, por exemplo. Esse fenômeno corresponde a uma inversão de formas narrativas, cuja dominação, para o resto, foi momentânea. Mas mesmo esse momento, longe de garantir o triunfo da literatura pura (fantasma tão inatingível, ademais, como o da pintura absolutamente realista ou o da economia totalmente liberal) tem sido, pelo contrário, na ausência de qualquer filosofia formal aceitável, a época em que o papel da literatura correspondeu de maneira mais clara ao de um ensino. A literatura moderna tem sido a nossa filosofia e tem sido para os próprios filósofos. É a psicologia de Stendhal, Dostoiévski ou Proust, que serve para tentar entender a nós e nossos semelhantes, e não a de Bergson, Brentano, Pradines ou Merleau-Ponty. É em Joyce, em Kafka ou mesmo em Pirandello, onde encontramos os elementos daquilo que, para nós, mais se assemelha a uma metafísica, e não em Whitehead ou Heidegger. E se existe uma moral ou moral específica de nosso tempo, ou seja, novas maneiras de ver o homem moralmente, seja vítima ou ator, são Dos Passos, TE Lawrence ou Malraux que estão cientes disso e não Jaspers ou Max Scheler . Poder-se-ia citar muitos outros exemplos, de obras ou correntes, até questionáveis do ponto de vista estético ou esquecidas (não se trata de crítica literária), nas quais se encontram algumas das fontes de nossa reflexão e sensibilidade”.

A inadequação da filosofia clássica para os tempos em que vivemos, isto é, a sociedade high-tec, pode ser observada na pletora de conhecimentos produzida pelas pesquisas e investigações em áreas correlatas das ciências humanas, tais como antropologia, sociologia, psicologia (que avançou mais no conhecimento da mente humana que a filosofia no século XX), história, etnologia e arte.

Embora a filosofia analítica tenha produzido obras notáveis da pena de diversos filósofos, neste campo eles não se distinguem do resto da crítica. Russel escrevendo sobre Educação não é diferente de um Emil Farhat publicitário.

A própria crítica passou a elaborar as análises importantes que se tornaram uma mistura de conhecimentos agrupados em torno de ideias gerais. Por exemplo, as obras de Matt Ridley agregam campos do conhecimento especializado, com propósito histórico-filosófico-social. Percebe-se que se trata de um escritor que segue a tradição liberal britânica do pensamento político-filosófico.

Entretanto, o colapso da filosofia clássica reduziu a procura pelos filósofos, na medida em que a população do planeta aumentou. Isto também vale para a literatura. Eles se tornaram uma minoria dedicada a especulação de seus paradoxos, modelos de abordagem das variáveis do pensamento humano, sem acrescentar nada de novo. Assim como uma religião entra em declínio, uma forma de ver o homem também se desvanece nos tempos atuais. Como descrevi em A Insondável Matéria do Esquecimento, a insensibilidade filosófica para entender que o mundo se move pela tecnologia talvez seja o epitáfio mais importante para sua tumba: aqui jazz uma disciplina que ignorou a ciência.

Voltando a Revel, ele termina o livro com a resposta fatal e arrasadora:

“Assim, patrimônio de tagarelas e torpes, a filosofia é deixada de fora de tudo; oscila entre o humanismo hipócrita, o ecletismo formado com conhecimento de segunda mão, o jogo da prestidigitação etimológica à maneira de Heidegger, vulgaridade pedante e teologia vergonhosa”.

"Para quê, então, realmente os filósofos? Ou para quê, pelo menos, esses filósofos, se sua filosofia se tornou o oposto da filosofia, se a disciplina da libertação por excelência degenerou gradualmente naquela litania de fórmulas procedentes de todas as camadas do tempo e de todos os recantos do espaço, se a suposta escola de rigor não é mais que o refúgio da preguiça intelectual e da covardia moral? "

Cai o pano rapidamente.


terça-feira, 26 de julho de 2016

Como curar um fanático

(Amós Oz – Companhia das Letras – 2016)

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo

Três conferências, um artigo e uma entrevista com o hiperpacifista Amós Oz, conhecido no Brasil por suas novelas, algumas autobiográficas, sobre a interminável questão Israel-Palestina. Neste livro o antimágico de Oz procura analisar uma de suas preocupações mais candentes de quem nasceu em Jerusalém e fala daquele lugar conflagrado para o mundo: a questão do fanatismo na conduta humana.

Inicia falando sobre a curiosidade como condição para o trabalho intelectual e científico. Esta qualidade é também uma virtude moral. Uma pessoa interessada é sempre melhor porque adquire o costume de ponderar quando os destituídos desta virtude já tem uma ideia pronta. Pessoas sem curiosidade vivem no conforto da rotina, não sentem necessidade de buscar aquilo que está mais além do que já sabem, de explorar o desconhecido e de obter recompensas espirituais gratificantes pelo esforço despendido.

A segunda qualidade humana apontada é o humor, que somado à curiosidade, constitui os dois antídotos contra o fanatismo. Segundo Oz, fanáticos não têm senso de humor e raramente são curiosos.

Se o humor corrói o fanatismo por questionar a verdade, a curiosidade permite buscar respostas que não se limita à cartilha do assentado como definitivo. Para Oz, a fofoca também é filha da curiosidade. Mas a fofoca adora os clichês e reitera nossos preconceitos não saindo da superficialidade do já sabido.

A seguir, narra seu entendimento sobre a questão do mal: primeiro, que a dor que infringimos aos outros é do nosso conhecimento. É mentira que não sabemos que nossas atitudes ferem os outros. Porém, na moralidade do mal, a maior dificuldade consiste em distinguir suas gradações. Por exemplo, o roubo, a pilhagem e a exploração humana. O estupro e o assassinato. A opressão de mulheres, de minorias e a colonização dos povos. O genocídio, a destruição do meio ambiente. E assim, sucessivamente, com as Cruzadas, a Jihad, a Inquisição e os Gulags.

E conclui dizendo que aquele que não sabe distinguir as gradações do mal poderá ser seu servidor. Por isso, o “crescimento do fanatismo pode ter relação como fato de que quanto mais complexas as questões se tornam, mais as pessoas anseiam por respostas simples”. Isto favorece o fanático porque para ele sempre existe uma só resposta para todo o sofrimento e a problemática humana. Acreditar que uma coisa ruim deva ser extinta, incluindo aquilo que lhe está próximo, se concilia com a ideia de que o fanatismo se origina da “vontade imperiosa de modificar o outro para seu próprio bem”.

Significa dizer que o fanático é um altruísta extremado: está mais interessado no outro do que nele mesmo. Sendo pessoas que sequer valorizam a vida privada, o self, eles misturam a autopiedade com o desejo ardente de uma redenção instantânea consubstanciada em um só golpe.

Os antídotos para o fanatismo seriam o humor, o ceticismo e a argumentatividade. Ser jocoso é um sinal da propensão cética de duvidar de uma verdade absoluta e não se importar com a verdade alheia.

Para Oz, o conflito árabe-israelense não é uma tragédia entre o bem e o mal de um lado, mas, uma tragédia no sentido maior do termo: um conflito entre o certo e o certo. Para ele, ambos os lados tem suas razões e seus erros.

Ele detectou a questão da traição e do traidor. O traidor é aquele que muda de opiniões, enquanto o resto de suas amizades e familiares permanece em suas antigas opiniões. Aqueles que não conseguem mudar, não obstante, são os que querem mudar você. E se alguém quer mudar você contra sua vontade significa que você será perseguido por ter sofrido a mudança que aos olhos dos outros se transformou em uma transgressão que deve ser punida.

Outro ingrediente do fanatismo é o sentimentalismo: o fanático prefere sentir a pensar, e possui um fascínio particular pela própria morte. Imaginam o paraíso como um mundo factível e ao alcance dos destemidos e heróis, ao mesmo tempo que desprezam o mundo corrente. Conformidade e uniformidade são as fórmulas amenas do fanatismo. Mas também o culto de líderes carismáticos, políticos ou religiosos, estão nesta categoria.

A essência do fanatismo reside no desejo de forçar os outros a mudar. Eles querem nos redimir, e não poupam esforços para isso, desde a catequização até a destruição consciente do Ocidente. Por fim a cura vem no desenvolvimento do senso de humor, pois é impossível alguém com senso de humor tornar-se fanático.

Aqui terminam as ideias de Amós Oz. O que eu teria a acrescentar em apoio as suas contribuições está na própria literatura. Me refiro a obra de Rabelais, um dos primeiros surtos de riso que surgiu para espantar o espírito piedoso e mortificado com que a humanidade viveu até o Renascimento, onde, segundo a teoria de Mikail Bakthin, o riso começou a destruir todos os dogmas e incendiar a imaginação humana a ponto de afastá-la do fanatismo cristão para sempre. O riso medieval foi uma insurgência da razão contra o espírito piedoso e a falsidade hipócrita causada pelo medo da heresia. Bakthin que viveu e foi perseguido durante o período de Stalin (foi salvo de desaparecer no Gulag pela comutação da pena para um lugar mais ameno), entendeu o poder dessacralizador do riso, a sanidade do banquete e da celebração como realidade existencial. Sua teoria aponta a importância da separação entre a vida oficial e a vida popular, o mundo sombrio dos dogmas e restrições do mundo carnavalesco e espontâneo do povo.

A importância do dionisíaco nos remete à Nietzsche que entendeu com clareza a cura contra o fanatismo pela impossibilidade pessoal de vive-lo em sua plenitude. Nietzsche tinha problemas digestivos e não conseguia ingerir álcool, e segundo minha interpretação, seus problemas fisiológicos foram de tal forma exacerbados que ele sucumbiu à loucura por impossibilidade orgânica de encontrar um paliativo existencial para os terríveis mal-estares que sofria.

A importância do dionisíaco na conduta humana, representado no calendário das festas populares, na embriaguez e na celebração coletiva de danças, teatro, desfiles e variedades, está na origem da cura dos sintomas de ansiedade do mundo antigo e permanece como uma terapêutica eficaz até os dias de hoje, influindo decisivamente como um antídoto para a conduta obsessiva da humanidade.

Não há portanto possibilidade de se evitar o fanatismo se não houver uma reforma na religião islâmica pela criação de uma dissidência (entre tantas já existentes) que não seja hostil a cultura dionisíaca que conhecemos no Ocidente, e que possa prosperar arrebanhando seus desregrados e se pacificando para sempre. Até que isto aconteça, minha receita consiste em pegar um fanático e aplicar-lhe dois porres de vinho por semana, em um ambiente festivo tal que ele possa se derramar em riso e acordar com uma ressaca tão imobilizadora que todo o pensamento de hostilidade aos outros se dissolva em sua própria culpa, aprendendo com isso a pensar em si mesmo e em seus deveres como indivíduo, e a esquecer os outros. Um islamofanático bêbado cantando O Último Desejo de Noel Rosa vai estar curado para sempre. Está aberta a sugestão para a criação da primeira clínica de cura de fanáticos. O tempo urge.


segunda-feira, 15 de julho de 2013

O Ópio dos Intelectuais

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo

Uma paródia do Manifesto Comunista parece ser a melhor forma de caracterizar o presente momento em que vivemos: o fantasma do comunismo ronda o Brasil. Pelas escolas e universidades, jornais e revistas, a herança marxista infesta as redações como uma praga divina.

Nunca um governo pobre de espírito, inepto para as ações administrativas, irrisório para qualquer consideração humanística, parece ter sido tão bem qualificado em todos os lares e bares, e subitamente essa confiança entrar em crise. Nunca um movimento político conseguiu tantas adesões na classe universitária, no professorado do ensino médio e nos meios sindicais.

Agregando novas interpretações à surrada doutrina marxista, aplicando uma demão verde ao conteúdo vermelho, esse movimento político levou o país a professar insanamente o sucesso de uma ideologia que já havia sido provada equivocada, mas cujos viúvos apegados à sua fé não se davam por vencidos.

Persistindo na mesma argumentação do passado, não se deram o trabalho de uma reflexão mais aprofundada dos nossos males estruturais, e nem mesmo se permitiram uma oxigenação de novas ideias, pelos limites estreitos de seus evangelhos carcomidos.

Nos anos 50, Raymond Aron escreveu seu célebre livro ‘O Ópio dos Intelectuais’, como resposta à inteligência francesa que – radicada na universidade – fazia do proselitismo estalinista sua bandeira de luta. Enquanto a França se recuperava de suas feridas de guerra com dinheiro americano, os intelectuais franceses esbravejavam contra os EUA e em defesa da revolução proletária.

Sessenta anos depois, o Brasil passa pelo mesmo pesadelo. E a abordagem de Aron não perde sua atualidade. A força do marxismo está em seus mitos subtraídos furtivamente do legado cristão e utilizados como fundamentos para entender o passado, o presente e o futuro através de uma escolástica própria (doutrina que mistura fé com razão).

Aplicando o método marxista ao Brasil, podemos entender por que nossos intelectuais se intoxicam tão facilmente com suas profecias. O marxismo brasileiro possui qualidades que só uma nação avessa ao iluminismo poderia desfrutar: transformar mitos descartados pela história em motivo para criar celebridades nacionais.

Para Aron, os mitos do marxismo são os seguintes:


O Mito da Esquerda

O Mito da Esquerda é entendido por ele como a ideologia que combina: a propriedade estatal dos meios de produção, a hostilidade com a concentração econômica e a suspeita nos mecanismos de mercado.

A impessoalidade do mercado é sentida como algo aterrador, como uma ameaça à liberdade de escolha, como uma sujeição às grandes empresas capazes de subjugar os consumidores com a força do marketing.

Quase sempre são empresas transnacionais que, sendo impiedosamente criticadas, adquirem uma conotação esquizofrênica na mente estatista, ao lhes atribuir o papel de conspiração para subjugar as mentes, envenenar os corpos e destruir a liberdade individual pela escravização dos consumidores aos seus produtos.

Diversos exemplos de acidentes industriais, relatórios de danos ambientais e sociais são utilizados para justificar e confundir a produção econômica com uma conspiração contra os consumidores.

O conteúdo mitológico-esquizofrênico desse pensamento supõe que o modo de produção do capitalismo avançado esteja interessado em suprimir os consumidores pela doença, pelo envenenamento progressivo ou por qualquer outra ação destrutiva, em vez de protegê-lo como bem indispensável aos lucros da empresa, e que a vigilância do governo não seja suficiente para coibir abusos. Segundo esse raciocínio, só a estatização pode resolver o problema dos danos sociais e ambientais, como a poluição.

Revelador de uma inversão fundamental, esse pensamento guarda um propósito que só poderá ser manifestado quando efetivamente esse tipo de consciência tomar o poder: o descaso total para com as pessoas subjugadas pelo governo marxista.

A facilidade com que se propagam boatos sobre a irresponsabilidade social das empresas está na mesma proporção da perda de escrúpulos para sustentar a verdade no resto da vida pública.

Aron usa o termo “Mito da Esquerda”, embora no caso brasileiro o estatismo pertença tanto à esquerda como à direita. Ele é, portanto, um mito mesmo, abrangente, e está relacionado com nossa latinidade, especialmente com a Contrarreforma.

Outro componente do Mito da Esquerda consiste na pregação da igualdade social. Sobre isso, não existe uma análise mais acurada sobre as diferenças humanas de capacitação, nem a impossibilidade prática da igualdade. Para uma sociedade de funcionários públicos, a igualdade estaria assentada no primado da proximidade da remuneração, evidenciando assim a possibilidade concreta da igualdade relativa, sem no entanto resolver o problema do talento humano relativamente ao mérito. Este mito é um dos mais importantes para a educação marxista e foi objeto de um artigo meu, anos atrás, intitulado A Ilusão da Igualdade Social.

O Mito da Esquerda combina também um desejo profundo de reforma social com a eliminação das elites dirigentes, entendendo que somente a tomada do poder de uma nova classe política, tanto pelo voto como pela ação revolucionária, será capaz de implementar tais reformas.


O mito da revolução

Trata-se de um mito lapidar e de origem religiosa. O tipo de revolução marxista previsto por Marx e seguidores do século XIX nunca ocorreu porque sua concepção própria era mítica: nem o desenvolvimento das forças produtivas, nem a chegada ao poder da classe operária abriram caminho para a derrubada do capitalismo pela classe trabalhadora, consciente de sua missão.

Tal como as revoluções de todo o passado humano, a chamada “revolução proletária” meramente levou à substituição de uma elite por outra. Ela não apresentou características especiais para ser considerada como o “fim da pré-história”, como anunciaram os marxistas.

A concepção mítica da revolução consiste em interpretar a história como o motor do progresso social, pela qual o regime capitalista entra em crise dando lugar a uma nova ordem liderada pelo proletariado que toma o poder e estabelece um sistema transitório, chamado ditadura do proletariado, para conduzir a sociedade à sua redenção, ou seja, a uma sociedade sem classes chamada comunismo.

A redenção é também um componente subtraído do cristianismo, e neste não tem relação com a vida social, porém com o homem em sua fé. O marxismo se especializou em contrabandear os elementos da fé cristã para a sua doutrina de redenção da humanidade, na qual o mito da revolução seria o grande marco histórico referencial da passagem para um novo tempo de paz, harmonia e felicidade. Não tivesse o marxismo descaradamente furtado os elementos fundadores do cristianismo, ele não seria uma doutrina tão cativante e capaz de sobreviver a toda a demonstração racional de sua falência social.

Para o marxismo, a história assume o papel de um profetismo: a revolução proletária será essencialmente diferente das revoluções do passado, pois ela permitirá a humanização da sociedade. Somente o profetismo poderia permitir a convicção de que uma liderança partidária estaria seguindo as leis da história e trabalhando para um fim, que será inevitável e redentor, e que lhes permitiria eliminar quaisquer escrúpulos de culpa para promover as execuções de seus inimigos.


O mito do proletariado

Na escatologia marxista, o proletariado assume o papel de salvador coletivo. Trata-se mais uma vez de uma cópia das origens judaico-cristãs da classe eleita pelo sofrimento para a redenção da humanidade. A missão do proletariado, o fim da pré-história sangrenta e de sofrimento do homem graças à revolução – a conquista da liberdade final – estão atrelados à ideia do Messias, de rompimento com o passado, e com a promessa do Reino de Deus.

Nessa escatologia não se entende por que o proletariado tem de ser uma classe revolucionária. Na América Latina, não havia proletários nas guerrilhas de El Salvador e Nicarágua nos anos 80, nas FARC, no Sendero Luminoso, e nem na guerrilha do Araguaia.

Os revolucionários são, na maioria, egressos da universidade que se intitulam a vanguarda do proletariado, como apropriação necessária a uma representação social que só eles se conferem. No movimento estudantil brasileiro, que é o principal fornecedor de quadros para os partidos de esquerda, quase ninguém tem procedência operária.

Assim, a teoria do partido como vanguarda do proletariado nasceu da necessidade de dar direção às massas, sempre propensas a conquistas modestas e, ao mesmo tempo, contrárias às visões apocalípticas.

Para Marx, o proletariado era o servo que iria se revoltar, destituir o patrão e assumir o comando dos meios de produção não para si mesmo, porém para todos. Seus líderes, mais do que dirigentes políticos, seriam os profetas de uma NOVA FÉ a serviço da redenção humana.

O discurso da “emancipação” do proletariado é outro mito gerado na presunção de que o poder socialista tratará as classes proletárias de forma mais humanizada do que o capitalismo. Mas se um operário continua na sua fábrica, como se pode dizer que foi emancipado? E se ganha um salário irrisório e muito inferior ao pago pelos países capitalistas avançados, como se pode dizer que foi “libertado do jugo capitalista”?

Pelo mito marxista, o proletariado é a classe destinada a fazer do velho mundo um novo mundo onde não mais haveria a perversão do dinheiro, onde o capital não tivesse monopolizado e pervertido tudo. A classe operária levaria consigo a juventude do mundo, e o Partido Comunista estaria organicamente vinculado a ela na luta de classes.

O novo mundo seria a continuação na terra da promessa cristã (enfatizada pelos marxistas), guiada pela imanente filosofia que através da explicação científica propõe-se a ser um ponto final em toda a história de sofrimento e crueldade que tem sido o passado humano.

Toda essa construção mítica está voltada para o objetivo da tomada do poder. Trata-se de uma pseudociência criada para anunciar o advento de um novo mundo. A tomada do poder se transforma na emancipação da classe operária pela simples declaração dos dirigentes revolucionários, e não por mudanças na realidade.

Logo, o marxismo não é ciência. É mais um conjunto de asserções em que o real passa a ser o nomeado. Mistura a tradição romântica com uma visão poética de encantamento sobre o futuro, no qual o proletariado é o depositário dos novos valores e sua luta representa a luta de toda a humanidade. Todavia, a negação desses valores significa uma “traição de classe”, sujeita a pesadas sanções reservadas aos hereges.


O mito da História

Já falei sobre este mito na parte do mito da revolução. Porém, cabe uma palavra mais porque é complementar aos demais. A história foi tornada ciência, no sentido de que suas leis ocultas se tornaram conhecidas. A lei oculta é a certeza de que a história se move em direção ao socialismo, que a configura como o regime que irá substituir o capitalismo e instaurar o reino da abundância.

Os marxistas reivindicam que esta lei se torne “a filosofia da história”. A obtenção desse objetivo será feita pelo partido, elevado à condição de vanguarda do proletariado. Essa vanguarda se caracteriza por sua infalibilidade. Não existe um só partido comunista que no período dourado do estalinismo não tenha reivindicado para sua direção o status de infalível. Esta atribuição divina é, não obstante, a condição para a crueldade contra os oponentes. Se um partido não erra, mas apenas considera errados seus dissidentes, seus traidores, seus revolucionários que abjuraram a fé no grande líder, ele precisa suprimir toda a oposição, por mais branda que seja para que sua doutrina ou seu plano de governo sejam impostos sem contestação, e sobretudo para que sua verdade se estabeleça.

O marxismo se apropria da esfera religiosa e sua força provém exatamente de ser uma pseudorreligião. Não pode ser destruído pela razão, pois seus crentes são completamente impermeáveis a ela.

Assim, quando os mensaleiros foram condenados, o partido reagiu como se os mensaleiros estivessem fazendo algo regular, normal, perfeitamente aceitável para quem crê nos fins últimos de seus propósitos.

Para eles, a corrupção não é mais entendida como a negação da lei ou como um delito social, mas como uma estratégia de superação do capitalismo e de seus males, e que uma vez consolidada a nova direção no Poder, vai eliminar a corrupção para sempre.

Este propósito não se sustenta a não ser pela calhordice de permitir que o clero da nova fé tenha direitos sobre a apropriação indébita em nome da causa. E essa causa só pode valer para o clero e ser tolerada para os crentes, mas nunca para os hereges.

Assim, quando houve a denúncia de corrupção envolvendo Demósthenes Torres e José Roberto Arruda, o clero da nova fé foi o primeiro a declarar inaceitável tal comportamento, por não condizente com a moral. Mas com relação às denúncias contra José Genoíno e João Paulo Cunha, condenados do mensalão que reassumiram suas cadeiras no Congresso, esta flagrante ilegalidade foi vista pelo clero da nova fé com naturalidade.

Trata-se de um sentimento que só pode estar escorado na fé e não na razão. Somente a fé com propósitos situados no fim último de um futuro paradisíaco é que pode justificar a dupla razão e a contradição.

E Aron conclui com sua insuperável perspicácia: “a lógica confirma o que as sucessivas doutrinas sugerem: filosofias da história não passam de teologias seculares”. Existe um vínculo entre a história e o fanatismo, na visão do fim da história como a sociedade da abundância que não pode ser aceita senão na sublimidade de seus propósitos. Mas é o fim sublime do homem, postulado na teoria marxista, que justifica a brutalidade dos meios. E isso não vale só para o marxismo, mas para todos os fundamentalismos contemporâneos.


O repertório crítico

A partir desses fundamentos, a crítica marxista produziu (e continua produzindo) um besteirol crítico de proporções avassaladoras. É impossível reduzir todo o amontoado de fraudes criado em proveito da ideia do advento de um novo tempo chamado sociedade sem classes. Vou citar apenas um: o uso da dialética para fins próprios.

O que antes era uma especulação filosófica, no marxismo se transformou em palavra mágica para combater o capitalismo e apresentá-lo como uma sociedade agonizante. Através do talismã chamado dialética, o marxismo anuncia a derrocada do capitalismo em qualquer momento histórico de crise econômica e social.

Foi assim no fim do domínio colonial europeu, confundindo capitalismo com imperialismo a ponto de afirmar que o sistema baseado na propriedade privada e no livre mercado era incapaz de funcionar se não tivesse territórios para explorar. E desde então o mesmo raciocínio percorre as décadas com a força de um dogma.

A falsa noção de que a história se move por forças deterministas é talvez o pior legado do marxismo, um veneno que contaminou até mesmo os liberais. É absolutamente falso dizer que uma ação tomada hoje, define os rumos da história amanhã. Para que isso fosse verdade, os agentes teriam de ter a onipotência que não existe entre os seres humanos.

Aron discute essa questão na filosofia da história para mostrar como a história evolui a partir de escolhas postas para o personagem que de nenhuma forma pode ser vista como determinista. Nem César, ao cruzar o Rubicão, nem Hitler, ao desencadear a operação Barbarrosa, tinham consciência dos fatos que se desenrolaram a partir de suas atitudes no sentido da evolução que tiveram.

Outras pessoas em seus lugares certamente teriam tomado atitudes diferentes, o que configura que a história não pode ser movida por forças deterministas. O ultimato que os ministros austríacos deram ao governo de Belgrado em 1914 poderia ser de outro tom – e se a primeira grande guerra fosse postergada uns poucos anos, a revolução russa teria sido abortada e a configuração do mundo estaria totalmente modificada.

Alguns meses atrás, publiquei um artigo do historiador inglês H. R. Trevor-Roper a propósito desse assunto, com um argumento diferente, porém bastante próximo: História e Imaginação.

Aron desenvolve o argumento a respeito das predições históricas, afirmando que eventos históricos são previstos na mesma extensão em que são explicáveis casualmente. As interpretações retrospectivas formuladas tanto em termos de afirmações factuais: “as coisas aconteceram assim”, ou “tal motivo estava na origem de tal curso de ação”, não permitem que saibamos o que vai acontecer amanhã.

Entretanto, existem fatores previsíveis. Para quem conhece o economicídio dos regimes populistas, os países bolivarianos estão fadados a entrar em crise e fenecer sob a revolta das massas, pois já sabemos que a escassez e o empobrecimento são o resultado geral desses regimes.

O descaso com a lei praticado pelo clero bolivariano, sua cupidez e falta de escrúpulos terminaram revertendo-se no desrespeito à lei pelos crentes dos escalões inferiores e ao fim colocando toda a sociedade em desordem.

A promessa de um futuro luminoso transformou-se num pesadelo sombrio. E o passado denegrido por eles começa a parecer bem melhor do que o presente exaltado.


Os intelectuais em busca de uma religião

Paralelos entre socialismo e religião são bastante antigos. Mas no Brasil, foram escassamente utilizados. A expansão do marxismo pelo mundo guarda similaridades com a expansão do cristianismo.

A este respeito, adverte Aron: “igualmente clássicos são os argumentos surgidos dessas comparações. Acaso uma doutrina sem Deus merece ser chamada religião? Os próprios crentes negam a conexão, mas insistem em que sua crença não obstante é compatível com a fé tradicional – não seriam por acaso os cristãos progressistas uma prova viva da compatibilidade entre o comunismo e o catolicismo?” (p. 265).

Pergunta feita em 1953-55, bem antes da Teologia da Libertação, a mais sofisticada e elaborada tentativa de vinculação do cristianismo com o marxismo, e que mantém representantes até hoje militando a causa do castrismo.

“O fato é que o comunismo sempre guardou sentimentos parecidos com os cruzados de todas as épocas. Ele fixa a hierarquia dos valores e estabelece as normas de boa conduta. Ele satisfaz, no indivíduo e na alma coletiva, algumas das funções que os sociologistas normalmente atribuem às religiões. Mas para a ausência do transcendente ou do sagrado, os comunistas não o negam categoricamente, porém argumentam que muitas sociedades através dos tempos ignoraram a noção de um ser divino sem ignorarem a forma de pensamento e sentimentos, de obrigações e devoções, que o observador de hoje considera como religião” (p. 265).

Para Aron, as ideologias de Direita e Esquerda, Fascismo e Comunismo, são inspiradas pela moderna filosofia da imanência: elas são ateístas, mesmo quando não negam a existência de Deus, ao ponto em que concebem o mundo humano sem referência ao transcendental...

Tal qual nas religiões do passado, as paixões determinavam qual a Igreja que deveria ter o monopólio da missão de interpretar as Sagradas Escrituras e distribuir os sacramentos eliminando todas as outras como seitas hereges, no presente, os partidos comunistas disputam entre si quem é o verdadeiro intérprete das escrituras marxistas e se posicionam para eliminar seus concorrentes com a mesma vênia dos cruzados.

O profetismo marxista está em conformidade com o padrão típico do profetismo judaico-cristão. Todo profetismo condena o que existe e esboça um quadro do que deveria ser ou do que virá; ele escolhe um indivíduo ou um grupo para traçar o caminho à terra de ninguém que separa o miserável presente do futuro radiante.

Para que o sistema comunista de interpretação nunca seja flagrado em carência, a delegação do proletariado ao Partido deve ser total e irrestrita. Isso por sua vez provoca a necessidade de ele negar fatos incontestáveis — a substituição dos conflitos reais e multifacetados da vida humana na luta dos seres humanos em um destino pré-ordenado. A partir daí, surgem o escolasticismo, as intermináveis especulações sobre infraestrutura e superestrutura, as distinções entre significados sutis e vulgares, a rejeição da objetividade e a necessidade de reescrever a história: não existe nada que eles não saibam, eles nunca estão errados, e a arte da dialética permite-lhes harmonizar qualquer aspecto da realidade de um país com uma doutrina que possa ser torcida em qualquer direção.

O militante é persuadido a acreditar que pertence a um pequeno número de eleitos, que está encarregado da salvação de todos. O crente, acostumado a seguir os torcimentos da linha política do partido, a repetir feito papagaio as interpretações sucessivas e contraditórias de vexames como o pacto Nazi-Soviético, por exemplo, ou a “Conspiração” dos Sábios de Sião, torna-se, em certo sentido, um novo homem.

De acordo com a concepção materialista, os homens treinados através de um certo método tornam-se dóceis à autoridade e completamente satisfeitos com sua porção. Os engenheiros das almas não têm dúvidas sobre a natureza plástica do material psíquico à sua disposição.

Costuma-se dizer que a fé comunista é distinguível da opinião político-econômica somente por sua intransigência, que uma nova fé é sempre intransigente, e que as Igrejas se tornam inclinadas à tolerância quando são corroídas pelo ceticismo.


Militantes e simpatizantes

Modernamente, os conceitos marxistas no pós muro de Berlim estão em constante mutação. Eles migraram do terreno da sociedade e da história, onde foram derrotados, para tentar ressurgir de suas antigas ideias rousseaunianas a respeito da natureza.

Fundaram um sistema de interpretação da ecologia e do meio ambiente, que vai do ecomisticismo ao ecofatalismo, como indiquei em artigo.

Por um processo de imantação, todas as ideias que se aglutinam em torno do catastrofismo são defendidas pelas viúvas do muro de Berlim. O pensamento de uma crise iminente do capitalismo, verdadeira paranoia marxista, continua vigente no marxismo do século XXI.

Porém, o fenômeno mais importante ainda é a impossibilidade de certo pensamento intelectual latino-americano compreender que a levedura marxista está radicada em uma sociedade de privilégios, no amplo leque de instrumentos que vai dos cartórios aos sindicatos de contribuição compulsória, da burocracia estatal às entidades de registros profissionais, do modelo de representação política às empresas estatais.

Todo um universo de deformidades sociais, que se originou no passado colonial e que se expandiu incessantemente no estatismo é um instrumento ao qual o marxismo adere e se enraíza, solapando qualquer abertura democrática. Não entender que esse instrumento precisa ser eliminado faz parte da impotência de um certo pensamento de direita, dependente de um passado pré-moderno.

Achar que o marxismo possa ser erradicado só pela evangelização para a virtude das ideias certas é um dos maiores blefes dessa corrente, e uma postura não condizente com a modernidade.

Para a modernidade, pouco importa se um motorista de táxi conversa sobre marxismo ou sobre futebol com seu passageiro. O que importa é o modo de como ele conduz e cobra a corrida. Para a corrente nostálgica de um passado aristocrático, o taxista deve ser um homem preparado e doutrinado para a virtude cívica. Tropeça num idealismo fundamentalista e, não podendo revelar seu pecado, na adoração espartana da sociedade construída em torno de um Estado virtuoso, sempre deixará o caminho livre para que na primeira descompressão, surjam as ervas daninhas do nada sobre o terreno sequioso pela primavera de liberdade.

O único declínio possível da fé que confunde a missão de Cristo com o socialismo é a superação da sociedade que confunde democracia com oligarquia (e está agora dividindo espaço com a nomenklatura).

Somente uma sociedade baseada na propriedade privada e com um estado mínimo poderá fenecer a fé, cujo evangelho sempre foi a adoração do Estado. Quem combate o comunismo e não combate o Estado é apenas um agente disfarçado de uma mesma tirania.

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terça-feira, 14 de agosto de 2012

História da Inteligência Brasileira

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo

O Brasil visto por sua inteligência.

Wilson Martins – História da Inteligência Brasileira, vol VII – Cultrix – 1979 – 1ª edição.

Wilson Martins (1921-2010) foi magistrado, professor, escritor, jornalista, historiador, crítico literário brasileiro e autor da monumental obra ‘História da Inteligência Brasileira’. Celebrizou-se com sua coletânea de estudos sobre o Brasil. Neste volume, cobre o período de 1933 a 1960, abordando com extraordinária lucidez o nascimento da grande crise dos anos 30, que com a quebra da bolsa de NY iria desencadear o aparecimento de vozes anunciadoras do fim do liberalismo político, de um lado, e do fim do capitalismo de outro. O fenômeno do integralismo, para o qual convergiram grandes pensadores e que chegou a ser a esperança de um novo modelo para o Brasil por pouco mais de uma década, teve uma rápida obsolescência, o mesmo não acontecendo com o marxismo, que perdura atrofiado como sempre foi até os dias atuais confundido com o estatismo, a grande força nuclear da brasilidade desde seu descobrimento.

Não é possível deixar de admirar o rigoroso e sensível trabalho de Wilson Martins com sua História da Inteligência Brasileira. Utilizando o método cronológico associado à pesquisa editorial, ele descreve catalograficamente os principais lançamentos editoriais de um ano como pano de fundo de seus comentários, contribuindo assim para entendermos o pensamento nacional próprio e aquele reverberado das instâncias internacionais.

Não se trata de um trabalho meramente histórico, nem tampouco de crítica literária e cultural, porém de um apanhado conjunto que vai da sociologia à história, e desta à literatura e à poesia e artes. Em cada análise anual, ao mencionar seu fichário das principais obras nacionais do período, nos legou na parte final do livro um apêndice com cerca de 200 páginas, um trabalho monumental e sem igual em qualquer outra publicação que já vi.

Apesar de sua perspicácia no tratamento das contradições infindáveis da nossa sociedade e da acuidade com que abordava os temas da época, Wilson Martins não se arrisca a ser um intérprete com opinião pessoal, como costuma ser um analista social: ele se contém no papel do ‘schoolar’ que cria a rede de conectividades com o próprio material de estudo. Talvez por isso sua obra tenha alguns poucos pontos fracos, como por exemplo, não cita o livro de Afrânio do Amaral, ‘Serpentes em Crise’, de 1939. Afrânio foi um cientista chefe de um instituto norte-americano, que abandona sua carreia nos EUA a pedido de autoridades brasileiras para chefiar o Instituto Butantã de São Paulo. Cientista renomado, Afrânio conta em seu livro os desatinos para implantar uma estrutura estatal séria em um país arcaico e corrupto. Suas peripécias para limpar o Butantã da corrupção política das nomeações, e sua defecção em consequência do golpe de 1937 em um processo que saiu vitorioso na justiça mas demitido na política, representam um paradigma para a crítica do modelo político brasileiro ainda não percebido por nossa intelectualidade. Trata-se de um livro que deveria ser utilizado como ‘case’ nos cursos de pós-graduação em Direito, se nossas escolas não estivessem moribundas pela tragédia da frivolidade intelectual.

Além deste livro exemplar para o entendimento do Estado Novo, outro ponto fraco é que Wilson Martins também demonstra que não entendeu a importância da obra de Monteiro Lobato como crítica social. Ele foi capaz de uma preciosa análise do caráter de Lobato, de suas vicissitudes e incoerências, de sua personalidade ímpar, mas não percebendo a questão do poder fora de sua redoma acadêmica, terminou, talvez pela pressa, perdendo a noção do valor da crítica social de Lobato, espalhada em numerosos artigos, epigramas, cartas e contos.

Isso não diminui o valor do seu trabalho, dada a quantidade de informações que nos transmite ao longo de 442 páginas. Mas foi suficientemente acurado ao perceber o fenômeno perverso do nacionalismo ao se referir a ele da seguinte maneira: (p. 418)


O nacionalismo e, em particular, o nacionalismo primário, sentimental e intolerante (intolerante porque sentimental e primário; sentimental porque primário e primário porque sentimental) transformou-se, já agora, numa espécie de grave neurose brasileira; mais ou menos latente em toda a nossa história, ele aparece por irrupções bruscas, como as epidemias, e causa tantos males quanto elas. O Brasil sofre da mania de perseguição colonialista - é ela a responsável pelo nosso alheamento da realidade. Resultante de velho complexo de inferioridade - compensado e sublimado delirantemente pela criação de estereótipos os mais inconsistentes - ela alcança, neste momento da vida nacional, formas verdadeiramente patológicas, erigida que está em política, em programa da vida coletiva. É que uma grande parte do povo brasileiro deseja doentiamente preservar alguns valores vazios de conteúdo, agarra-se, justamente, por paradoxo, à constelação mental que caracterizava a sociedade luso-brasileira e deseja imobilizar o Brasil no instantâneo de um dos seus momentos históricos. Esse "velho País colonial", para conservar a terminologia de Jacques Lambert, opõe-se, com a força indestrutível da inércia, servida pela agressividade emocional, ao "País novo" e progressista, que compreendeu a permanência do Brasil sob as suas diversas fisionomias sucessivas e que responde às solicitações do momento em que vive. Se, até agora, entretanto, o "velho País colonial" representava a maioria absoluta, do ponto de vista demográfico, estamos chegando a um ponto em que as duas forças antagônicas tendem a equivaler-se e a partir do qual as correntes do progresso, da identificação com o seu tempo e com a "essência" brasileira começarão a prevalecer. A onda nacionalista que atualmente nos submerge bem pode ser a febre desse minuto culminante do conflito: explorada e mantida por interesses políticos que, precisamente, e por escárnio, nada têm de nacionais, nem de brasileiros, sua permanência e duração, seu alcance efetivo e a influência real que puder exercer decidirão, por muitos anos, do nosso destino coletivo. (1959)

Wilson Martins refere-se ao livro ‘Os Dois Brasis’ de Jacques Lambert, um professor francês que lecionou muitos anos no Brasil e nos deixou esta obra muito estimada nos círculos acadêmicos. Para Lambert, o Brasil arcaico é o país do analfabetismo, da pobreza endêmica, dos excluídos e da improvisação que coexiste com uma sociedade que se moderniza e que já forma profissionais em todas as áreas de especialidades.

A visão de Lambert, à qual Martins se associa, já não serve para os dias atuais, porque ao nos depararmos com o panorama nacional do início do século XXI, o Brasil arcaico não mais se distingue por diferenças de renda ou classe social, de educação ou acesso a bens de consumo. Nosso arcaísmo não está mais unicamente no retirante, na economia da enxada, tampouco na favela e no interior, mas na Universidade, ou em parte dela, no conjunto de ideias refratárias ao desenvolvimento econômico por não se render à realidade asiática que há 20 anos nos manda a mesma mensagem: a solução para os problemas sociais está dentro do capitalismo, e neste na economia do conhecimento ou high-tec, e não no Estado. Como somos uma sociedade coagulada em um semicapitalismo em que a oligarquia estatal dá o tom da vida nacional, tal como no Império, continuamos assoberbados por crises que seguem a um período de esgotamento de capitais por perda de oportunidades de desenvolvimento.

Perdemos essa oportunidade com a superação da crise de 29, que inicia em 1934, e com a possibilidade de nos enriquecermos com a demanda violenta absorvida pelos países em conflito na segunda grande guerra. Incapazes academicamente de avaliar o que poderíamos conseguir caso o Brasil tivesse enveredado por outros rumos -- como, por exemplo, com o governo de Julio Prestes em 1930 e sua sucessão democrática, com os candidatos naturais como Armando Sales de Oliveira ou José Américo, senão outros pretendentes até 1945, ficamos na aceitação medíocre de resultados pífios, mas suficientes para entronizar as piores lideranças que o país já teve como fundadoras de nossa modernidade, como é o caso de Vargas. As pessoas que endeusam Vargas não são capazes de imaginar o que ele deixou de fazer, ou o que teriam feito seus substitutos, não fosse o levante de 30.

Da mesma forma, fosse José Serra eleito para dois mandatos sucessivos desde 2002 poderíamos especular a situação da infraestrutura nacional em 2010, e como poderíamos estar preparados para enfrentar os tempos atuais com os ganhos de produtividade e de políticas públicas honestas e coerentes, a mesma danação que a Copa de 2014 vai nos levar a repetir a construção de Brasília dos anos 50: grandes investimentos sem retorno econômico. E rapados os cofres públicos, resta a inflação e com ela a agitação social e a decadência.

O cálculo não é muito complicado: basta avaliar as obras paradas, o dinheiro público roubado e a extensão possível dessas obras prontas comparadas com a “herança maldita” deixada pelo governante petista, e temos um intervalo a defasagem entre o que poderíamos ter sido e o que deixamos de ser. Extrapolando para um período grande, como um século, temos uma diferença no PIB que indica o que foi desperdiçado com o sistema político, cerca de 4 trilhões de dólares, como tenho apontado em outros artigos.

Nossa tendência ao atraso tem sido reiteradamente advertida a cada década por um escritor importante, a começar por Lobato nos anos 20. O fato de o brasileiro ser refratário à leitura, foi observado por Wilson Martins ao avaliar o pobre resultado das edições brasileiras justamente em um ano que o Brasil ainda vivia a euforia do pós-guerra e se preparava para mais uma eleição presidencial. (p. 283)

[....]

Um país de quarenta milhões de habitantes que termina o ano [de 1949] apresentando três livros de interesse, um ensaio e dois romances, não justifica, evidentemente, grandes entusiasmos. Ao denunciar ainda uma vez essa crise espantosa – crise de inteligência, para dizer com nitidez o meu pensamento – tenho o intuito de alertar os homens de responsabilidade para esse problema que não é exclusivamente literário, que é geral, e do qual depende o destino da nacionalidade [...] Quer o queiramos ou não, somos nós os responsáveis pelo futuro do país. Amanhã, nossos filhos e netos serão a inapelável resposta do que tivermos feito ou deixado de fazer. Quando todos esses nomes de "grandes" e "pequenos" da política estiverem esquecidos, existirá, já não digo uma nacionalidade, mas um povo, cuja expressão interior e internacional será a que lhe tivermos dado nos dias que correm (...) Somos um povo que não lê – e de posse dos documentos indesmentíveis dessa afirmação, desejaríamos que todos meditassem sobre o que isso significa. Um povo que não lê é um povo que existe, mas não vive: é povo que poderia desaparecer amanhã da face da terra sem que nada de essencial se perdesse. Um povo que não lê é um povo que não conta internacionalmente: nossos escritores podem ser ignorados sem prejuízo por um homem culto de qualquer nação, nossos estadistas não têm autoridade internacional, nosso país não comparece ao lado dos outros senão como região colonial destinada a fornecer matérias-primas. Um povo que não lê é um povo que não pode governar-se a si mesmo: eis como a democracia chega a depender do hábito de leitura. A nossa democracia é formal, não é orgânica: os candidatos "do povo” ainda saem dos bolsos caprichosos dos "grandes" e dos "pequenos". Ela é formal e não é orgânica precisamente porque esse povo que não lê pode ser dirigido por estadistas que também não leem – ou que não leram, quando ainda era tempo. A maior parte deles não saberia escrever os próprios discursos e a prova consiste nos seus risíveis improvisos ou nas suas declarações desprevenidas.

[...]

Sem dúvida que a leitura não é tudo. Coisas mais urgentes existem para ser feitas – nenhuma, porém, de mais fundas consequências. Nem só do salário vive o trabalhador, mas do exercício das faculdades de raciocínio e de crítica que o caracterizam realmente como homem. É essa transformação do indivíduo em pessoa o que se obtém por meio da leitura, e os estadistas que o ignoram ou que pretendem esquecê-Io estão justamente fornecendo o contingente mais precioso para os regimes totalitários, que só podem existir onde os indivíduos ainda não alcançaram a dignidade de pessoas. A medida que aumentamos os salários e esquecemos a instrução embrutecemos progressivamente o homem, provocando-lhe a hipertrofia das funções vegetativas e a atrofia das funções intelectuais. Não se trata de transformar todos os homens em sábios, nem mesmo em poetas, mas de fornecer a cada um os conhecimentos de base que o capacitem a saber como e em quem votar, por exemplo, a conhecer os seus direitos cívicos e morais, a ter uma consciência exata dos seus deveres como membro da comunidade. Não são, pois, resultados de ordem especulativa o que temos em vista, mas resultados de ordem prática. Nenhum problema se apresenta, dessa forma, com maior importância vital: os grandes países que julgamos exclusivamente comerciais ou industriais são os países onde mais se lê. Onde todos leem e não apenas uma pequena minoria de mandarins que ficam sem saber o que fazer afinal com os conhecimentos que possuem. Se me perguntassem, pois, terminado o ano, qual o problema político mais importante do Brasil, eu diria que é o da leitura. Todos os outros dependem desse e a democracia na realidade não existirá enquanto o povo for governado, como acontece atualmente, em lugar de se governar. Ora, hoje o povo brasileiro está nitidamente dividido em dois grupos: o dos indiferentes, que votarão em qualquer um, indicado pelos donos do país, e o dos místicos, que esperam a palavra de ordem de um banzo em que ainda acreditam. Nenhuma negação mais flagrante do regime democrático do que esses grupos rebanhos, amorfos e sem expressão, sem vontade e sem consciência, nem dos seus direitos nem dos seus deveres. As legiões de decência e as censuras literárias não serão senão ridículas enquanto o próprio indivíduo não estiver convencido de que o homem não é apenas um animal. Elas não atingem senão as consequências, quando são as causas que devemos combater. Não é o banhista sem camisa ou a historieta do gibi que permite a existência de banhistas sem camisa e das histórias em quadrinhos. Suprimir estes últimos pela violência, atribuindo-lhes uma existência gratuita que estão longe de possuir, não adiantará um passo na solução do problema fundamental.

Eis-nos, agora, segundo parece, longe da literatura. Nunca estivemos, ao contrário, tão perto dela. Pois a crise literária é uma das alarmantes conseqüências desse estado de espírito em que nos afundamos cada vez mais. Ela nos dá um índice seguro da situação em que nos encontramos. Começamos por nos desinteressar dos livros e terminamos por nos desinteressar do destino nacional. Começa-se por achar inúteis os poetas e termina-se por achar o voto inútil. Deixamos de acreditar nos romances para depois deixar de acreditar nos homens. Julgamos a cultura um luxo para melhor justificar a nossa ignorância e o pouco esforço que ela nos custa. Tudo isso se entrosa, como vemos, e começando com um povo que não lê, terminaremos por um aglomerado de homens sem consciência e sem dignidade. Eis o balanço pessimista do ano literário: que ele nos abra, enfim, os olhos, se ainda pretendermos salvar um país que mereceria um destino melhor.

Em 1950, Getúlio se elege e volta ao poder... O que se pode dizer?

Evidentemente, que o forte de Wilson Martins é sua crítica literária. Ele aborda todas as personalidades literárias do período, ou pelo menos aquelas que na cultura brasileira são conhecidas como celebridades. Ele não omite as críticas que se faziam ao oportunismo dos escritores que tinham aderido ao realismo socialista, e que veneravam a figura humana mais despótica do século XX: Stalin. Sobre Jorge Amado, suas observações não deixam de causar surpresa. (p. 352-354)

À espera da recuperação sensacional que seriam Gabriela (1958) e Velhos Marinheiros (1960), Jorge Amado era, àquela altura, um mero sobrevivente de si mesmo e da escola literária que paradigmaticamente representara. Superestimado na década de 30, parecia chegado o momento de reduzi-lo às suas proporções reais, não tanto por ele mesmo quanto por causa dos pupilos temporões que começavam a germinar. Porque, enfim, Jorge Amado era sempre Jorge Amado, isto é, tinha o mérito intransferível de haver sido o criador dessa corrente literária e o seu vulto mais importante (...). Imaginemos, agora, o que poderão ser os seus discípulos ideológicos e estilísticos, sem o sabor da novidade, fanados como flores da última semana, simples repetidores dos seus "efeitos", da sua técnica, das suas ideias; romancistas que demonstram a mais absoluta indiferença pelo caminho percorrido literariamente desde 1930; políticos que permaneceram nos domínios da interpretação lírica da realidade, o que desde logo comprova que lhes são estranhos, que não sentem genuinamente os problemas em que procuram inspiração.

Como o romancista de Cacau, Maria Alice Barroso, José Ortiz Monteiro e Ibiapaba Martins construíam romances maniqueístas, separando os personagens em dois grupos inconciliáveis, antagônicos e contrastantes: de um lado, os bons, ou seja, os que se incluem na "chave" mística do "trabalhador", do "operário"; de outro lado, os maus, isto é, todos os outros, mas, em particular, o "proprietário" e a "polícia", as duas entidades arimânicas desse singular universo. / Os primeiros são honestos, generosos, desinteressados, amigos da instrução e do progresso, patriotas, bons pais de família, sóbrios, artesãos dedicados, técnicos conscienciosos, empregados eficientes (embora revoltados), imaginativos e incansáveis, focos de poderoso magnetismo pessoal, cheios de inata vocação de comando e, ao mesmo tempo, do espírito de disciplina mais irrepreensível, corajosos, sentimentais, poetas instintivos, sede de paixões violentas (oh! no bom sentido!), modelos de solidariedade grupal, argumentadores invencíveis, repletos, em suma, de uma nobreza que em torno deles resplandece como um halo. O "trabalhador" é o herói característico desses romances de cavalaria: sem medo e sem mácula, ele tem tantas relações com a realidade quanto o próprio Amadis de Gaula.

Já o "proprietário" é um ser asqueroso e nojento, chafurdado em' todos os vícios, grosseiro, bárbaro, corrupto, implacável na cobrança dos seus juros, lascivo na presença das viúvas jovens e perseguidor feroz das idosas, barrigudo, fumando enormes charutos, arrotando sem pudor, repleto de amantes e provavelmente de doenças inconfessáveis, membro da sociedade secreta chamada "capitalismo", onde, como todos sabem, é invulnerável à solidariedade existente entre os membros; indivíduo que favorece todos os deboches, inclusive dos seus próprios filhos; covarde, desonesto, egoísta, ignorante, vendido ao dólar americano, lúbrico, marido brutal e pai perverso, irritante e antipático, rotineiro, frio como uma enguia, incapaz de sinceridade, sem melhores argumentos que a força bruta, verdadeira encarnação contemporânea dos demônios chifrudos com que a Idade Média se assustava a si mesma.

A "polícia", enfim, é composta dos maiores sádicos da história. Todos os "tiras" são modelos em que o "divino Marquês" legendário muito teria que aprender; brutais e violentos, analfabetos e lombrosianos, vendidos ao "proprietário" que mensalmente lhes distribui todo um caderno de cheques, só costumam beber sangue de criança e não têm apetite senão depois de algumas horas de espetáculo na câmara de torturas. É fácil, de resto, reconhecê-los: seus olhares torvos, as manchas gordurosas do paletó, os sapatos cambaios e as unhas aquilinas, em dedos repletos de anéis (que também lhes foram dados de presente pelo "proprietário"), não permitem nenhuma hesitação. Passam o dia procurando "trabalhadores" para seviciar e costumam se meter no meio dos grevistas como agentes provocadores. Mas, como são imediatamente reconhecidos, não há nenhum perigo. Há, porém, uma espécie de "polícia" um pouco diferente: é o "delegado". Este é limpinho, perfumado e serviçal; atende aos mais ligeiros assovios do "proprietário" e dispõe imediatamente os seus homens (os primeiros) em linha de combate; também recebe cheques do "proprietário", mas semanalmente e em quantias maiores; mora, em geral, numa cidade do interior e comete as maiores torpezas a fim de conseguir a promoção para a capital; sente, às vezes, alguns sintomas de revolta social e uma ligeira veleidade de aderir ao "trabalhador", mas a sua mentalidade capitalista não lhe permite tão grande progresso; bom rapaz, no fundo, porque evita assistir às sessões de tortura levadas a efeito por sua ordem pelos "tiras" acima descritos.

Inútil dizer que, tanto o "proprietário" quanto a "polícia" estão ligados por misteriosos pactos com o "tabelião", encarregado de dar forma jurídica às espoliações por eles cometidas. Em geral, o "proprietário" deseja se apropriar das terras pertencentes a um "posseiro" (que é a forma terrestre mais frequentemente assumida pelos entes celestiais também conhecidos pelo nome de "trabalhadores" e de "camponeses"); para isso, começa a tornar-lhe a vida insuportável, o que o "posseiro" tolera com evangélica resignação. Diante disso, o "proprietário" chama a "polícia" e o "tabelião". A primeira, para intimidar o "posseiro"; o segundo, para lavrar imediatamente a escritura, se a intimidação não surtir efeito. Não se sabe bem que espécie de escritura pode outorgar um posseiro; mas não faz mal: um romance não é o tratado do Fraga. Se a intimidação malograr, o "tabelião", depois de admirar as pernas das moças e de tomar um café com bolo de polvilho, vai embora num jeep emprestado pela "polícia". Enquanto isso, o "delegado" toma as suas providências. Seu destacamento de seis soldados é disposto estrategicamente; mas a bravura dos "posseiros" os obriga a bater em retirada, deixando um "macaco" morto no campo da luta.

Nesse ponto, intervém o "governador", espécie de entidade suprema nesse mundo sodômico e gomorreano. O "governador" tem todos os defeitos do "proprietário" e da "polícia", reunidos numa só pessoa. Primeiro, ele se aborrece com as notícias desagradáveis que lhe chegam justamente na hora do café da manhã, depois de uma noite bem dormida junto aos cabelos perfumados da esposa (ou da amante, conforme o caso). Depois, apanha furiosamente o telefone e mobiliza a polícia militar. Os batalhões começam a embarcar precipitadamente para o local da desordem. Muitos soldados desejariam fazer causa comum com o "posseiro", mas têm medo das consequências; de resto, já estão corrompidos pela convivência com os seus oficiais. Depois de uma semana de cerco, os posseiros são derrotados mas não se entregam; todos foram mortos em plena batalha, no meio dos gestos mais sublimes de heroísmo. Um deles, entretanto, deve se salvar, para ser preso e continuar, primeiro na cadeia e mais tarde entre os gentios, a sua doutrinação. O "delegado" é promovido; o "proprietário" toma uma bebedeira de whiskey importado no câmbio negro; os filhos do "proprietário" vão para a farra; a mulher do "proprietário" também; o "governador" será candidato à presidência da República.

Enquanto isso, a terra que produzia frutos maravilhosos nas mãos do "posseiro", torna-se estéril e abandonada, porque o "proprietário" não a deseja para cultivá-la, para tirar proveito dela, mas apenas para constituir um "latifúndio". O "latifúndio" é o fim supremo do "proprietário", da "polícia" e do "governo". Todos se esforçam para constituí-lo, para transformar o Brasil num imenso latifúndio. Nenhum deles pensa em plantar café ou algodão; nenhum quer criar gado; ninguém deseja produzir nada. Todos querem formar um "latifúndio", isto é, comprar ou roubar uma extensão infinita de terra, cercá-la de arame farpado e entregá-la às espinheiras e à tiririca. Não se sabe muito bem do que vivem os "proprietários", já que não plantam nem trabalham; mas não faz mal: um romance não é um tratado de economia política. Atingir o "latifúndio" é, para o "proprietário", a sua vitória maior; dir-se-ia uma criança que obtivesse afinal o seu trenzinho elétrico. Chega-se, então, à conclusão de que o "proprietário" só quer o "latifúndio" para impedir que o "posseiro" plante o seu pedaço de chão e medite, nas noites estreladas, a poesia do Sr. Jorge Amado. Ao lado desse romance do "camponês", interpretado com grande realismo social pela Sra. Maria Alice Barroso e pelo Sr. José Ortiz Monteiro, há o romance do "trabalhador". Neste, o posseiro é substituído pelo "grevista". A história e os personagens são exatamente os mesmos, só que se situam nas cidades e nas fábricas, em lugar de ser numa fazenda do interior. O Sr. José Ortiz Monteiro e o Sr. Ibiapaba Martins combinam, aliás, nos seus livros, as duas espécies: são obras que, como diz o Sr. Jorge Amado no prefácio do primeiro, vão "ajudar a luta dos camponeses brasileiros para libertarem-se da miserável situação em que vivem". Reconhece-se nessa frase o estilo do mestre. Com efeito, os "camponeses" do Sr. José Ortiz Monteiro, vencidos pelo "proprietário" buldogueano, transferem-se para a cidade e se aliam ao "trabalhador" das fábricas. Essa presença moral é de um efeito prodigioso e corresponde a uma espécie de sagração. A revolta estala imediatamente. Mulheres mais ou menos cornelianas (de Cornélia, não de Corneille) tomam parte na luta e incentivam os maridos. O capitalismo norte-americano é derrotado num piscar de olhos, apesar da "polícia" que, vendida como sempre, atira com metralhadoras e gases venenosos contra o "trabalhador". Aqui, a vitória é mais sensível, porque o "proprietário", acovardado no seu escritório, fechado atrás de uma tríplice cortina de aço, consente em aumentar os salários. Mas, é claro que se trata apenas de uma etapa e que a luta continua. A vitória final está próxima, o que permite ao "camponês" e ao "trabalhador" sentarem-se na soleira da porta, sob a noite estrelada, meditando mais uma vez na poesia do Sr. Jorge Amado.

Com esse tom crítico podemos entender como Wilson tinha uma percepção acurada do universo literário brasileiro. Entretanto, às vezes nos causa surpresa com alguma opinião aziaga, como ao se referir ao personagem Vão Gogo de Millôr Fernandes (p. 380): “se considerarmos o humorismo, como devemos, uma das artes menores”. Ora bolas, desde Rabelais, Sterne, Cervantes, o humorismo faz parte da alma literária. É novamente o espírito de ‘scholar’ a lhe atrapalhar. E talvez por isso ele tenha entendido Lima Barreto mais pelo lado caricatural do que pelo sardônico. Fora isso, ele não comete erros ao sair de seu ambiente natural, exceto na citação de ‘Um Rio Imita o Reno’ de Viana Moog em que confunde o Vale do Rio dos Sinos com o Vale do Itajaí.

Mas esses deslizes estão muito longe de diminuir a importância de sua obra. Ele envereda por todos os temas culturais, exceto a música, a quem faz um pequeno comentário sobre o surgimento da Bossa-Nova e sua importância no panorama nacional. O samba, a alma popular mais profunda cujo patrimônio é a maior distinção da brasilidade com o resto do mundo, pois que nunca imitado, não é retratado em seu livro.

Quanto ao cinema, não deixa de ser surpreendente a observação de Alberto Cavalcanti, o cineasta brasileiro que fez cinema na Inglaterra, fundou a Vera Cruz no Brasil, desentendeu-se, saiu, criou outra companhia cinematográfica, faliu, passou-a para a TV Record e voltou para a Europa de onde nunca mais saiu. Segundo Martins (p. 321), o diagnóstico de Cavalcanti sobre o cinema nacional transcende o próprio cinema, pois consegue enxergar o próprio drama nacional em poucas linhas. Segundo o cineasta, os principais problemas do nosso cinema são:

1) fator étnico (improvisação, pressa, falta de gosto pelo acabamento);

2) fator ético (falta de equilíbrio, falta de confiança em nós mesmos, imoralidade e grosseria nos filmes);

3) fator industrial (falta de equipamentos e/ou desperdício);

4) fator econômico (falta de capitais, que desejam rápida retribuição);

5) fator profissional ou técnico (deficiência, arrogância, convencimento);

6) distribuição (deficiente);

7) exibição (entradas baratas demais);

8) crítica (incompetente, preconceituosa)

Trata-se, na verdade, de um diagnóstico do Brasil, cinematográfico ou não, que vale para a nossa história do cinema muito depois da Vera Cruz.

O que se pode dizer do hercúleo trabalho de Wilson Martins é que com a banalização dos cursos de ciências humanas, com a supremacia do marxismo vulgar no conhecimento, ele tornou-se um autor de bibliotecas, reservado a uns poucos estudiosos de nossa nacionalidade. Da mesma forma que os autores por ele abordados, sua obra ainda está à espera de um crítico capaz de avaliar em profundidade o maior trabalho já feito sobre nossa vida intelectual: sem tantos correlatos.

FIM